sexta-feira, 9 de maio de 2025

Entre a Palavra e o Rito:

 A beleza da forma no pensamento de Calvino

O protestantismo evangélico brasileiro desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma espiritualidade marcada pela resistência às formas litúrgicas, pela negligência dos sacramentos e pela valorização quase absoluta da subjetividade individual. Com frequência, tais tendências são apresentadas como herança legítima da Reforma. No entanto, uma leitura cuidadosa das Institutas da Religião Cristã revela que, para João Calvino, culto público, oração comum e celebrações sacramentais não são acessórios da fé, mas meios ordinários pelos quais o Espírito Santo comunica a graça de Cristo à sua Igreja. Formas, para Calvino, não são meras estruturas externas, mas veículos espirituais da presença viva de Deus no meio do seu povo.

No Livro IV das Institutas, Calvino descreve o culto dominical como o momento em que Deus “nos nutre ainda em nossa peregrinação terrestre”, reunindo-nos em torno da Palavra e dos sacramentos (Inst. IV.1.1). O culto, nesse horizonte, é um ato eclesial no sentido mais profundo: um encontro do povo com seu Senhor, mediado pelo ministério da Palavra, pela oração da comunidade e pela celebração dos sinais visíveis da graça. Reunir-se para adorar, ouvir, orar e comungar é responder ao chamado de Deus que forma seu povo, não apenas como indivíduos regenerados, mas como corpo vivo, unido em Cristo.

A oração do Senhor ocupa um lugar especial no Livro III, capítulo XX, em que Calvino apresenta o Pai Nosso como “regra e modelo perfeito” da oração cristã (Inst. III.20.34). Longe de vê-lo como uma repetição mecânica, ele o considera a expressão ordenada dos desejos que convêm aos filhos de Deus. Nele, aprendemos a subordinar nossas vontades ao Reino, a desejar o pão necessário, a viver do perdão e da confiança. Abandonar tal oração em nome de uma espontaneidade desregulada não é, para Calvino, sinal de maturidade espiritual, mas sintoma de desorientação teológica. A oração ensinada por Cristo à sua Igreja é forma viva que nos educa no caminho da fé.

A centralidade da forma em Calvino se evidencia também na recepção do Credo dos Apóstolos (Inst. II.16.18) , tratado com rigor teológico e reverência pedagógica no Livro II, capítulo XVI das Institutas. Longe de funcionar como adereço litúrgico, o símbolo da fé é, para ele, uma matriz expositiva da doutrina cristã: um “sumário autorizado da fé apostólica”, desde que submetido ao juízo da Escritura. O Credo forma a Igreja pela confissão comum — linguagem partilhada que antecede a subjetividade e sustenta a unidade. Ao professar “creio na santa Igreja católica”, Calvino interpreta “católica” como a comunhão espiritual de todos os fiéis reunidos sob a Palavra, e não como jurisdição institucional. Sua adesão ao símbolo demonstra que a forma verbal herdada — como a oração, os sacramentos e o culto — é também espaço de formação eclesial e mediação fiel da verdade evangélica.

Essa mesma reverência às formas se expressa na doutrina dos sacramentos. Nos capítulos XIV a XVII do Livro IV, Calvino trata com profundidade o Batismo e a Ceia do Senhor, os únicos sacramentos instituídos por Cristo. Ele os define como “sinais visíveis de uma graça invisível” (Inst. IV.14.1), eficazes não por si mesmos, mas pela Palavra a eles unida e pela fé que os recebe. O Batismo infantil, em especial, manifesta a natureza da aliança: a graça antecede a resposta, e Deus se compromete com o crente e com sua descendência. “As crianças são batizadas porque pertencem à aliança, e a promessa lhes é tão válida quanto aos adultos” (Inst. IV.16.6–7). O batismo, assim compreendido, é expressão da catolicidade da fé: um ato que insere na história da salvação aqueles que ainda não têm palavra, mas pertencem ao povo de Deus.

Essa compreensão do culto como estrutura pedagógica e espiritual da Igreja não é um detalhe periférico no pensamento de Calvino, mas sua espinha dorsal eclesiológica. A Igreja não subsiste sem a pregação fiel da Palavra nem sem a administração regular dos sacramentos (Inst. IV.1.9–10). Por isso, a tendência contemporânea de reduzir o culto à performance, a oração à improvisação e os sacramentos a meras cerimônias ocasionais representa não um retorno às fontes da fé, mas um distanciamento de sua forma mais bíblica e reformada.


A realidade que hoje se impõe em muitos contextos evangélicos é a de um culto dissolvido em emoção, uma fé privada de corpo, uma Igreja sem forma. O que se perdeu não foi apenas uma estética da adoração, mas a própria capacidade do culto de formar, orientar e sustentar a vida cristã. Calvino via na liturgia — mesmo em sua simplicidade reformada — uma estrutura espiritual ordenadora, que ao mesmo tempo limita os excessos da subjetividade e revela a beleza do Deus que se dá na Palavra e no sinal. Reduzir o culto à espontaneidade é esquecer que a verdadeira liberdade do Espírito se manifesta, muitas vezes, na obediência a formas que nos antecedem e nos conformam à imagem de Cristo.

Resgatar essa visão do culto não é saudosismo, mas exercício de fidelidade teológica. O culto dominical, com suas leituras, suas orações herdadas, sua administração dos sacramentos e sua escuta coletiva, é o coração visível da fé cristã. Nele, a Igreja não apenas recorda, mas participa do mistério pascal; não apenas fala, mas é falada; não apenas crê, mas é formada na fé.

Hoje já não frequento as igrejas reformadas, tendo me afastado por razões teológicas e existenciais que foram se acumulando ao longo dos anos. Ainda assim, confesso: a forma do culto — sua sobriedade reverente, sua fidelidade à Escritura, sua beleza austera — sempre me cativou. Havia nela algo da catolicidade da fé cristã: não como pertença institucional, mas como continuidade viva com a Igreja de todos os tempos, que ora, batiza, parte o pão e espera o Reino. Lamento que tal herança, outrora guardada com zelo, tenha se degenerado em tantos contextos evangélicos. A forma sobrevive hoje, com nobreza e solenidade, na liturgia romana e em pequenos guetos ecumênicos — fragmentos de uma memória viva que a espiritualidade contemporânea parece ter esquecido. E com ela, esquecemos também que a fé se faz corpo, que o corpo precisa de forma, e que a forma, quando nascida da Palavra, é expressão da verdade que salva e sustenta.

Esta breve reflexão, ao recuperar a centralidade do culto, da forma e dos meios visíveis de graça no pensamento de Calvino, se constitui como um contraponto deliberado a outra reflexão que escrevi, nascida da experiência de desenraizamento e da crise com a identidade evangélica contemporânea. Ali, movido por Kierkegaard e Barth, afirmei que a fé se manifesta, muitas vezes, como escândalo contra a própria religião; que Deus irrompe como juízo — sobretudo contra as formas que o pretendem conter. Afirmei, com convicção, que o Evangelho clama “fora dos portões”, onde o Cristo crucificado desautoriza os poderes da religião cooptada. A saída da instituição, nesse horizonte, não é desobediência, mas possibilidade escatológica: uma recusa a tudo que se apresenta como sagrado e absoluto sem acolher o escândalo da graça.

