sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Teologia de Mesa de Bar: Cristianismo e Desconstrução

No último dia 20 de novembro, às 20h, ocorreu mais uma edição do Teologia de Mesa de Bar, evento que combina reflexão teológica crítica e diálogo aberto em um ambiente descontraído. Com o tema Cristianismo e Desconstrução, a atividade buscou explorar os desafios e potencialidades de um Cristianismo capaz de dialogar com a pluralidade, a diferença e as tensões do mundo contemporâneo. A conversa, conduzida por Martorelli Dantas, Herlon Bezerra e Robson Souza, foi transmitida ao vivo no YouTube e teve como ponto de partida o texto “Cristianismo e desconstrução: fé, diferença e esfera pública em perspectiva teórica e prática”.

Cristianismo e Desconstrução
A discussão girou em torno da desconstrução como abordagem teórica capaz de desestabilizar e reconfigurar categorias teológicas tradicionais, questionando as bases normativas que sustentam práticas excludentes e hierarquias históricas. Inspirada por autores como J. Derrida, S. Žižek e J. Butler, a desconstrução foi apresentada como uma ferramenta essencial para repensar o Cristianismo enquanto prática discursiva inserida em um mundo plural, contestável e em constante transformação.

Cristianismo como Discurso
Um dos pontos centrais debatidos foi a ideia de que o Cristianismo não deve ser compreendido como uma instância transcendental fixa, mas como uma formação discursiva histórica, sujeita a disputas, rearticulações e ressignificações. A teoria do discurso de E. Laclau e C. Mouffe foi mobilizada para demonstrar como o Cristianismo, ao longo de sua trajetória, estabilizou significados e consolidou hegemonias, mas também permaneceu permeável a tensões e antagonismos que desafiavam essas estabilizações. Nesse contexto, a desconstrução revela que as fronteiras e categorias que delimitam o nós e o outro no Cristianismo são contingentes e historicamente situadas.

Desconstrução, Alteridade e Ética
A desconstrução derridiana foi apresentada como uma abordagem que enfatiza a alteridade e a diferença como constitutivas da ética. Derrida propõe que toda construção discursiva carrega em si tensões internas que minam sua pretensão de totalidade ou universalidade. Ao trazer essa perspectiva para o Cristianismo, o debate destacou como a desconstrução permite reposicionar a tradição cristã em direção a uma prática ética mais inclusiva, que valorize a pluralidade e promova uma hospitalidade incondicional, desafiando normatividades históricas excludentes.


A Negatividade Estrutural e o Pós-teísmo
Partindo das ideias de S. Žižek, discutiu-se a morte do grande Outro e o colapso das garantias transcendentes que, historicamente, sustentaram a teologia cristã. Žižek argumenta que essa ausência não é um vazio a ser preenchido, mas uma oportunidade para o surgimento de novas formas de engajamento ético e político, baseadas na imanência e na relacionalidade. Nesse sentido, o conceito de pós-teísmo surge como uma alternativa teológica que dispensa fundamentos transcendentes, reposicionando o Cristianismo como prática ética e política voltada para a justiça social e o reconhecimento da diferença.

Cristianismo e Esfera Pública
Outro aspecto amplamente debatido foi o papel do Cristianismo na esfera pública contemporânea, marcada pela contestabilidade das crenças e pela coexistência de perspectivas religiosas e seculares. Inspirados pelo conceito de secularidade de C. Taylor e pela ideia de tradução proposta por J. Habermas, os participantes discutiram como o Cristianismo pode atuar como interlocutor ético na esfera pública, sem buscar um monopólio discursivo ou ético, mas promovendo o diálogo e a convivência plural.

Reflexões Finais
O evento demonstrou como o Cristianismo pode ser reconfigurado como uma prática discursiva dinâmica e transformadora, em constante negociação com as demandas éticas e políticas de um mundo plural. Ao adotar ferramentas como a desconstrução e o pós-teísmo, o Cristianismo é chamado a transcender suas limitações institucionais e normativas, reposicionando-se como agente de hospitalidade, justiça e inclusão. A Teologia de Mesa de Bar reafirmou sua relevância como espaço de diálogo crítico e acessível, promovendo reflexões que ultrapassam as barreiras da academia e alcançam a esfera pública. Se você perdeu este debate, não deixe de assistir à gravação no YouTube e conferir como a desconstrução pode abrir novos horizontes para a fé cristã:




