Deus não está oculto de nós; Ele está revelado. Mas o que e como deveríamos ser em Cristo, e o que e como o mundo será em Cristo no fim do caminho de Deus, na irrupção da redenção e da conclusão, é que não nos é revelado; isso, sim, está oculto. Sejamos honestos: não sabemos o que dizemos quando falamos da volta de Cristo no julgamento, e da ressurreição dos mortos, da vida e da morte eternas. Que tudo isso estará associado a uma revelação pungente – uma visão comparada à qual toda a nossa visão presente terá sido cegueira – é demasiado atestado nas Escrituras para que sintamos o dever de nos preparar. Pois não sabemos o que será revelado quando a última venda for retirada de nossos olhos, de todos os olhos: como contemplaremos uns aos outros e o que seremos uns para os outros – a humanidade de hoje e a humanidade de séculos e milênios atrás, ancestrais e descendentes, maridos e esposas, sábios e tolos, opressores e oprimidos, traidores e traídos, assassinos e vítimas, Ocidente e Oriente, alemães e outros, cristãos, judeus e pagãos, ortodoxos e hereges, católicos e protestantes, luteranos e reformados; sob que divisões e uniões, que confrontos e conexões cruzadas os lacres de todos os livros serão abertos; quanta coisa nos parecerá pequena e sem importância; quanta coisa só então parecerá grande e importante; para que surpresas de todos os tipos devemos nos preparar. Também não sabemos o que a Natureza, como cosmos em que vivemos e continuamos a viver aqui e agora, será para nós; o que as constelações, o mar, os amplos vales e colinas que hoje vemos e conhecemos dirão e significarão.
Karl Barth
Em Menos que Nada, Slavoj Žižek desenvolve uma compreensão singular e complexa da temporalidade histórica, fortemente influenciada por Hegel e Lacan. Ao contrário das concepções lineares ou progressivas tradicionais, Žižek propõe uma lógica retroativa e dialética da história, desafiando as formas convencionais de se pensar o tempo como um fluxo linear de eventos ou um progresso teleológico contínuo. O teórico esloveno introduz o que pode ser chamado de uma temporalidade “não linear” (ou “curvada”), em que passado, presente e futuro se entrelaçam de maneira contingente e dialética.
Para Žižek, o tempo não deve ser entendido de forma linear e progressiva. Inspirado pelo conceito lacaniano de Nachträglichkeit — “retroatividade” ou “ação a posteriori” — Žižek afirma que os eventos históricos adquirem seu significado total apenas retrospectivamente, quando seus efeitos são realizados no futuro. O sentido do passado, portanto, não é fixo no momento em que ocorre, mas continuamente rearticulado à luz de novos eventos e interpretações futuras. O presente, assim, não é o simples resultado linear do passado, mas o ponto em que o passado se torna compreensível, sendo retroativamente reconstruído por nossas experiências atuais. Isso cria uma temporalidade “não fechada”, onde o significado do passado permanece sempre aberto à reinterpretação.
A compreensão de temporalidade histórica de Žižek é, portanto, dialética e profundamente hegeliana. Para Hegel, a história se move através de contradições em um processo de Aufhebung (superação), em que cada momento carrega a negação de sua própria totalidade e é superado em um estágio subsequente. S. Žižek adota essa visão hegeliana de uma história marcada por rupturas e contradições, mas vai além ao incorporar as noções lacanianas do “Real” e da incompletude do sujeito. O tempo histórico, para ele, não se move progressivamente em direção a um objetivo predeterminado, como na concepção teleológica marxista, mas é um campo aberto de tensões e antagonismos. A “totalidade” da história, em seu sentido dialético, não é uma realização plena e harmoniosa, mas uma totalidade “rachada”, sempre marcada por negações e impossibilidades de fechamento. Nesse sentido, o futuro nunca está “garantido” de antemão, pois está sujeito à contingência e à ruptura.
Um dos conceitos que Žižek utiliza para explorar essa dialética da temporalidade é o de “futuro anterior” (le futur antérieur), uma noção paradoxal em que o futuro só pode ser plenamente compreendido quando já se tornou passado. O que está por vir só fará sentido retrospectivamente, após sua realização. Essa noção está profundamente enraizada na dialética hegeliana, onde o verdadeiro significado de um evento só é revelado após sua concretização. Ao aplicar essa ideia à revelação escatológica, Žižek sugere que o evento final da história — seja a redenção ou o “fim dos tempos” — só será plenamente compreendido retroativamente, quando sua totalidade tiver sido superada. Curiosamente, a quem Žižek recorre para fundamentar seu argumento? Nesse contexto, ele evoca a teologia de Karl Barth, que afirma que, mesmo que possamos ter uma intuição sobre o que o futuro nos reserva (seja redenção ou condenação), ele será sempre radicalmente imprevisível e incomensurável. A revelação divina ou (o Juízo Final), portanto, escapa totalmente à antecipação humana e só pode ser integrado retroativamente, tal como o “Real” lacaniano.