Contudo, este texto se volta à dimensão construtiva da forma, não como dominação ou estética vazia, mas como hospitalidade da fé no tempo. Se, naquele escrito, o culto era suspenso como gesto de ruptura, aqui ele ressurge como forma fraterna e ordenadora da esperança. Entre a denúncia profética e a permanência litúrgica, não há contradição: há tensão. A mesma fé que se refugia fora das formas pode, em outros momentos, precisar ser sustentada por elas. O culto de Calvino, com sua sobriedade e fidelidade à Palavra, é expressão dessa tensão reconciliada. Forma que não pretende conter Deus, mas acolher sua vinda. Palavra que não substitui o Espírito, mas o aguarda. Sacramento que não é mágica, mas memória viva do dom. E se hoje tais expressões sobrevivem, com beleza e profundidade, sobretudo na liturgia romana e em pequenos círculos ecumênicos, é talvez porque, fora delas, a fé, ao se livrar das formas, também corre o risco de perder sua carne. Esta reflexão, assim, não contradiz a anterior, mas a prolonga: onde antes houve rasura, aqui se recupera o traço — ainda que tremido — de uma forma capaz de sustentar a fé como espera, como escuta e como comunhão.

Entre Genebra e Westminster

A recepção brasileira do calvinismo e seus paradoxos históricos

A teologia de João Calvino (1509–1564) não surgiu como um sistema acabado, nem como base para uma ortodoxia confessional rígida. Pelo contrário, emergiu em meio a um contexto plural e tenso: a Reforma Suíça, na qual figuras como Ulrico Zwinglio (1484–1531), Heinrich Bullinger (1504–1575), Pedro Mártir Vermigli (1499–1562) e Wolfgang Musculus (1497–1563) também desempenharam papéis fundamentais. Junto com Calvino, esses teólogos se dedicaram à tarefa de repensar a fé cristã a partir das Escrituras, em oposição aos excessos da tradição medieval. Genebra não era o único centro, mas sim parte de uma rede descentralizada em que diferentes enfoques coexistiam: exegese bíblica, formação pastoral, organização eclesiástica e espiritualidade comunitária. A singularidade de Calvino não reside em uma pretensa autoridade normativa, mas em sua habilidade para integrar doutrina e prática numa abordagem hermenêutica aberta, distinta do rigor de um sistema fechado.

Contudo, ao longo dos séculos XVI e XVII, o pensamento reformado passou por um processo de confessionalização. Frente aos desafios representados por católicos, luteranos e arminianos, a tradição reformada viu surgir documentos normativos que sistematizaram sua doutrina, como os Cânones de Dordrecht (1619) e a Confissão de Fé de Westminster (1646). Conforme analisa Richard A. Muller, esse movimento provocou uma mudança metodológica significativa: da exposição pastoral e bíblica para uma estruturação escolástica e logicamente rigorosa. Nesse contexto, Calvino foi elevado a uma posição simbólica; sua obra não foi necessariamente seguida com fidelidade estrita, mas utilizada como referência autoritativa. O chamado “calvinismo” é, portanto, uma construção posterior, marcada por escolhas seletivas e reelaborações teológicas. O próprio termo teve origem controversa, inicialmente pejorativa, e apenas posteriormente tornou-se uma identidade adotada, embora sempre contestada.

Nesse cenário, a Confissão de Fé de Westminster emerge como um documento emblemático. Produzida durante a guerra civil inglesa, sob forte influência do presbiterianismo escocês e do puritanismo, a CFW responde a necessidades institucionais e políticas específicas. Sua estrutura sistemática, rigor lógico e ênfase na teologia do pacto revelam preocupações distintas das de Calvino. Embora compartilhem certos elementos doutrinários, os objetivos são diferentes: Calvino escreveu com o propósito de formar consciências e promover a piedade pessoal e comunitária; Westminster, por outro lado, buscou estabelecer fronteiras confessionais precisas, regulando o culto, o ministério e a vida cívica sob uma matriz teológica rigorosa.



Essa situação se torna ainda mais complexa ao considerar que a própria tradição anglo-saxônica, herdeira direta da CFW, também passou por revisões significativas ao longo do tempo. No evangelicalismo dos séculos XVIII e XIX, figuras como Jonathan Edwards (1703–1758), Andrew Fuller (1754–1815) e Thomas Chalmers (1780–1847) empreenderam releituras críticas do calvinismo clássico. Esses autores suavizaram aspectos da doutrina da predestinação, enfatizaram o livre-arbítrio compatibilista, e centralizaram a experiência religiosa na conversão individual e na devoção afetiva, incorporando influências pietistas e racionalistas. Conforme analisado por David W. Bebbington, tais adaptações demonstram que a Confissão de Westminster foi frequentemente reinterpretada ou mesmo relativizada por seus herdeiros teológicos. Assim, o calvinismo britânico moderno, em vez de manter uma adesão estrita à teologia da CFW, tornou-se um espaço de experimentações pastorais e doutrinárias adaptadas às circunstâncias históricas específicas.

Este contexto lança luz sobre um paradoxo notável: enquanto na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos a tradição reformada foi sendo revisada e adaptada às transformações culturais, filosóficas e missionárias, no Brasil — sobretudo em círculos conservadores — a CFW adquiriu status de norma absoluta. Essa recepção brasileira explica-se, em parte, pela herança missionária norte-americana, que no século XIX trouxe ao país não o Calvino histórico, mas uma versão já institucionalizada do calvinismo confessional. A Confissão de Westminster foi introduzida no Brasil como ferramenta pedagógica e doutrinária, rapidamente naturalizada como símbolo máximo da ortodoxia e pureza reformada, tornando-se uma identidade estável diante das diversas expressões religiosas locais.

Contudo, essa recepção brasileira constitui uma construção teológica de segunda ordem: trata como absoluta uma confissão produzida em um contexto britânico específico do século XVII, que já se distanciava das ênfases originais de Calvino e que, em suas próprias regiões de origem, foi continuamente revista e flexibilizada. Tal paradoxo — a absolutização periférica de uma tradição já relativizada em sua origem — apresenta-se como um fértil campo de investigação para a historiografia da teologia, convidando-nos a refletir sobre por que e como certos documentos teológicos ganham centralidade simbólica fora de seus contextos originais, e quais são as implicações hermenêuticas e eclesiais desse fenômeno.

Reconstruir criticamente o percurso da tradição reformada não implica desvalorizar a Confissão de Westminster, mas sim questionar sua sacralização acrítica. Trata-se de reconhecer que o legado reformado não é estático, mas dinâmico; suas fontes devem ser compreendidas em sua historicidade e pluralidade interna. Calvino não deve ser considerado como o fundador de um sistema rígido, mas como proponente de uma abordagem teológica situada, plural e aberta ao mistério e à constante renovação do pensamento. Recuperar essa dimensão original da Reforma significa reafirmá-la como movimento dinâmico e crítico, restabelecendo à teologia reformada sua vocação interpretativa, pastoral e dialogal.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.
CAMPI, Emidio. Calvin, the Swiss Reformed Churches, and the European Reformation. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 119–143.
BEBBINGTON, David W. Calvin and British Evangelicalism in the Nineteenth and Twentieth Centuries. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 282–305.
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Calvino, um Padre da Igreja?