domingo, 10 de novembro de 2024

Vulnerabilidade Interdependente: Ética Relacional e Resistência Estrutural

Desde a vitória de Trump, parte da esquerda tornou-se alvo de críticas pela sua aliança com o projeto político do identitarismo. Para alguns críticos, essa aliança enfraquece as lutas progressistas ao permitir que o identitarismo seja rapidamente absorvido pelo liberalismo político, o que limita seu alcance transformador e promove a fragmentação da classe trabalhadora. Contudo, no contexto de uma proposta de democracia radical, emergem alternativas ao universalismo liberal, alternativas que buscam uma compreensão mais inclusiva da solidariedade. Judith Butler, em The Force of Nonviolence, oferece uma dessas abordagens ao reformular o conceito de universalismo com base na noção de precariedade compartilhada, vista como uma condição intrínseca e inescapável da existência humana, capaz de fundamentar um universalismo ético que transcenda divisões identitárias.

Distante do universalismo liberal, que se ancora em uma igualdade formal e na defesa de direitos abstratos, Butler critica a ideia de que todos os indivíduos, como sujeitos autônomos e independentes, são igualmente protegidos e valorizados no sistema liberal. Contrapondo-se a essa concepção, ela argumenta que o verdadeiro ponto de partida para um universalismo ético e político deve ser a precariedade – a vulnerabilidade e interdependência inerentes à experiência humana. Para Butler, reconhecer essa precariedade, com todas as suas implicações éticas e políticas, é essencial para construir uma sociedade em que todas as vidas sejam igualmente valorizadas, protegidas e respeitadas.

Essa obra articula-se diretamente ao projeto teórico-filosófico da autora, especialmente em seu compromisso com a crítica à violência normativa e a defesa de uma ética relacional que atravessa sua produção intelectual. Essa ética relacional e baseada na precariedade ressoa, de forma potente, com uma crítica radical ao liberalismo e suas limitações em entender a vida humana como algo autossuficiente e isolado. Butler desafia o conceito de sujeito liberal autônomo, que constitui a base do universalismo moderno, ao propor que a real universalidade está no reconhecimento de uma interdependência ontológica (e na proteção da vida vulnerável em todas as suas formas).

A crítica de Butler ao individualismo liberal ecoa as noções foucaultianas de biopolítica e poder pastoral, conceitos centrais para a compreensão de como a vida humana é regulada e classificada em termos de quem merece proteção e cuidado. Foucault argumenta que o biopoder moderno impõe uma distinção entre os que devem ser “feitos viver” e os que podem ser “deixados morrer”, configurando assim uma violência estrutural nas instituições contemporâneas. Butler apropria-se dessa leitura para afirmar que o universalismo liberal, com sua pretensão de neutralidade e abstração, falha ao não considerar as diferenças materiais e simbólicas que estruturam a sociedade.

Em vez disso, Butler propõe que o universalismo deve ser construído sobre a noção de “grievability” (lamentabilidade), ou seja, sobre o reconhecimento de que todas as vidas merecem ser vividas e lamentadas igualmente. Butler expande essa crítica, sugerindo que o conceito foucaultiano de biopolítica, ao regular quem pode ser feito viver ou deixado morrer, legitima uma violência normativa que perpassa as instituições e permeia as práticas de exclusão social. Para Butler, o reconhecimento ético de uma vida como digna de lamento se torna central na luta por uma justiça que, além de reivindicar direitos, desafia a lógica de valor desigual das vidas, estabelecendo uma resistência à hierarquia normativa que institui a violência estrutural. Essa leitura foucaultiana fundamenta a crítica de Butler à desigualdade de tratamento e ao valor desigual das vidas, especialmente nas questões raciais e de gênero, que estão no cerne do pensamento biopolítico. Dessa forma, ela mantém sua abordagem crítica das normas que regulam as subjetividades e define o valor das vidas, um traço fundamental de seu projeto teórico, visível desde suas obras anteriores sobre performatividade e poder.

