sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Paradoxo e Graça: A Soberania Divina e a Liberdade Humana em Karl Barth

A religião, em si, não é pecado, assim como nenhuma outra capacidade ou possibilidade humana o é, pois o pecado é algo muito mais profundo do que uma simples possibilidade. Pelo contrário, a religião é o ponto em que todas as capacidades humanas são expostas à luz divina. Colocada no contexto deste mundo, à parte daquilo que é propriamente divino, a religião representa o divino por delegação, como uma sombra ou uma imagem refletida; talvez uma cópia ou, de certa maneira, um negativo. No entanto, ela própria não é divina. Por isso, a religião, neste mundo, é indiscutivelmente sagrada. É através da religião que o divino é testemunhado no curso das atividades humanas; é a religião que fala de justiça, que repele as coisas meramente humanas e aponta para Deus. A religião corre em paralelo à vontade divina e reflete sua própria semelhança. Ela é o bem que testemunha o desenvolvimento da condição humana e a relação perdida com Deus, agora mediada de forma indireta pela própria religião. (...) No entanto, quanto mais profundamente nos mergulhamos na religiosidade, quanto mais intensa ela se torna, mais densas e profundas serão, sobre nós, as sombras da morte.
Karl Barth

A Carta aos Romanos, de Karl Barth (1886-1968), publicada pela primeira vez em 1919, é amplamente reconhecida como uma obra fundadora da Teologia Dialética e da chamada “Teologia da Crise”, representando uma virada profunda na teologia protestante do século XX. Esta obra surge em um contexto de desilusão com as correntes teológicas liberais, que buscavam reconciliar o cristianismo com as filosofias modernas e os avanços culturais do Iluminismo. Para Barth, essa tentativa de harmonizar a fé cristã com a razão moderna e o progresso humano resultava na domesticação da Transcendência, subordinando-a às categorias humanas de compreensão. Barth se opôs vigorosamente a essa abordagem, reafirmando a alteridade radical de Deus, sua absoluta soberania, e a incapacidade do ser humano de alcançar ou compreender o divino por conta própria. Esse pano de fundo teológico é essencial para entendermos o desenvolvimento do pensamento de Barth, especialmente no capítulo 7 da Carta aos Romanos, onde ele aborda questões relacionadas à liberdade e à religião a partir da análise da própria epístola de Paulo aos Romanos.

No capítulo 7 da Carta aos Romanos, Barth debruça-se sobre os versículos 7 a 25 da carta de Paulo, explorando a tensão entre a lei, o pecado e o desejo humano de fazer o bem. Este trecho é central para a compreensão da natureza da liberdade, da religião e da soberania divina. Para Paulo (Rm 7.19), o “bem que quero fazer, não consigo realizar; mas o mal que não quero, acabo praticando” (Τὸ γὰρ ἀγαθὸν ὃ θέλω οὐ ποιῶ, ἀλλὰ ὃ οὐ θέλω κακὸν τοῦτο πράσσω)  expressa a condição humana de fracasso moral e espiritual diante da lei divina, uma condição que Barth interpreta como a exposição das limitações fundamentais da religião. Para Barth, a religião, enquanto o esforço humano de alcançar a Deus por meio da obediência à lei (ou da prática ritual), está condenada ao fracasso precisamente porque é uma criação humana. Ao tentar, por seus próprios esforços, submeter-se à vontade de Deus, o homem religioso se revela prisioneiro do pecado, perpetuando sua alienação de Deus. A religião, portanto, não apenas falha em aproximar o ser humano de Deus, como também revela a incapacidade humana de viver de acordo com a santidade exigida pela lei. Para Barth, o único caminho para a liberdade está na ação soberana de Deus, e não na observância religiosa.