Uma releitura teológica da catolicidade reformada


Há duas décadas, quando me debrucei pela primeira vez sobre a figura de João Calvino em minha monografia de graduação do então STPRJ, a imagem que se impunha era a de um reformador austero, zeloso da ortodoxia, comprometido com a liberdade cristã como ruptura com os mecanismos de controle e opressão da Igreja Romana. Calvino aparecia, então, como símbolo da resistência protestante à autoridade hierárquica, defensor da centralidade da Escritura e da autonomia da consciência diante da mediação eclesiástica. Essa leitura, embora sustentada por elementos teologicamente consistentes, estava em diálogo com uma tradição de recepção marcada pelo anticatolicismo estrutural do protestantismo de missão — especialmente no contexto brasileiro — e pela valorização da Reforma como gesto de emancipação moral e institucional.

A releitura aqui proposta, construída em diálogo com o ensaio de Diarmaid MacCulloch no volume Calvin and His Influence, 1509–2009, representa um deslocamento hermenêutico significativo em relação àquela perspectiva inicial. Em vez de um Calvino essencialmente oposto à tradição católica, emerge uma figura profundamente enraizada nela, cujas contribuições teológicas dialogam diretamente com os quatro grandes Doutores Latinos da Igreja — Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno. Longe de um símbolo de cisão, Calvino é apresentado como reformador da continuidade, alguém que aspirava à catolicidade, à ortodoxia trinitária e à fidelidade patrística. Essa mudança de ênfase não nega o papel de Calvino na Reforma, mas permite compreendê-lo de modo mais complexo e inserido na história maior da tradição cristã ocidental.

A proposta de considerar João Calvino como um possível “quinto Doutor Latino da Igreja” não constitui uma simples provocação anacrônica nem uma concessão ecumênica. Trata-se, antes, de uma tese historicamente fundamentada e teologicamente densa que busca reavaliar a estatura de Calvino à luz de seu enraizamento na tradição ocidental — especialmente nos eixos estruturantes da catolicidade doutrinária, da ortodoxia cristológica e trinitária, da autoridade patrística e da formação eclesial duradoura. É nesse horizonte que Diarmaid MacCulloch propõe a inclusão simbólica de Calvino ao lado de Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e Gregório Magno, não como ruptura, mas como continuidade crítica no seio da tradição latina.

A tese de MacCulloch afirma que Calvino almejou — e em larga medida realizou — uma exposição da doutrina cristã com escopo e profundidade comparáveis às dos grandes doutores da Igreja antiga. Sua teologia, especialmente nas sucessivas edições das Institutas da Religião Cristã (1559), revela-se uma síntese sistemática, pastoral e doutrinal que retoma, com extraordinária fidelidade, os fundamentos agostinianos da tradição ocidental. A centralidade da graça, a doutrina da predestinação, a análise rigorosa da depravação humana e a função pedagógica da Lei configuram, em Calvino, uma atualização crítica do legado de Hipona. Sua adesão aos termos do Concílio de Calcedônia e sua defesa inequívoca da Trindade, sobretudo após as acusações de triteísmo em sua juventude, demonstram sua inserção consciente e positiva no consenso dogmático da Igreja antiga.

É crucial, nesse ponto, recuperar um dado de formação que frequentemente passa despercebido: Calvino estudou no Collège de Montaigu, em Paris — centro de formação marcado pela teologia escolástica tardia, com forte presença do tomismo e do nominalismo. Ainda que esse ambiente tenha influenciado sua juventude, Calvino não trilhou o percurso acadêmico tradicional da teologia universitária. Sua formação principal deu-se no Direito e nas letras clássicas, especialmente sob o influxo do humanismo renascentista. Essa trajetória lhe conferiu recursos filológicos e argumentativos que, mais tarde, resultariam numa teologia distinta da erudição escolástica: menos especulativa, mais bíblica; menos disputacional, mais pastoral. Sua crítica à escolástica, como observa MacCulloch, não é iconoclasta, mas seletiva — Calvino “recicla minério das escórias” medievais para forjar uma teologia enraizada na Escritura e nos Padres, especialmente em Bernardo de Claraval, cuja espiritualidade monástica ele valorizava.


Sua eclesiologia também exprime essa tensão entre reforma e continuidade. Calvino não via a Igreja medieval como apóstata irreversível, mas como uma instituição corrompida, ainda assim preservada em certos elementos essenciais, como o batismo infantil. Essa teologia da aliança, que reconhece a permanência da ação divina mesmo sob estruturas degradadas, lhe permite reivindicar a Reforma como restauração (e não como cisma). A comunidade eclesial de Genebra — com sua liturgia, sua disciplina e sua academia — é concebida como a expressão visível da Igreja una, santa, católica e apostólica. Por essa razão, Calvino rejeitava o rótulo “calvinismo”, preferindo ver sua obra como fiel à tradição cristã universal. Para MacCulloch, essa recusa revela o ethos católico de sua teologia: não uma nova igreja, mas a reforma da Igreja.

Também no plano litúrgico, sua contribuição é notável. Embora não tenha composto os salmos genebrinos, Calvino foi responsável pela estruturação de um culto centrado na Palavra e no canto congregacional. A salmodia em Genebra não era mero adorno estético, mas instrumento de formação espiritual e ordenamento afetivo da comunidade. O reformador via-se, por vezes, como um novo Davi: não o rei guerreiro, mas o poeta-sacerdote cuja missão era harmonizar doutrina, oração e louvor. Sua teologia da música e da adoração é, assim, expressão de uma eclesiologia integral que busca conformar o coração da comunidade à Palavra de Deus.

No plano estilístico, Calvino distingue-se por uma prosa clara, concisa e acessível, em contraste com a prolixidade da escolástica tardia. Essa sobriedade argumentativa amplia a recepção de sua obra e permite sua adaptação a diferentes contextos pastorais. Longe de indicar superficialidade, sua concisão é fruto de rigor lógico e de uma concepção profundamente pedagógica da teologia. Assim como os doutores antigos escreviam para instruir a Igreja, Calvino escreve para formar, corrigir e edificar — não apenas para disputar.

A proposta de MacCulloch, portanto, fundamenta-se na convergência de diversos elementos: fidelidade patrística, ortodoxia dogmática, capacidade sistemática, impacto litúrgico, produção pastoral e legado duradouro. Calvino aparece, nesse quadro, não como fundador de uma nova tradição, mas como restaurador da tradição antiga. Seu projeto reformador não visava abolir o passado, mas resgatar a verdade católica nele obscurecida. A sua figura, lida sob essa ótica, torna-se não um divisor, mas um elo entre a Igreja antiga e a Igreja reformada.

Essa releitura adquire valor crítico particular no contexto brasileiro, onde o calvinismo — em especial aquele derivado de missões presbiterianas do século XIX — tem se constituído historicamente como identidade por negação. Marcado por um anticatolicismo sistemático e muitas vezes culturalmente enraizado, o calvinismo brasileiro tende a reduzir Calvino a uma caricatura de opositor da Igreja Romana, esvaziando a densidade católica de sua teologia. Essa postura resulta não apenas de disputas doutrinárias, mas de um projeto eclesiológico que construiu a própria identidade reformada em oposição à hegemonia católica no país. E, segundo Rubem Alves, o efeito dessa construção é uma alienação da própria tradição: ao rejeitar o passado comum, muitos calvinistas brasileiros negam precisamente aquilo que em Calvino mais se aproxima da grande tradição da Igreja.