Neste ponto, Judith Butler utiliza as análises de Fanon sobre a violência colonial para construir uma crítica abrangente à violência estrutural que permeia as instituições modernas. Para Fanon, o colonialismo impõe uma violência total, que transcende a esfera física e incorpora formas de violência simbólica e psicológica que remodelam a subjetividade dos colonizados. Butler se apoia nessa perspectiva para afirmar que a violência contra populações marginalizadas, incluindo as racializadas e economicamente desfavorecidas, é sustentada por uma rede de estruturas sociais que justifica e até naturaliza a exclusão desses grupos. Este ponto é crucial para Butler, pois revela como a violência estrutural pode se apresentar como “não-violenta” em sua superfície, mas atua de forma insidiosa no cerne das práticas institucionais.

A partir desse conceito de violência estrutural, Butler aprofunda a ideia de “vidas grieveis” (grievable lives), que constitui um dos alicerces de sua obra. Enquanto Fanon demonstra como o colonialismo desumaniza e “desgrievabiliza” os colonizados, Butler amplia essa lógica para compreender como o Estado moderno se engaja em práticas biopolíticas que definem quais vidas são dignas de proteção e quais são relegadas ao abandono. A exclusão de certas vidas da esfera de proteção estatal reflete, para Butler, uma violência estrutural que vai além da força física, funcionando como uma forma de violência simbólica que legitima e reforça desigualdades. O diálogo com Fanon permite que Butler elabore uma crítica da violência que não apenas reconhece, mas enfatiza as dimensões racializadas e econômicas dessa exclusão institucional. Ao discutir “vidas grieveis”, Butler propõe uma ética da não-violência comprometida com a igualdade radical, onde toda vida é digna de luto e proteção.

Essa visão é enriquecida pela abordagem de Fanon à autodefesa como um ato de sobrevivência frente a uma estrutura violenta e opressiva. Para Fanon, a violência dos colonizados é uma resposta necessária à violência colonial, e, de certa forma, uma tentativa de reconstituir a dignidade humana através do rompimento da opressão. Butler revisita essa concepção, subvertendo a noção de autodefesa como defesa de um “eu” individualista e propondo uma “autodefesa relacional”, onde a proteção da vida do outro se torna essencial para a própria sobrevivência. Ao reinterpretar a autodefesa, Butler sugere que a verdadeira prática da não-violência está na preservação e no fortalecimento das relações interdependentes que formam a base da sociedade. Dessa forma, ela propõe uma “não-violência agressiva” que não foge do conflito, mas o redireciona para resistir à lógica de exclusão e destruição social. Fanon, então, oferece a Butler um ponto de partida para imaginar uma resistência que, embora determinada, evita a perpetuação do ciclo de violência e rejeita o individualismo como estrutura fundamental da política.

Além disso, o conceito de “grievability” de Butler se torna um elemento analítico central na articulação de uma ética de não-violência, inspirada pela crítica fanoniana da desumanização colonial. Em Fanon, a violência desfigura tanto a humanidade do colonizador quanto a do colonizado, reforçando a divisão entre o que é considerado humano e subumano. Butler amplia essa perspectiva para discutir como a violência estrutural do Estado não apenas exclui fisicamente os marginalizados, mas os torna invisíveis e “não-grieveis” aos olhos da sociedade. Ao defender que toda vida merece ser lamentada, Butler afirma uma ética que desafia as hierarquias de valor social e se compromete com uma transformação que inclui todas as vidas. Este compromisso ético cria uma nova prática de resistência que vai além da retribuição violenta e enfatiza a solidariedade e o reconhecimento mútuo, fundamentando-se numa interdependência que se opõe à lógica da exclusão.

O diálogo entre Butler e Fanon também ilumina a visão de Butler sobre a não-violência como resistência coletiva frente à violência do Estado. Fanon observa que a violência é muitas vezes a única expressão de resistência possível para aqueles cujas vozes e vidas são sistematicamente silenciadas. Butler, no entanto, propõe que essa resistência pode e deve adotar uma forma coletiva de não-violência, onde a interdependência entre os sujeitos é central. Ela sugere que a resistência não deve ser entendida como mero confronto, mas como a construção de alternativas de vida e solidariedade que se opõem ao abandono e à fragmentação promovidos pelo Estado. Inspirada por Fanon, Butler propõe uma prática de não-violência que desafia as divisões raciais e culturais que fundamentam a violência estrutural. Esse compromisso ativo com a construção de redes de apoio e reciprocidade promove uma ética política que rejeita as normas excludentes e legitima uma forma de vida solidária e integrada.