A crítica de Barth à religião, e seu foco na soberania de Deus, encontra importantes paralelos com a teologia de João Calvino, figura central da tradição reformada que Barth tanto respeitava e cuja influência é palpável em sua obra. Para Calvino, a doutrina da predestinação é central para compreender a relação entre o ser humano e Deus. Deus, em sua soberania absoluta, escolhe quem será salvo e quem será condenado, não com base em qualquer mérito humano, mas segundo o conselho de sua própria vontade. Assim como Barth, Calvino rejeita a ideia de que o ser humano pode, por meio de suas obras (ou da observância da lei), obter a salvação ou justificar-se diante de Deus. A eleição e a redenção são atos unilaterais de Deus, que demonstram sua liberdade para agir conforme sua vontade soberana. Essa doutrina ecoa de maneira profunda na análise de Barth sobre Romanos 7: a religião, enquanto expressão máxima da tentativa humana de alcançar a Deus, está fadada ao fracasso, pois depende da suposição de que o ser humano pode, de alguma forma, merecer ou conquistar a salvação. Tanto para Calvino quanto para Barth, a salvação é um ato de graça, e não de justiça meritória.

A doutrina da justificação pela fé, outro pilar da teologia calvinista, também se entrelaça com a leitura barthiana do capítulo 7 de Romanos. Calvino enfatizava que a justificação — ou seja, o ato de Deus declarar o pecador justo — é concedida unicamente pela fé em Jesus Cristo, sem qualquer contribuição das obras humanas. Essa compreensão é essencial para a teologia reformada e para a crítica de Barth à religião em Romanos 7. Para ambos, a lei revela o pecado, mas não pode justificá-lo. A única resposta adequada à condição de alienação e impotência diante do pecado é a fé na obra redentora de Cristo, que nos reconcilia com Deus. Barth, em sua exegese, enfatiza que a tentativa de seguir a lei por meio da religião é uma manifestação do orgulho humano, que tenta alcançar a justiça por esforço próprio. Assim, ele converge com Calvino na ideia de que a religião, ao tentar cumprir a lei, acaba apenas confirmando a necessidade de uma intervenção divina, pois é a fé — e não as obras — que conecta o ser humano à salvação. Nesse sentido, a justificação pela fé é uma libertação, pois a verdadeira liberdade não é encontrada no cumprimento da lei, mas na aceitação da graça de Deus em Cristo.

Imagem: DALL-E

Barth também desenvolve sua análise através da lente de sua teologia dialética, uma abordagem que mantém tensões teológicas como a que existe entre a justiça de Deus e a pecaminosidade humana, ou entre a lei e a graça, sem resolvê-las de maneira simplista. Essa dialética é essencial para compreender sua visão de liberdade. A liberdade de Deus transcende completamente as categorias humanas de moralidade e justiça, e essa liberdade se manifesta na sua capacidade de conceder graça independentemente dos esforços humanos. Tal como Calvino ao defender que Deus é livre para eleger aqueles que ele salvará, Barth argumenta que a liberdade de Deus é a única fonte da verdadeira redenção. Assim, a religião, com suas tentativas de prever ou condicionar a ação divina, fracassa ao tentar aprisionar Deus dentro de seus sistemas, pois a ação de Deus é livre, soberana e não está sujeita às tentativas humanas de controle.

Além disso, há um aspecto sutil mas relevante no pensamento de Barth, que alguns teólogos contemporâneos chamam de universalismo implícito. Embora Barth não tenha defendido explicitamente um universalismo teológico, sua insistência na centralidade de Cristo e na eleição divina abre espaço para pensar que, em Cristo, a humanidade como um todo foi eleita. Calvino, por outro lado, defendia uma doutrina mais restritiva da eleição, em que Deus escolhe alguns para a salvação e outros para a condenação. Barth, ao sugerir que a eleição ocorre em Cristo e que todos os seres humanos participam, de algum modo, dessa eleição, abre a possibilidade de que a graça divina tenha um alcance mais amplo do que a teologia reformada tradicional concebia. Contudo, Barth evita afirmar de maneira definitiva que todos serão salvos, deixando essa questão nas mãos da liberdade divina. Essa tensão, entre a soberania de Deus e a extensão da graça, tanto em Barth quanto em Calvino, aponta para a profundidade do mistério da eleição e da graça, que não pode ser compreendida completamente pelas categorias humanas de justiça e moralidade.