A proposta de MacCulloch, portanto, tem potência desconstrutiva e reconstrutiva. Ao reinserir Calvino no cânone dos grandes mestres da fé cristã ocidental, ela oferece ao protestantismo brasileiro a oportunidade de rever sua autocompreensão — não como herdeiro do cisma, mas como interlocutor crítico da tradição. Longe de diluir as diferenças teológicas entre Reforma e catolicismo romano, essa releitura amplia o horizonte de diálogo e complexifica a gramática eclesial. Em lugar de um calvinismo ressentido, exclusivista e identitário, ela propõe um calvinismo consciente de sua origem, maduro em sua crítica e aberto à catolicidade como vocação teológica.

Reconhecer Calvino como um “Doutor da Igreja”, ainda que simbolicamente, não é trair a Reforma — é, ao contrário, restaurar sua ambição mais profunda: ser fiel à verdade do Evangelho na comunhão dos santos que atravessa os séculos. Esse exercício de releitura, ao confrontar percepções formadas há quase vinte anos com os desenvolvimentos interpretativos mais recentes, revela não apenas novas possibilidades hermenêuticas, mas também um processo pessoal de amadurecimento teológico, crítico e histórico diante das tradições que herdamos e das que, por fidelidade ao próprio Evangelho, somos chamados a reconstruir.

Referências
ALVES, Rubem. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1982.
MACCULLOCH, Diarmaid. Calvin: fifth Latin doctor of the church. In: BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (ed.). Calvin and his influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 3–24.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Por que não sou mais evangélico?

(“Tornou-se difícil dizer Deus; e a oração, um silêncio inquieto”)

Esta breve reflexão nasce da crise, não como lamento, mas como forma teológica. Nasce da experiência de desenraizamento que muitos têm vivido: a percepção de que, em muitos contextos, a identidade “evangélica” passou a conflitar com a radicalidade do Evangelho que anuncia. Não se trata de uma deserção moral, mas de uma ruptura operada pela confrontação com o escândalo da fé: a constatação de que Deus não habita os templos que construímos para abrigá-lo, e que sua Palavra, quando de fato irrompe, aparece como juízo — também e sobretudo CONTRA a religião. A crise da fé, nesse sentido, não é seu oposto: é seu caminho. Assim como em Kierkegaard e Barth, é apenas pela negação das formas religiosas que a possibilidade da fé se oferece, não como certeza, mas como abismo. É a partir dessa ferida que se propõe aqui uma leitura: teológica, crítica e contemporânea, sobre o paradoxo de crer fora dos portões da religião.

A relação entre Søren Kierkegaard e Karl Barth é marcada por uma afinidade crítica diante da religião instituída (e por uma ênfase comum no caráter escandaloso da revelação cristã). Ambos partem da constatação de que há uma ruptura intransponível entre Deus e o ser humano — uma diferença qualitativa infinita que desautoriza qualquer tentativa de assimilação teológica por meio de categorias éticas, psicológicas ou culturais. No pensamento kierkegaardiano, essa ruptura se expressa na figura do paradoxo, do escândalo e da decisão subjetiva diante do absoluto. Barth, ao retomar essa tradição na “Carta aos Romanos”, desloca o centro da crítica do sujeito psicológico para a Palavra de Deus como evento que irrompe desde fora — ab extra — julgando tanto o mundo secular quanto a própria religião. Assim como Kierkegaard escreve contra a cristandade burguesa de sua época, Barth, em sua teologia da crise, escreve contra a complacência liberal da teologia do século XIX, denunciando-a como idolatria antropocêntrica travestida de fé.

Essa interlocução não é apenas conceitual, mas textual e exegética. Em Romanos 1,1, ao comentar a autoidentificação de Paulo como “servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo” (Παῦλος δοῦλος Χριστοῦ Ἰησοῦ, κλητὸς ἀπόστολος), Barth recorre à linguagem kierkegaardiana do paradoxo para sustentar que o chamado apostólico não se explica por categorias psicológicas, sociais ou religiosas. A autoridade de Paulo não decorre de sua biografia ou de seu contexto, mas da irrupção da Palavra divina que o torna, em Barth, uma “exceção impossível” — linguagem que remete diretamente à noção kierkegaardiana de salto qualitativo e ruptura com a normatividade. Já em Romanos 12,3 (μὴ ὑπερφρονεῖν… ἀλλὰ φρονεῖν εἰς τὸ σωφρονεῖν), ao tratar da humildade cristã como resposta à graça, Barth cita Kierkegaard para descrever a “grande perturbação” operada pela fé: um movimento interior que desfaz as garantias do eu e o lança diante de um outro absoluto. Nessa passagem, o amor de Deus é descrito, com Kierkegaard, como um “EGO infinito” cuja presença desestabiliza toda pretensão de autocentralidade, inclusive a religiosa. Em ambos os casos, Barth mobiliza Kierkegaard para enfatizar que a verdade da fé jamais coincide com suas mediações institucionais ou culturais, mas se anuncia como ruptura — e como juízo.

Nesse horizonte, a instrumentalização política da religião por líderes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil marca uma inflexão crítica na história recente da Igreja evangélica. Em ambos os contextos, o discurso cristão foi amplamente apropriado por projetos nacionalistas e autoritários, travestindo-se de moralidade religiosa para legitimar interesses de poder, exclusão e violência. A adesão acrítica de amplos setores evangélicos a tais figuras políticas, em nome de uma suposta defesa da fé, expôs a fragilidade teológica de suas bases e a capitulação do sagrado ao espírito do tempo. O resultado tem sido o afastamento crescente de indivíduos que, embora marcados por uma experiência genuína de fé, não encontram mais nas igrejas tradicionais um lugar de escuta, profecia e denúncia. Esse movimento não é apenas sociológico — ele pode ser interpretado teologicamente como nova forma do paradoxo: o Evangelho, mais uma vez, clama de fora dos portões, onde Cristo foi crucificado, e onde agora se refugiam aqueles que recusam uma fé cooptada por ideologias de dominação.



Esse movimento de deslocamento da fé para fora das formas religiosas tradicionais encontra ressonância também em Dietrich Bonhoeffer, cuja proposta de um cristianismo a-religoso — uma fé “não religiosa” — expressa o anseio por um seguimento de Cristo liberto das roupagens culturais, institucionais e metafísicas que historicamente o sufocaram. Em suas cartas da prisão, Bonhoeffer não propõe um abandono da fé, mas sua depuração mais radical: uma cristologia que recusa os amuletos da religião e confronta o mundo “a partir do centro da sua realidade secular”. Tal como em Barth e Kierkegaard, a fé não se localiza na adesão a uma forma culturalmente sancionada, mas na disposição de ser atingido, desestabilizado e convocado pela Palavra. A “fé não religiosa” não é um projeto subjetivista ou secularizante, mas uma forma de obediência que emerge no silêncio das formas esvaziadas, como escuta do Deus que age no oculto (o Deus absconditus, de Lutero!), e que, por isso mesmo, continua falando.

É nesse sentido que a saída da igreja institucional, por parte de muitos crentes contemporâneos, não deve ser interpretada como apostasia ou descompromisso com a vida cristã, mas como sinal escatológico: uma recusa às formas mortas que já não hospedam a presença viva do Espírito. A eclesialidade, aqui, não é negada — ela é deslocada para outro regime de visibilidade, exigindo reconfiguração. A igreja, para continuar sendo Igreja, precisa reaprender a falar profeticamente, a habitar as margens, a renunciar à aliança com os poderes deste século. Mais do que jamais se institucionalizar, a fé eclesial é chamada a existir em fidelidade ao Cristo que foi crucificado fora da cidade: não em guetos ideológicos ou trincheiras identitárias, mas na comunhão dos que esperam — juntos — por um Reino que não pode ser administrado, apenas testemunhado. O êxodo das formas, portanto, não dissolve a igreja: pode, paradoxalmente, ser sua salvação.

