A beleza da forma no pensamento de Calvino
O protestantismo evangélico brasileiro desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma espiritualidade marcada pela resistência às formas litúrgicas, pela negligência dos sacramentos e pela valorização quase absoluta da subjetividade individual. Com frequência, tais tendências são apresentadas como herança legítima da Reforma. No entanto, uma leitura cuidadosa das Institutas da Religião Cristã revela que, para João Calvino, culto público, oração comum e celebrações sacramentais não são acessórios da fé, mas meios ordinários pelos quais o Espírito Santo comunica a graça de Cristo à sua Igreja. Formas, para Calvino, não são meras estruturas externas, mas veículos espirituais da presença viva de Deus no meio do seu povo.
No Livro IV das Institutas, Calvino descreve o culto dominical como o momento em que Deus “nos nutre ainda em nossa peregrinação terrestre”, reunindo-nos em torno da Palavra e dos sacramentos (Inst. IV.1.1). O culto, nesse horizonte, é um ato eclesial no sentido mais profundo: um encontro do povo com seu Senhor, mediado pelo ministério da Palavra, pela oração da comunidade e pela celebração dos sinais visíveis da graça. Reunir-se para adorar, ouvir, orar e comungar é responder ao chamado de Deus que forma seu povo, não apenas como indivíduos regenerados, mas como corpo vivo, unido em Cristo.
A oração do Senhor ocupa um lugar especial no Livro III, capítulo XX, em que Calvino apresenta o Pai Nosso como “regra e modelo perfeito” da oração cristã (Inst. III.20.34). Longe de vê-lo como uma repetição mecânica, ele o considera a expressão ordenada dos desejos que convêm aos filhos de Deus. Nele, aprendemos a subordinar nossas vontades ao Reino, a desejar o pão necessário, a viver do perdão e da confiança. Abandonar tal oração em nome de uma espontaneidade desregulada não é, para Calvino, sinal de maturidade espiritual, mas sintoma de desorientação teológica. A oração ensinada por Cristo à sua Igreja é forma viva que nos educa no caminho da fé.
A centralidade da forma em Calvino se evidencia também na recepção do Credo dos Apóstolos (Inst. II.16.18) , tratado com rigor teológico e reverência pedagógica no Livro II, capítulo XVI das Institutas. Longe de funcionar como adereço litúrgico, o símbolo da fé é, para ele, uma matriz expositiva da doutrina cristã: um “sumário autorizado da fé apostólica”, desde que submetido ao juízo da Escritura. O Credo forma a Igreja pela confissão comum — linguagem partilhada que antecede a subjetividade e sustenta a unidade. Ao professar “creio na santa Igreja católica”, Calvino interpreta “católica” como a comunhão espiritual de todos os fiéis reunidos sob a Palavra, e não como jurisdição institucional. Sua adesão ao símbolo demonstra que a forma verbal herdada — como a oração, os sacramentos e o culto — é também espaço de formação eclesial e mediação fiel da verdade evangélica.
Essa mesma reverência às formas se expressa na doutrina dos sacramentos. Nos capítulos XIV a XVII do Livro IV, Calvino trata com profundidade o Batismo e a Ceia do Senhor, os únicos sacramentos instituídos por Cristo. Ele os define como “sinais visíveis de uma graça invisível” (Inst. IV.14.1), eficazes não por si mesmos, mas pela Palavra a eles unida e pela fé que os recebe. O Batismo infantil, em especial, manifesta a natureza da aliança: a graça antecede a resposta, e Deus se compromete com o crente e com sua descendência. “As crianças são batizadas porque pertencem à aliança, e a promessa lhes é tão válida quanto aos adultos” (Inst. IV.16.6–7). O batismo, assim compreendido, é expressão da catolicidade da fé: um ato que insere na história da salvação aqueles que ainda não têm palavra, mas pertencem ao povo de Deus.
Essa compreensão do culto como estrutura pedagógica e espiritual da Igreja não é um detalhe periférico no pensamento de Calvino, mas sua espinha dorsal eclesiológica. A Igreja não subsiste sem a pregação fiel da Palavra nem sem a administração regular dos sacramentos (Inst. IV.1.9–10). Por isso, a tendência contemporânea de reduzir o culto à performance, a oração à improvisação e os sacramentos a meras cerimônias ocasionais representa não um retorno às fontes da fé, mas um distanciamento de sua forma mais bíblica e reformada.