Barth é citado nesse contexto para reforçar a noção de que o desfecho final está além de qualquer cálculo humano. Para Barth, o Juízo Final é um evento cujas dimensões são desconhecidas e imprevisíveis até que aconteçam. Ao tratar da escatologia de Barth, é essencial destacar que Barth não elimina a confiança no propósito final divino, o que diferencia sua abordagem da de Žižek, que rejeita qualquer tipo de certeza transcendental. Barth mantém uma fé na soberania divina, mesmo que o modo como o desfecho escatológico acontecerá seja imprevisível. Žižek adota essa concepção para discutir a temporalidade da história e sua imprevisibilidade, mas em uma chave materialista e dialética, e não teológica. A imprevisibilidade do futuro, na visão de Žižek, não implica necessariamente uma certeza transcendente — como seria o caso em Barth, que mantém a fé na soberania divina sobre o futuro. Para Žižek, a imprevisibilidade está relacionada ao modo como a história e a realidade são, por natureza, contingentes e retroativas. Mesmo assim, ao evocar Barth, Žižek usa uma metáfora teológica para expressar a imprevisibilidade radical da realidade, sem apelar para a ideia de um desfecho garantido por uma providência divina.
Imagem: DALL-E
Quando comparada à leitura marxista da história, a divergência torna-se ainda mais evidente. O marxismo ortodoxo propõe uma visão teleológica da história, em que a luta de classes conduz a um desfecho predeterminado — a revolução proletária e o advento do comunismo. No materialismo histórico marxista, a história segue leis objetivas e o progresso é inevitável, movendo-se de um estágio de desenvolvimento ao outro, com o fim determinado pela superação das contradições do capitalismo. Um exemplo seria a dissolução da União Soviética em 1991, que, para muitos marxistas, desafiou a noção de que o socialismo seria o próximo estágio inevitável da evolução histórica. Para Marx, a história é linear e, embora dialética, orientada em direção a um objetivo final — a emancipação da classe trabalhadora.
Žižek, por outro lado, rejeita qualquer tipo de teleologia fixa. A sua dialética não aponta para um fim garantido ou predeterminado. O futuro, para ele, é marcado pela contingência, e a resolução das contradições da história nunca é definitiva ou final. A história, nesse sentido, não se move de maneira progressiva rumo ao comunismo ou qualquer outro destino garantido. A dialética de Žižek é “rachada”, sem fechamento total, sempre aberta a novas rupturas e contradições. Ao contrário do marxismo, que prevê uma superação das contradições históricas, Žižek entende a história como um processo contínuo de rupturas e reconfigurações, onde o futuro não pode ser antecipado.
Essa diferença fundamental é acentuada pela maneira como Žižek entende o papel da retroatividade na história. Enquanto o marxismo vê o desenvolvimento histórico como progressivo, avançando em estágios que conduzem a um fim, Žižek argumenta que o sentido da história é construído retroativamente. Os eventos passados ganham significado à medida que o futuro se desdobra, reconfigurando continuamente o que veio antes. O futuro não é predeterminado, mas está sempre em aberto, sujeito a intervenções contingentes e momentos de ruptura. A queda do Muro de Berlim, por exemplo, foi um momento que reconfigurou retroativamente a história da Guerra Fria e a percepção da viabilidade do socialismo real, abrindo novas possibilidades históricas imprevisíveis.
Além disso, a visão de Žižek sobre o sujeito histórico também diverge da leitura marxista. No marxismo, a classe proletária é vista como o agente revolucionário que move a história em direção à superação das contradições de classe. Para Žižek, no entanto, o sujeito é rachado e incompleto, sempre em tensão consigo mesmo. O sujeito histórico, para Žižek, não é um agente coeso que segue uma trajetória linear de emancipação. Ele é marcado pelo “Real” lacaniano — uma dimensão da realidade que resiste à simbolização plena e que impede qualquer totalização final. Isso significa que o sujeito, assim como a história, não pode ser unificado ou resolvido de maneira definitiva. Movimentos como Occupy Wall Street e os protestos de Hong Kong são exemplos de como a fragmentação do sujeito revolucionário reflete essa incompletude e divisão.
Ao contrário de uma narrativa histórica predeterminada por forças teleológicas ou estruturais, Žižek enfatiza a contingência e a ruptura. A história é repleta de momentos de descontinuidade, onde novas possibilidades surgem de maneira inesperada. Esses momentos de ruptura não podem ser explicados como meras consequências de desenvolvimentos lineares, mas representam verdadeiros eventos no sentido badiouiano, que rompem com a continuidade temporal e inauguram novas trajetórias. Esses eventos não são previsíveis, nem seguem uma lógica pré-estabelecida; ao contrário, são intervenções contingentes que quebram a linearidade do tempo homogêneo.
Žižek, então, contrasta essa visão com o que ele chama de “tempo homogêneo e vazio” — uma noção de tempo sem rupturas, onde a história simplesmente se arrasta sem eventos significativos. Para Žižek, a história não é esse campo de continuidade sem surpresas; ao contrário, ela é o espaço onde verdadeiros eventos podem ocorrer — momentos em que algo radicalmente novo surge e transforma as coordenadas temporais e ontológicas. Nessa perspectiva, o fim da história nunca é um fechamento total. A temporalidade dialética não é contida por uma teleologia fixa e o “fim” nunca se manifesta como um ponto de conclusão, mas como um novo começo, marcado por contradições e rupturas renovadas.
Portanto, enquanto o marxismo prevê um fim definitivo para a história — o comunismo como a superação final das contradições de classe — Žižek rejeita essa ideia de fechamento final. A história, em sua concepção, é marcada por contradições e rupturas contínuas, sem um fim garantido ou predeterminado. O futuro, para Žižek, é radicalmente contingente e imprevisível, e o sujeito histórico é incompleto e rachado. A visão de Žižek sobre a temporalidade histórica, portanto, reflete uma ruptura com a leitura marxista da história, especialmente em termos de teleologia, causalidade e a relação entre sujeito e história.
Referências
BARTH, Karl. Esboço de uma Dogmática. São Paulo: Fonte viva, 2019.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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