A possibilidade de atualização contemporânea dessa constelação teológica passa pelo reconhecimento de que, hoje, o paradoxo da fé pode se manifestar na vivência a-religiosa da existência cristã. Se a religião, em sua forma institucional, tornou-se frequentemente um instrumento de justificação cultural, política e moral — um “trabalho humano” no vocabulário barthiano —, então a fé autêutica talvez se desloque para fora dos círculos religiosos tradicionais, para as margens, os interstícios, os lugares em que a graça não pode mais ser confundida com privilégio ou identidade. Como Kierkegaard sugeria ao denunciar a cristandade como caricatura do cristianismo, e como Barth ecoa ao declarar que toda religião é julgada pela revelação, é possível conceber que os verdadeiros crentes estejam hoje ocultos sob formas não religiosas, vivendo no mundo como aqueles que farejam, na expressão do prefácio barthiano, “o cheiro da eternidade” sem o aparato das instituições.

No entanto, esse movimento de atualização encontra seus limites na própria estrutura do pensamento de Barth, que jamais abandonou completamente a mediação eclesial e que insistiu na proclamação da Palavra pela comunidade reunida em torno das Escrituras. O risco de uma dissolução completa da fé em experiência privada ou espiritualismo subjetivo sempre assombrou a crítica kierkegaardiana, e Barth parece ter tomado distância justamente para evitar esse destino. Assim, a figura do crente a-religioso permanece como hipótese provocadora — teologicamente fecunda, mas também eticamente exigente — pois não pode significar mera recusa das formas, mas fidelidade radical àquele que foi crucificado “fora do portão”, onde não há segurança religiosa, apenas graça e juízo.

Referências
BARTH, K. A Epístola aos Romanos. Traduzido da 5ª edição alemã. São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
BONHOEFFER, D. Resistência e submissão – Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003.

sábado, 26 de abril de 2025

Fé, Diferimento e Alteridade

A obra A Instituição da Religião Cristã (1559), de João Calvino, permanece um marco incontornável para a compreensão do pensamento teológico reformado. Contudo, a tradição interpretativa que busca situar Calvino unicamente dentro dos paradigmas da ortodoxia protestante (séculos XVI e XVII) corre o risco de obscurecer certas tensões internas de sua obra, as quais se revelam surpreendentemente fecundas à luz de preocupações contemporâneas. A partir de uma leitura atenta das Institutas, bem como da análise de Richard A. Muller em “The Unaccommodated Calvin”, emerge uma possibilidade interpretativa singular: a de compreender a teologia calviniana à luz de uma lente pós-estrutural, em diálogo crítico com as teses de Jacques Derrida. Retomando uma hipótese já defendida alhures, esta proposta não visa uma anacrônica “fusão de horizontes”, mas a indicação de uma estrutura formal comum, na qual as categorias de fides, cognitio, intelecto e vontade, bem como a doutrina do testimonium Spiritus Sancti, adquirem ressonâncias profundas com a noção derridiana de différance.

Longe de ser um anacronismo redutor, nossa abordagem pretende evidenciar como a estrutura hermenêutica da fé em Calvino, fundada numa espécie de “descentramento do sujeito” (e no adiamento do acesso ao sentido, diga-se de passagem), revela uma abertura teológica constitutiva que antecede, em profundidade, os conceitos derridianos de différance e de desconstrução da “metafísica da presença”. Em ambos os casos, o acesso ao sentido é mediado, diferido e descentrado. Em Calvino, tal adiamento não é uma deficiência em seu sistema teológico, mas a própria condição de possibilidade do encontro com o Deus transcendente. A transcendência divina exige, para ser reconhecida como tal, a desconstrução de toda pretensão de presença imediata. A Escritura, enquanto testimonium divinitatis, é suficientemente clara, mas seu reconhecimento salvífico é suspenso até ser atualizada pela graça soberana do Espírito.

Ainda que Richard A. Muller advirta contra as projeções anacrônicas sobre Calvino, é importante reconhecer que as tensões hermenêuticas que aqui exploramos já encontraram ressonância, sob formas distintas, na teologia do século XX. A tradição dialética, inaugurada por Karl Barth, compreendeu a Palavra de Deus não como um dado natural, mas como um evento soberano e livre de revelação, cuja realidade se dá na proclamação, na fé e no testemunho, pela ação do Espírito Santo. Já em A Carta aos Romanos (1922), Barth denunciava a ilusão da presença imediata de Deus, mas é na Dogmática Eclesiástica (Kirchliche Dogmatik I/1, §§4–7) que ele formula sistematicamente a tese de que a Escritura não é em si mesma a Palavra de Deus, mas torna-se Palavra de Deus no evento de revelação. Barth, embora parta de premissas teológicas distintas do pós-estruturalismo, desestabiliza a lógica da presença plena ao insistir que o sentido da Escritura é mediado e atualizado pelo Espírito, escapando a toda pretensão de domínio conceitual. Tal concepção da Palavra como evento antecipa, no horizonte da dogmática cristã, uma crítica análoga à desconstrução da metafísica da presença tematizada por Derrida. Nossa proposta, portanto, inscreve-se num horizonte hermenêutico em que Calvino, Barth e Derrida, cada qual a partir de sua gramática própria — reformada, dialética e pós-estrutural, respectivamente —, convergem na crítica à apropriação imediata do significado e na afirmação da alteridade como condição constitutiva do sentido.


Desde seus primeiros escritos, Calvino rejeita uma compreensão meramente intelectualista da fé. Em sua principal obra, ele define a fé como um “firme e certo conhecimento da benevolência de Deus para conosco, fundado na promessa gratuita em Cristo, revelado à mente e selado no coração pelo Espírito Santo” (Institutas III.2.7). Fides não é apenas cognitio, mas também fiducia: confiança viva e afetiva na promessa divina. A articulação entre intelecto e vontade, longe de ser reduzida a um dualismo, expressa uma tensão constitutiva: cognitio precede temporalmente fiducia, pois o objeto da fé precisa ser conhecido antes de ser confiado; contudo, é a fiducia que, em última instância, sela o ato da fé como resposta integral do ser humano.

Esta estrutura teológica, ao ser lida à luz de uma perspectiva contemporânea, revela um movimento de descentramento hermenêutico. Em Institutas I.7.4, Calvino assevera que a autoridade da Escritura não é fundada em raciocínios humanos nem em decretos eclesiásticos, mas se autentica pelo testemunho interno do Espírito Santo. Assim, embora a Escritura contenha em si mesma sinais suficientes de sua divindade, sua recepção como Palavra de Deus é “diferida”, isto é, mediada por um evento de graça soberana. O acesso ao sensus Scripturae é adiado em relação à mera leitura gramatical e depende de uma iluminação interior, instaurando uma lacuna entre o signo e o significado.