Em última instância, o diálogo entre Butler e Fanon fornece uma base sólida para que Butler critique a ordem social baseada na exclusão e proponha uma ética da não-violência como compromisso contínuo com a transformação das condições materiais de vida. Para Fanon, a libertação dos colonizados exige a erradicação das estruturas de opressão colonial; Butler amplia essa visão ao afirmar que a não-violência precisa ir além da resistência passiva e construir um projeto de futuro onde a interdependência e a igualdade sejam fundamentos centrais. A partir da análise de Fanon, Butler reforça que a não-violência é uma prática ativa de confrontação com a violência estrutural, e não uma aceitação resignada. Assim, a criação de um espaço social mais justo e igualitário passa pela reafirmação do valor e dignidade de todas as vidas, promovendo uma resistência que desafia e redesenha as formas como as vidas são valorizadas e reconhecidas.

A relação de Butler com a obra de Walter Benjamin é igualmente significativa, especialmente no que diz respeito à crítica do instrumentalismo na prática da violência. Em seu ensaio “Crítica da Violência”, Benjamin distingue entre a violência que cria e preserva a lei e uma “violência divina” que questiona essas estruturas de poder. Butler se apropria dessa distinção para explorar a não-violência como uma forma de resistência ética que transcende o campo legal e o contrato social, posicionando-a como um compromisso com a justiça e a igualdade que não se submete às estruturas de poder hegemônicas. Nesse sentido, a não-violência assume uma qualidade quase messiânica, pois desafia a instrumentalização da violência e a lógica de dominação, oferecendo um modelo de resistência radical que se opõe às hierarquias normativas. A referência à violência divina de Benjamin fornece a Butler uma maneira de visualizar a resistência não-violenta não como um ato passivo, mas como uma prática agressiva e transformadora. Esse aspecto também se alinha com a perspectiva de Butler sobre a necessidade de transformar as estruturas normativas que geram e perpetuam a violência, mostrando que a não-violência requer uma crítica radical às normas e que, para Butler, essa crítica deve ser agressiva, um ato de resistência que não cede à pacificação.

Um ato de resistência que não cede à pacificação, segundo Butler, é aquele que se recusa a aceitar a “paz” oferecida por estruturas de poder que mantêm hierarquias e desigualdades intactas. Em vez disso, essa resistência persiste em desestabilizar e expor as violências normativas, sejam elas institucionais, raciais, de gênero ou de classe, afirmando continuamente a necessidade de mudanças reais e profundas. Inspirada nas filosofias de Gandhi e Martin Luther King Jr., Butler defende que a verdadeira força da não-violência reside em sua capacidade de recusar compromissos que apenas perpetuem as dinâmicas de opressão e que mantenham o status quo. Dessa forma, um ato de resistência não-violenta que se recusa à pacificação é aquele que confronta o poder de maneira contundente, demonstrando que a não-violência não se trata de evitar o confronto, mas de transformar radicalmente as bases de convivência social, revelando a precariedade e interdependência compartilhadas como fundamentos para um novo horizonte ético e político.

Nessa perspectiva, Judith Butler recorre aos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. para enriquecer sua concepção de não-violência como uma prática ativa e transformadora. Ela examina a filosofia de Gandhi, especialmente seu conceito de “satyagraha”, traduzido como “força da alma”, que rejeita a violência e posiciona a não-violência como uma forma de resistência ativa e moral. Ao distinguir a “satyagraha” da simples resistência passiva, Gandhi vê nela um “instrumento dos fortes”, sugerindo que a não-violência requer coragem e determinação. Butler se apropria desse entendimento para desafiar a visão convencional de não-violência como fraqueza ou inação, argumentando que a recusa em recorrer à violência exige um comprometimento ético profundo com a justiça e a dignidade humana. A resistência não-violenta torna-se, assim, uma prática que não apenas evita a agressão, mas que também confronta e desestabiliza as estruturas de poder que sustentam a opressão, assumindo um caráter ético transformador.