Ao fim, Barth nos oferece, em sua leitura de Romanos 7, uma visão profundamente teocêntrica da liberdade. A religião, com sua ênfase na lei e nos rituais, é incapaz de libertar o ser humano, pois depende de uma compreensão limitada da justiça. A verdadeira liberdade é a liberdade de Deus, que se manifesta na graça e que nos é concedida em Cristo. Ao integrar elementos da teologia calvinista, como a soberania divina e a justificação pela fé, essa crítica de Barth à religião se torna ainda mais robusta, demonstrando que a tentativa humana de controlar ou manipular a ação divina é fútil. Em última análise, a salvação e a liberdade são dons soberanos da graça de Deus, e é somente pela fé em Cristo, e não pela observância da lei ou pelos méritos humanos, que o ser humano pode ser verdadeiramente reconciliado com Deus. Barth, portanto, ao criticar a religião e enfatizar a soberania de Deus, nos lembra da centralidade da graça divina na história da salvação, ecoando o espírito reformado de Calvino e expandindo a compreensão de como a liberdade divina transcende todas as categorias humanas.

Ademais, a dialética teológica de Barth, que permeia toda a sua obra inicial, mantém o paradoxo como um elemento central. Para o teólogo de Basileia, a relação entre o humano e o divino não pode ser resolvida ou reconciliada por meio de categorias racionais. Deus permanece transcendente, e sua revelação é sempre uma interrupção surpreendente na ordem humana. A graça é o elemento disruptivo que Barth coloca em oposição às tentativas de controle moral ou religioso, tornando a salvação algo que irrompe “de fora” e não pode ser planejada ou prevista. E, curiosamente, essa mesma estrutura dialética é central no pensamento de Slavoj Žižek, cujo projeto filosófico também mantém o paradoxo e a tensão como pontos constitutivos.

Embora Žižek seja ateu, ele explora a teologia cristã como um campo de potencial subversão radical. Em sua obra A Marioneta e o Anão, Žižek utiliza o cristianismo, particularmente em sua vertente paulina, para explorar a dialética entre o evento da revelação e o colapso da ordem simbólica. Para Žižek, o cristianismo não é simplesmente uma religião, mas um espaço onde as contradições fundamentais da ideologia e da subjetividade podem ser reveladas e desconstruídas. A figura de Cristo, e particularmente o evento da crucificação, representa para Žižek o momento em que Deus “abandona” o mundo, expondo a falha da ordem simbólica e revelando a necessidade de um novo começo radical.

Žižek, portanto, vê a dialética cristã como uma ferramenta para a crítica ideológica. Ele não está interessado em resolver a tensão entre o humano e o divino, mas em utilizar essa tensão para subverter as categorias de poder e autoridade. Assim, enquanto Barth mantinha o paradoxo como uma forma de preservar a transcendência de Deus (e a gratuidade da graça), S. Žižek utiliza esse mesmo paradoxo para desmantelar as pretensões da religião e revelar a fragilidade da estrutura social e ideológica. Essa distinção é essencial para compreender o projeto teórico metodológico de Žižek, que difere do objetivo teológico de Barth, mas compartilha com ele a recusa em harmonizar as contradições.

Em Žižek, o “divino” não é uma realidade transcendental no sentido clássico, mas um campo conceitual que expõe o colapso da ordem simbólica e o fracasso humano em sustentar qualquer narrativa unificada da realidade. Enquanto Barth via a religião como uma falha humana em reconhecer a soberania de Deus, Žižek vê nela o reflexo das contradições ideológicas que sustentam o poder simbólico. O paradoxo, para ambos, não é um problema a ser resolvido, mas uma condição necessária para a transformação — seja na ordem teológica (em Barth) ou na ordem social e ideológica (em Žižek).