Este “adiamento” do sentido, tal como formulado em Calvino, encontra um eco formal na différance derridiana. Para Derrida, o significado nunca se entrega de maneira plena e definitiva, mas é incessantemente diferido na cadeia dos signos. O texto não possui um “centro” estabilizador que interrompa o jogo dos significantes. De modo semelhante, em Calvino, o crente não possui o sentido da Escritura por direito natural nem por força de suas próprias faculdades racionais: é necessário que o Spiritus Sanctus opere uma abertura no ser humano, rompendo a expectativa de presença imediata do sentido. A implicação disso é que a leitura da Escritura é, para Calvino, um ato de hospitalidade: o crente é chamado a acolher um sentido que lhe é dado, não produzido. Este acolhimento é, ao mesmo tempo, um ato de fé e de suspensão do desejo de apropriação total do significado. Portanto, assim como Derrida pensa a leitura como um exercício de abertura infinita ao Outro, também em Calvino a fé é abertura ao Deus que fala por meio da Escritura, mas cuja voz é reconhecida apenas pelo coração regenerado.

A propósito, Richard Muller confirma que, para Calvino, não é a Escritura que é opaca, mas a mente humana que é entenebrecida (cf. Institutas II.2.18). A Escritura é perspicua em si, mas o pecado introduz uma obscuridade epistemológica que só pode ser vencida pela intervenção do Espírito. Desta forma, não há posse soberana do texto sagrado; há uma dependência radical de um evento da graça que ilumina e sela o sentido no coração do crente (cf. Institutas III.2.33). No entanto, é fundamental reconhecer que Richard Muller, em sua abordagem rigorosa do “Calvino não acomodado”, seria crítico de uma leitura como a que propomos. Muller (2001) insistentemente adverte contra a tendência de projetar sobre Calvino categorias modernas, como a desconstrução ou a pós-modernidade, que lhe são estranhas. Para Muller, a teologia calviniana deve ser interpretada a partir de seu contexto do século XVI, resistindo à tentação de harmonizá-la com projetos filosóficos contemporâneos. Nossa hipótese, portanto, não pretende apresentar uma leitura histórica “fiel” segundo os padrões de Muller, mas antes propor um exercício hermenêutico crítico, no qual reconhecemos a alteridade histórica de Calvino e, ao mesmo tempo, exploramos as potências de ressonância formal entre sua teologia e certos princípios pós-estruturais.

Entretanto, é preciso destacar a diferença essencial entre Calvino e Derrida: para o primeiro, o adiamento hermenêutico é escatológico, pois está tensionado pela promessa da redenção final da inteligibilidade; para o segundo, o diferimento é estrutural e irredutível. Em Calvino, a verdade é plenamente presente em Deus e garantida pela soberania divina, ainda que o acesso a ela seja mediado; em Derrida, não existe qualquer presença originária a ser atingida. Nossa hipótese, portanto, pode ser enunciada do seguinte modo: em João Calvino, a teologia do testemunho interno configura uma hermenêutica do descentramento e do adiamento do sentido, análoga formalmente à différance derridiana, mas ontologicamente ancorada na promessa escatológica da verdade plena em Deus. A Escritura não é um “centro” estático de presença, mas um campo de interpelação no qual o crente, através da fé (fides qua creditur), é chamado a acolher a Palavra viva, num movimento incessante de adiamento e promessa.

Assim, a fé reformada, tal como concebida por Calvino, antecipa uma ética da diferença: uma disposição de abertura ao sentido que não se possui, mas que se recebe; uma hospitalidade radical à alteridade do Verbo, que, mesmo prometido, nunca é apropriado como propriedade do sujeito. A interpretação da Escritura, nesta perspectiva, é um ato escatológico de esperança e de humildade, no qual a verdade não é capturada, mas aguardada, como dom gracioso daquele que se revela e, ao mesmo tempo, se oculta no texto sagrado.

Este horizonte hermenêutico, que reconhece o adiamento do sentido e a necessidade do testemunho interno para a verdadeira recepção da Palavra, contrasta frontalmente com certas manifestações contemporâneas do fundamentalismo religioso, particularmente no contexto brasileiro. Ao defender de maneira acrítica a inerrância das Escrituras como se fosse possível uma apreensão imediata, literal e isenta da mediação espiritual, o fundamentalismo trai tanto a natureza da Escritura como sacramentum do Verbo quanto a estrutura teológica da fé como abertura escatológica. Ao reduzir a Escritura a um objeto de posse intelectual ou a uma coleção de proposições transparentes ao intelecto natural, o fundamentalismo reinstaura precisamente a metafísica da presença que tanto Calvino quanto, em outra chave, a filosofia da diferença desconstruíram. A pretensão fundamentalista de fixar o sentido da Escritura em interpretações rígidas, invariáveis e autorreferenciais ignora que, para Calvino, a verdadeira autoridade da Palavra não é capturada pela letra nem dominada pelo entendimento humano natural. A Palavra é viva, eficaz, e sua clareza não elimina, mas intensifica, a dependência radical do Espírito. Longe de constituir um objeto fechado e autossuficiente, a Escritura, como locus da interpelação divina, exige do crente uma disposição de hospitalidade ao mistério, à alteridade e à promessa. A fé reformada, nessa perspectiva, não se confunde com a segurança dogmática da letra morta, mas floresce na tensão escatológica entre o já da revelação e o ainda não da plenitude. Contra toda tentação fundamentalista, é preciso reafirmar que, como dizia Calvino, “a Escritura não brilha a não ser para aqueles cujos olhos foram abertos pelo Espírito” (Institutas I.6.2).

Referências
BARTH, Karl. Church Dogmatics, Volume I/1: The Doctrine of the Word of God. Translated by G. W. Bromiley. Edited by G. W. Bromiley and T. F. Torrance. Edinburgh: T&T Clark, 1975.​
MULLER, Richard A. The Unaccommodated Calvin: Studies in the Foundation of a Theological Tradition. New York: Oxford University Press, 2001.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

O Trabalho como Sinal da Graça: O Espírito que não Cruzou o Atlântico

A construção de uma imagem biográfica de João Calvino (1509–1564) como um trabalhador compulsivo — ou, nos termos contemporâneos, um workaholic — encontra respaldo nas análises de Max Engammare, especialmente em seu ensaio incluído na coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009. Engammare (2011) descreve um Calvino cuja vida era marcada por uma meticulosa organização do tempo, disciplina ferrenha e uma dedicação incansável ao trabalho teológico e pastoral, mesmo diante de severos problemas de saúde. Acordando por volta das quatro da manhã, Calvino lia e escrevia ainda na cama, dedicava-se à pregação diária em semanas alternadas, ministrava duas pregações aos domingos, lecionava teologia, participava do Consistório e de reuniões do “Petit Conseil”, além de manter uma vasta correspondência e uma produção exegética constante. Mesmo em seus últimos dias, debilitado por dores físicas que incluíam febre, cálculos renais, úlcera estercoral e possíveis sintomas de tuberculose, ele insistia em manter sua rotina, sendo por vezes levado à cátedra nos braços. Essa autoimposição de uma disciplina absoluta do tempo, da produção e do corpo revela não apenas uma subjetividade religiosa austera, mas configura um “tipo ideal” que ecoa profundamente as análises de Max Weber sobre o ethos protestante.