Martin Luther King Jr., influenciado diretamente pela filosofia de Gandhi, também é uma figura central no argumento de Butler. King via a não-violência não apenas como uma tática de resistência, mas como um compromisso ético e espiritual que enraiza a luta pela justiça na fé na dignidade humana e na solidariedade social. Para Butler, a abordagem de King exemplifica a não-violência como uma prática que desafia a violência estrutural de forma contundente, sustentada por um ideal de igualdade que transcende a violência. A não-violência, para King e para Butler, não é uma mera abstenção de agressão, mas um ato de resistência com poder de transformação, que exige tanto um compromisso com a justiça quanto a crença na capacidade de reorganizar a sociedade em torno de princípios de respeito mútuo e interdependência. Esse ideal de não-violência, inspirado em figuras religiosas, fortalece a proposta de Butler ao ressaltar que a verdadeira força da não-violência está em sua capacidade de agir como uma forma de resistência ética, que rejeita o ciclo da violência e aponta para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Além disso, Sigmund Freud e sua teoria da pulsão de morte desempenham um papel central na concepção de Butler sobre a não-violência. Freud argumenta que a pulsão de morte e a agressividade são forças inerentes à psique humana, representando o potencial destrutivo nas relações interpessoais e sociais. Butler utiliza essa concepção para propor que a não-violência não se limita a reprimir a agressividade, mas implica uma constante negociação com essas forças destrutivas, ressignificando-as em práticas de cuidado e solidariedade que reconhecem a interdependência humana. A partir de Freud, Butler constrói uma ética de não-violência que admite a ambivalência e os conflitos inerentes aos laços sociais, sugerindo que o compromisso com a preservação da vida demanda um reconhecimento ativo dessas tensões. Essa postura sugere que a não-violência de Butler não é uma simples rejeição do conflito, mas uma negociação ativa com a agressividade. Ao integrar a teoria freudiana ao seu modelo de não-violência, Butler defende que a ética do cuidado deve ser entendida como uma prática dinâmica, capaz de sustentar uma vida coletiva em meio à pulsão destrutiva. Esse diálogo com Freud ressoa com a preocupação de Butler com a complexidade das relações sociais e as ambivalências que permeiam as construções da identidade e da subjetividade.

Aqui, Judith Butler oferece uma análise densa sobre a filosofia política freudiana, articulando as noções de guerra e destruição no contexto das pulsões humanas e seu papel na dinâmica social e política. Para Butler, a reflexão freudiana sobre a pulsão de morte não é meramente descritiva das tendências destrutivas do sujeito humano, mas levanta um questionamento profundo sobre como essas pulsões moldam as estruturas institucionais e os processos de violência sistemática. Baseando-se na correspondência entre Freud e Einstein, Butler examina a possibilidade de conter ou sublimar esses impulsos destrutivos e os desafios intrínsecos à própria construção de uma ética da não-violência, que, segundo a autora, não se baseia em um ideal pacífico individualista, mas sim em uma resistência ativa e agressiva contra as forças de opressão e violência estrutural.

Freud postula uma dialética entre Eros e Thanatos – a pulsão de vida e a pulsão de morte –, que configura o sujeito humano como um espaço de ambivalência psíquica, onde o desejo de preservação e união está em constante tensão com o impulso de destruição. Butler utiliza esse dualismo freudiano para problematizar as noções tradicionais de violência e não-violência. Para ela, ao tratar da destrutividade como parte constitutiva do sujeito, Freud permite uma leitura da violência que ultrapassa o âmbito do ato físico, revelando um substrato estrutural de violência que permeia as instituições e práticas sociais. Esta ambivalência freudiana, como argumenta Butler, desestabiliza a ideia de que a não-violência seria uma postura naturalmente pacífica; ao contrário, a autora propõe que a não-violência é, em si, uma prática carregada de uma agressividade que é direcionada contra a perpetuação da violência sistêmica.

Ao ampliar a noção freudiana da “faculdade crítica” como mecanismo psíquico que inibe a pulsão de destruição, Butler aponta para as implicações políticas desse conceito, em que o potencial de autocrítica do sujeito poderia funcionar como uma força moderadora dos impulsos destrutivos. Freud sugere que essa capacidade crítica é indispensável para a contenção dos impulsos de violência, especialmente no contexto de grupos sociais, onde o risco de dissolução dos laços é acentuado pela presença de forças destrutivas coletivas. Butler interpreta essa inibição como uma forma de resistência à destruição, propondo que, no campo da política, a crítica e a autocrítica podem ser formas de contenção de tendências autodestrutivas de caráter estrutural. Assim, a “faculdade crítica” freudiana torna-se central na análise de Butler sobre a possibilidade de uma política de não-violência, onde o exercício da crítica se manifesta não como um ideal abstrato, mas como uma prática necessária para conter e redirecionar as forças de violência e destruição que permeiam as estruturas sociais.