A realidade que hoje se impõe em muitos contextos evangélicos é a de um culto dissolvido em emoção, uma fé privada de corpo, uma Igreja sem forma. O que se perdeu não foi apenas uma estética da adoração, mas a própria capacidade do culto de formar, orientar e sustentar a vida cristã. Calvino via na liturgia — mesmo em sua simplicidade reformada — uma estrutura espiritual ordenadora, que ao mesmo tempo limita os excessos da subjetividade e revela a beleza do Deus que se dá na Palavra e no sinal. Reduzir o culto à espontaneidade é esquecer que a verdadeira liberdade do Espírito se manifesta, muitas vezes, na obediência a formas que nos antecedem e nos conformam à imagem de Cristo.
Resgatar essa visão do culto não é saudosismo, mas exercício de fidelidade teológica. O culto dominical, com suas leituras, suas orações herdadas, sua administração dos sacramentos e sua escuta coletiva, é o coração visível da fé cristã. Nele, a Igreja não apenas recorda, mas participa do mistério pascal; não apenas fala, mas é falada; não apenas crê, mas é formada na fé.
Hoje já não frequento as igrejas reformadas, tendo me afastado por razões teológicas e existenciais que foram se acumulando ao longo dos anos. Ainda assim, confesso: a forma do culto — sua sobriedade reverente, sua fidelidade à Escritura, sua beleza austera — sempre me cativou. Havia nela algo da catolicidade da fé cristã: não como pertença institucional, mas como continuidade viva com a Igreja de todos os tempos, que ora, batiza, parte o pão e espera o Reino. Lamento que tal herança, outrora guardada com zelo, tenha se degenerado em tantos contextos evangélicos. A forma sobrevive hoje, com nobreza e solenidade, na liturgia romana e em pequenos guetos ecumênicos — fragmentos de uma memória viva que a espiritualidade contemporânea parece ter esquecido. E com ela, esquecemos também que a fé se faz corpo, que o corpo precisa de forma, e que a forma, quando nascida da Palavra, é expressão da verdade que salva e sustenta.
Esta breve reflexão, ao recuperar a centralidade do culto, da forma e dos meios visíveis de graça no pensamento de Calvino, se constitui como um contraponto deliberado a outra reflexão que escrevi, nascida da experiência de desenraizamento e da crise com a identidade evangélica contemporânea. Ali, movido por Kierkegaard e Barth, afirmei que a fé se manifesta, muitas vezes, como escândalo contra a própria religião; que Deus irrompe como juízo — sobretudo contra as formas que o pretendem conter. Afirmei, com convicção, que o Evangelho clama “fora dos portões”, onde o Cristo crucificado desautoriza os poderes da religião cooptada. A saída da instituição, nesse horizonte, não é desobediência, mas possibilidade escatológica: uma recusa a tudo que se apresenta como sagrado e absoluto sem acolher o escândalo da graça.
Contudo, este texto se volta à dimensão construtiva da forma, não como dominação ou estética vazia, mas como hospitalidade da fé no tempo. Se, naquele escrito, o culto era suspenso como gesto de ruptura, aqui ele ressurge como forma fraterna e ordenadora da esperança. Entre a denúncia profética e a permanência litúrgica, não há contradição: há tensão. A mesma fé que se refugia fora das formas pode, em outros momentos, precisar ser sustentada por elas. O culto de Calvino, com sua sobriedade e fidelidade à Palavra, é expressão dessa tensão reconciliada. Forma que não pretende conter Deus, mas acolher sua vinda. Palavra que não substitui o Espírito, mas o aguarda. Sacramento que não é mágica, mas memória viva do dom. E se hoje tais expressões sobrevivem, com beleza e profundidade, sobretudo na liturgia romana e em pequenos círculos ecumênicos, é talvez porque, fora delas, a fé, ao se livrar das formas, também corre o risco de perder sua carne. Esta reflexão, assim, não contradiz a anterior, mas a prolonga: onde antes houve rasura, aqui se recupera o traço — ainda que tremido — de uma forma capaz de sustentar a fé como espera, como escuta e como comunhão.