Em “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo”, Weber (2004) busca compreender o fenômeno do desenvolvimento capitalista não apenas como estrutura econômica, mas como cultura — como “espírito” (Geist), isto é, como uma conduta racional de vida enraizada em fundamentos morais e simbólicos de natureza religiosa. O que Weber identifica no calvinismo é a emergência de uma ascese racional e intramundana, na qual o mundo não é rejeitado como no ascetismo monástico medieval, mas abraçado como campo de exercício da vocação religiosa (Beruf), expressão da vontade divina. Para o indivíduo calvinista, cuja salvação está predeterminada por um decreto absoluto e inescrutável de Deus, resta apenas lançar-se ao trabalho metódico, disciplinado e contínuo como sinal indireto de pertença ao número dos eleitos. A ansiedade espiritual gerada pela doutrina da predestinação não encontra alívio na confissão ou no sacramento, mas apenas na produção de sinais exteriores de graça: uma vida ética irrepreensível, marcada pela produtividade, frugalidade e responsabilidade.

Nesse ponto, seria possível sugerir, de forma provocativa, que o calvinismo tal como descrito por Weber — enraizado em uma ascese racionalizada, em uma ética do trabalho metódico e na interiorização angustiada da eleição divina — jamais encontrou terreno fértil no Brasil. Em solo brasileiro, as manifestações históricas de tradição reformada tenderam a perder esse componente ascético rigoroso, diluindo-se em espiritualidades mais afetivas, comunitárias ou adaptativas, distantes da rigidez produtivista que caracterizou o tipo ideal analisado por Weber.

A propósito, essa forma de vida analisada por Weber (2004) difere substancialmente de outras expressões do protestantismo. O luteranismo, por exemplo, embora conserve o conceito de vocação, enfatiza a aceitação passiva da condição em que se nasce, e não uma busca ativa por comprovação da salvação através de obras. Já o metodismo valoriza experiências emocionais intensas de regeneração pessoal, produzindo um tipo de religiosidade que, embora disciplinada, está muito mais ligada à certeza afetiva do perdão do que à conduta sistemática. Os anabatistas, por sua vez, tendem à separação radical do mundo, valorizando comunidades igualitárias e puras, o que os distancia da valorização intramundana do trabalho característico do calvinismo weberiano.


O caso biográfico de Calvino, portanto, torna-se emblemático. A compulsão produtivista de seu cotidiano, seu desprezo pelo lazer e a administração meticulosa do tempo, relatadas por Engammare (2011), parecem encarnar perfeitamente a Lebensführung que Weber identificou como matriz cultural do capitalismo moderno. Contudo, há tensões e nuances importantes. Calvino não viveu em um contexto de economia capitalista madura, nem visava promover a acumulação de capital; sua ética visava a glorificação de Deus e a edificação da comunidade cristã. O desprezo ao luxo e à ostentação, bem como a valorização da austeridade, indicam uma contenção moral da lógica do consumo, algo que Weber reconhece, mas também relativiza ao observar como tais traços foram secularizados ao longo do tempo.

Na coletânea organizada por Irena Backus e Philip Benedict, esse debate é retomado com cuidado e certa desconfiança em relação às teses weberianas. Os editores afirmam que “as últimas gerações de pesquisa tornaram implausíveis as grandes teorias que atribuíam ao calvinismo um papel motor da modernidade e do capitalismo”. Tal ceticismo não nega a força do argumento de Weber, mas propõe um reposicionamento historiográfico: mais do que deduzir o capitalismo do pensamento calvinista, importa compreender a diversidade interna do calvinismo, suas formas de recepção e reelaboração ao longo dos séculos. É nesse espírito que textos como o de Richard Muller examinam os desenvolvimentos da teologia reformada pós-Calvino, mostrando como seus seguidores moldaram doutrinas como a predestinação e a ética do trabalho de maneira muitas vezes distinta do próprio reformador. Da mesma forma, John de Gruchy, em seu estudo sobre o calvinismo na África do Sul, revela como diferentes apropriações do legado calvinista puderam servir tanto à teologia da libertação quanto à legitimação do apartheid, colocando em xeque qualquer leitura unívoca do “espírito calvinista”.

Em vista disso, a aproximação entre Calvino e Weber revela-se tanto fecunda quanto problemática. Por um lado, a imagem biográfica do reformador, tal como reconstruída por Max Engammare, oferece uma figura histórica cuja conduta de vida parece exemplificar com notável precisão o ethos ascético e disciplinado descrito por Weber. Por outro, a própria complexidade dessa imagem — marcada por elementos culturais renascentistas, pelo sofrimento físico estetizado e por uma lógica do tempo que é ao mesmo tempo religiosa e performativa — impede sua redução a um tipo ideal unitário. A recepção do calvinismo nos séculos seguintes, conforme argumentam autores como Richard Muller, evidencia um processo de sistematização, endurecimento doutrinário e adaptação cultural que muitas vezes se distancia das intenções originais de Calvino, reconfigurando sua teologia a partir de contextos sociais e eclesiais diversos. Nesse sentido, a hipótese weberiana sobre a relação entre ética protestante e espírito do capitalismo permanece intelectualmente instigante, mas demanda releituras mais sensíveis à pluralidade interna do protestantismo reformado, à historicidade dos conceitos e às mediações culturais e políticas que moldaram — e continuam a moldar — os legados de João Calvino.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and his influence, 1509–2009. New York: Oxford University Press, 2011.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Calvinismo como Significante: o jogo da différance

Ou ainda: A tradição teológica como jogo da différance

A leitura desconstrutiva proposta pelo filósofo J. Derrida oferece uma chave teórico-analítica poderosa para interrogar o estatuto epistemológico dos conceitos que circulam na tradição teológica ocidental. Entre esses, o termo “Calvinismo” se destaca não apenas por sua centralidade historiográfica e dogmática, mas também por sua instabilidade semântica e performativa. Longe de nomear uma essência teológica unificada, o Calvinismo é, no horizonte derridiano, um significante atravessado por différance: ele só pode ser compreendido como uma cadeia de traços, de exclusões e de adiamentos de sentido que, ao mesmo tempo que fundam sua inteligibilidade, impossibilitam sua fixação semântica.

Antes de adentrarmos a desconstrução do termo “Calvinismo”, é preciso retornar ao nome que lhe serve de origem: João Calvino. Nascido em 1509, Calvino publicou antes dos trinta anos a primeira edição de Institutio Christianae Religionis (“As Institutas da Religião Cristã”), obra que se tornaria a espinha dorsal do sistema teológico reformado (e o documento fundacional de sua influência duradoura, diga-se de passagem). A partir de sua liderança em Genebra, Calvino não apenas consolidou uma visão sistemática da fé reformada, como também arquitetou uma visão de comunidade eclesial disciplinada, que rapidamente se tornou modelo para outros centros reformados na França, Escócia, Países Baixos, Inglaterra e além.

A propósito, Calvino combinava formação jurídica com erudição teológica autodidata. Sua prática pastoral foi marcada por uma disciplinarização rigorosa da vida eclesial, pelo engajamento nas estruturas civis da cidade de Genebra e por uma percepção profética de sua própria missão: reformar a cristandade. Contudo, sua influência jamais foi homogênea. Desde os primórdios, Calvino foi simultaneamente reverenciado e combatido, e as leituras de suas obras produziram tradições diversas que rapidamente escaparam ao seu controle direto. Como bem registra a introdução da coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009, os próprios termos “Calvinismo” e “Calvinista” emergiram como designações polêmicas, muitas vezes atribuídas por opositores, e passaram a circular com sentidos variáveis conforme as disputas doutrinárias, institucionais e geográficas.