Pergunta-se: em termos teórico metodológicos, quais são as diferenças entre o paradoxo e a dialética? Na obra A Marioneta e o Anão, Slavoj Žižek explora de maneira rigorosa a relação entre o paradoxo e a dialética, tensionando esses dois conceitos de maneiras distintas, mas complementares. Em diversos momentos, ele aborda a crítica ao cristianismo e ao judaísmo, identificando um paradoxo intrínseco à própria Lei. Para Žižek, a Lei, ao impor uma série de preceitos e normas, já pressupõe sua transgressão: a Lei não pode funcionar sem o excesso que ela própria engendra. Nesse sentido, o paradoxo se manifesta como um círculo vicioso entre a obediência e a violação, especialmente no contexto da teologia paulina, em que a Lei não só convoca o sujeito à obediência, mas, ao mesmo tempo, gera o desejo de transgressão. O paradoxo aqui exposto é que a própria existência da Lei depende da possibilidade de sua violação, criando uma relação irresolvível entre Lei e pecado.

Entretanto, Žižek não se limita a uma leitura que permaneça no paradoxo. Utilizando uma abordagem dialética hegeliana, ele argumenta que as contradições reveladas pelo paradoxo podem ser superadas em um movimento mais profundo de transformação. A dialética, ao contrário do paradoxo, não apenas mantém os opostos em tensão, mas cria algo novo a partir deles. Um exemplo claro desse movimento dialético em Žižek é a forma como ele interpreta o “excesso de Amor em relação à Lei”. Para Žižek, esse amor, que aparenta estar em oposição à Lei, na verdade não apenas rompe com ela, mas revela uma nova forma de “Lei para além da Lei” (Ver: João 13:34; Mateus 22:37-39; 1 Coríntios 13:1-13). Este movimento dialético não destrói a Lei, mas transforma o seu significado, abrindo novas possibilidades para o sujeito se relacionar com o divino e com o próprio conceito de justiça.

Portanto, em Žižek, o paradoxo e a dialética não são conceitos estanques, mas ferramentas teóricas que ele usa para desestabilizar as estruturas simbólicas e expor as contradições internas da ideologia e da subjetividade humanas. Enquanto o paradoxo marca o limite da lógica convencional — o ponto onde as contradições são expostas, mas não resolvidas —, a dialética é o processo que gera uma nova síntese a partir dessas contradições. Essa dinâmica é central tanto em sua crítica à religião quanto em seu projeto filosófico mais amplo, que busca revelar a fragilidade das estruturas normativas e simbólicas que governam a vida social e política. Ao fazer isso, Žižek vai além da simples manutenção do paradoxo, transformando-o em um motor de mudança dialética, o que ecoa, em certa medida, o tratamento de Karl Barth às tensões entre Lei, graça e liberdade, embora com implicações teológicas e filosóficas divergentes.

Ao integrar a análise dialética e o paradoxo entre Karl Barth e Slavoj Žižek, é possível perceber como ambos mantêm a tensão como elemento constitutivo de seus projetos. Para Barth, o paradoxo da relação entre o divino e o humano preserva a transcendência absoluta de Deus e a natureza disruptiva da revelação. Para Žižek, o paradoxo serve para expor as falhas da ideologia e abrir um espaço para a subversão do simbólico. Assim, embora suas intenções teológicas e filosóficas difiram, ambos encontram no paradoxo e na dialética o meio de articular uma crítica radical à ordem estabelecida, seja ela teológica ou social.

Referências
BARTH, Karl. A Epístola aos Romanos. Traduzido da 5ª edição alemã. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
ŽIŽEK, Slavoj. A Marioneta e o Anão: O Cristianismo Entre a Perversão e a Subversão. Lisboa: Relógio D´agua, 2006.

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