Importa, desde já, distinguir cuidadosamente entre Calvino enquanto sujeito histórico — autor, pastor, teólogo e cidadão de Genebra — e o termo “Calvinismo”, que não designa diretamente o conjunto de suas ideias, mas um efeito discursivo posterior. Calvino produziu textos, pregou sermões, interveio em disputas eclesiásticas, mas o “Calvinismo” é uma construção que emerge da recepção e reelaboração de sua figura e de sua obra ao longo de diferentes momentos históricos. O nome de Calvino passa a operar, assim, como um ponto de condensação simbólica em debates que ele próprio não anteviu, e sua imagem se torna ela mesma um traço — uma inscrição estratégica num campo de disputas sempre em transformação.

Essa distinção é central para uma leitura desconstrutiva: o “Calvino histórico” não pode ser plenamente recuperado, pois tudo o que dele nos resta são registros textualizados, mediados, interpretados etc. O “Calvinismo”, por sua vez, é o nome de um significante que se constitui por deslocamento — ele remete a Calvino ao mesmo tempo que o distancia, reinscrevendo-o em novos jogos de sentido. Assim, não se trata de perguntar se determinado conteúdo é “fiel a Calvino”, mas de analisar como o nome Calvino é mobilizado para organizar posições teológicas, identidades confessionais ou fronteiras doutrinárias. O Calvinismo, nesse sentido, não é extensão linear de uma origem, mas efeito de um jogo — e esse jogo é o próprio campo da tradição.

O gesto desconstrutivo exige, portanto, que se abandone a busca por um centro originário e se escute o jogo de diferenças que possibilita a circulação do sentido. “Calvinismo”, nesse registro, não é o nome de uma doutrina, mas o ponto de inflexão de uma série de disputas, negociações, reiterações e recusas. A análise de Richard A. Muller em Calvin and the Reformed Tradition é exemplar nesse sentido: ao recusar tanto a identificação direta entre Calvino e os desenvolvimentos ortodoxos quanto a narrativa simplificadora de uma oposição entre Calvino e os calvinistas, Muller propõe compreender o Calvinismo como uma tradição polifônica, em que diferentes vozes dialogam, disputam e se desdobram em direções muitas vezes incongruentes. O Calvinismo não é um bloco; é um arquivo.

Essa mesma instabilidade é registrada pela introdução do volume Calvin and His Influence, 1509–2009, de Irena Backus e Philip Benedict. Os autores mostram que o termo “Calvinismo” foi, desde suas primeiras ocorrências na década de 1540, utilizado em sentidos diversos e frequentemente polêmicos. Inicialmente empregado por opositores, como no caso dos berneses que criticavam a teologia eucarística de Lausanne, o termo designava mais uma posição controversa do que uma identidade positiva. Em contextos posteriores, “Calvinismo” é associado à predestinação, à perseguição dos hereges, à disciplina eclesiástica genevense, à ortodoxia doutrinária do século XVII, ou ainda à cultura moral do puritanismo. Cada um desses usos reinscreve o termo numa nova cadeia de traços, e, com isso, produz um deslocamento do centro de sentido.

A desconstrução derridiana opera, então, não como anulação do conceito, mas como exposição de seu funcionamento diferido. O Calvinismo é uma cadeia de significantes cuja inteligibilidade depende de oposições contingentes: Calvinismo/Luteranismo, Calvinismo/Catolicismo, Calvinismo/Arminianismo, Calvinismo/Zwinglianismo. Nenhum desses pares é estável: em cada contexto histórico, as fronteiras se deslocam, os antagonismos se reformulam, os significados se contaminam. A tradição reformada não é um sistema fechado de proposições, mas um campo discursivo em constante rearticulação.


O estudo de Muller reforça esse ponto ao demonstrar que conceitos centrais do sistema reformado, como expiação limitada, predestinação, união com Cristo e ordem da salvação (ordo salutis), foram tratados de forma diversa por teólogos como Beza, Amyraut, Du Moulin, Ursinus, Perkins e Olevianus. Mesmo dentro da ortodoxia reformada, não há unidade doutrinária absoluta: há tensões, deslocamentos, disputas hermenêuticas etc. Isso é evidência da operação do traço: cada afirmação dogmática é também a exclusão de uma possibilidade que foi deixada de lado, mas que continua a assombrar a estrutura.

A edição de Backus e Benedict reforça esse gesto ao mostrar como o Calvinismo foi apropriado e reconfigurado nos Países Baixos, na França, na Escócia, na Inglaterra, na Polônia e na África do Sul. Cada contexto nacional reconstruiu o Calvinismo segundo suas próprias lógicas institucionais e teológicas. A figura de Calvino, inclusive, foi deslocada, ampliada, condensada, fragmentada. Em muitos casos, como mostra a recepção genevense, Calvino não é o centro, mas um dos polos numa constelação de autores, como Farel, Beza, Bullinger e Vermigli. E mesmo quando Calvino é celebrado, como no Monumento da Reforma de 1909, ele é rodeado por outros nomes, em um gesto que tanto o consagra quanto o descentraliza.

Derrida insistiria: o desejo de centro não desaparece, mas é constantemente frustrado pela diferença que o constitui. O Calvinismo se constitui pela ausência de um fundamento pleno. Ele é sempre já outro: não o pensamento de Calvino, mas sua releitura; não uma doutrina fixa, mas um conjunto de diferenciações. O uso do termo é sempre político: serve para afirmar identidades, excluir heresias, disciplinar práticas, organizar poder. Mas esse uso não escapa à contaminação. Toda identidade calvinista é instável, toda ortodoxia é marcada pela ausência de origem.

Desconstruir o Calvinismo é, pois, desestabilizar seu uso como essência e reinscrevê-lo como estratégia discursiva. Não se trata de negar a tradição reformada, mas de ler seus textos com escuta atenta ao que excluem, ao que diferem, ao que apenas insinuam. O gesto é teológico e político. O Calvinismo, como qualquer significante teológico, é um nome em jogo. E nesse jogo, não há vitória final, mas apenas a exigência de responsabilidade pela maneira como nomeamos o que cremos.

A presença do Calvinismo no centro da cadeia de significantes proposta em nossa ilustração não deve ser compreendida como um reconhecimento de sua primazia ontológica ou teológica, mas sim como um recurso analítico crítico. Derrida nos lembra que o centro, em qualquer estrutura, é uma função e não uma substância: ele organiza o jogo das diferenças sem se confundir com um ponto fixo de origem. O Calvinismo, nesse sentido, ocupa o centro apenas porque sua inteligibilidade é constantemente mobilizada em oposição a outros discursos — é no contraste com o Catolicismo, o Luteranismo, o Arminianismo e o Zwinglianismo que ele adquire contornos momentaneamente estáveis. O centro do diagrama não expressa fundação, mas o campo em que os deslocamentos semânticos são mais visíveis.

Esse arranjo visual revela, portanto, o modo como o Calvinismo funciona como um significante saturado: ele condensa uma multiplicidade de traços, posições e disputas que se atualizam na medida em que ele é reinscrito em diferentes contextos históricos. O centro é, nesse caso, o lugar onde o jogo se mostra com maior intensidade — e não onde ele se interrompe. O centro gráfico do Calvinismo é o lugar do conflito semântico, da tensão histórica e da produção incessante de sentido. Sua centralidade é estratégica e irônica: ao mesmo tempo que parece estruturar, ele se desfaz em différance.

Referências
DERRIDA, Jacques. A escrita e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.​
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.​

Entre a Palavra e o Rito:

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