A discussão de Butler sobre o “crítico ambivalente” e a inibição crítica retoma a questão freudiana da formação do super-ego, que, ao internalizar as normas sociais, cria um espaço onde a pulsão destrutiva pode se voltar contra o próprio sujeito, em um processo de autonegação que pode assumir proporções autodestrutivas. Butler explora como essa dinâmica de autocrítica pode ser, ao mesmo tempo, uma prática de autocontrole e uma armadilha psíquica, em que o sujeito se torna vítima de um regime de normas que reforçam um ciclo contínuo de violência e autoagressão. No contexto político, isso sugere que a contenção da violência por meio de normas sociais deve ser acompanhada por uma análise crítica das próprias normas, evitando que o controle da violência acabe gerando novas formas de opressão e exclusão. Butler parece, assim, convocar o leitor a pensar a crítica como uma prática ética que desafia os mecanismos institucionais que instrumentalizam a violência, expondo os limites da contenção normativa e os perigos de uma cultura da pulsão de morte que se perpetua sob a aparência de ordem social.

A propósito, esse debate posiciona a psicanálise freudiana no centro do projeto ético-político de Butler, onde a não-violência é compreendida como um “vínculo ético-político” que transcende o individualismo e abraça uma interdependência agressiva. A autora sugere que a luta contra a violência estrutural exige uma reformulação da ética e da política, em que a crítica à violência sistêmica está intrinsecamente ligada à crítica do individualismo. Butler questiona as noções de autonomia e soberania, propondo que a verdadeira não-violência emerge do reconhecimento de uma interdependência que resiste à normatividade opressiva e ao abandono dos sujeitos mais vulneráveis. Assim, o capítulo se alinha com a tese central do livro ao propor que o combate à violência estrutural requer uma reavaliação da própria ideia de sujeito e da relação entre o eu e o outro, enfatizando que a ética da não-violência deve ser uma prática coletiva de resistência.

A análise de Butler, portanto, expande a filosofia freudiana ao explorar a dimensão social das pulsões destrutivas, questionando como a pulsão de morte influencia o comportamento coletivo e a organização política. Em sua visão, a luta pela não-violência não pode se restringir ao âmbito individual ou moral, pois demanda uma abordagem crítica da estrutura social e das condições materiais que promovem a violência como meio de controle. Butler propõe que a filosofia política e a psicanálise se encontram no compromisso de compreender a destrutividade como elemento constitutivo das relações sociais, mas também na tarefa de canalizar essa energia destrutiva para a construção de uma política de interdependência que valorize a vulnerabilidade e a precariedade da vida. Em última análise, o capítulo serve para reafirmar o argumento de Butler de que a não-violência é uma prática de "construção de mundo" que se opõe radicalmente ao individualismo e ao isolamento, promovendo um compromisso ético com a igualdade e a interconexão.

Outro diálogo filosófico que enriquece o argumento de Butler é com Immanuel Kant, particularmente em relação ao princípio da universalidade moral. Kant, ao formular o imperativo categórico, propõe que uma ação moral deve poder ser universalizada sem contradições. Butler aplica essa ideia ao questionar os limites éticos da violência, especialmente nas justificativas de autodefesa. Ao propor um universalismo fundamentado na precariedade, ela sugere que o ideal de igualdade deve ir além das fronteiras liberais e incorporar o reconhecimento da interdependência, um movimento que ela acredita ser necessário para ampliar a concepção kantiana de moralidade universal. Este diálogo com Kant reforça o argumento de Butler de que a não-violência não é uma simples escolha individual, mas uma responsabilidade coletiva que transcende o indivíduo e se estende ao coletivo. Ao propor uma revisão kantiana que inclui a precariedade como fundamento ético, Butler está, de certo modo, reinterpretando o imperativo categórico para uma ética que reconhece a complexidade da diferença e da vulnerabilidade humana.

Para Butler, Étienne Balibar e Hannah Arendt oferecem ainda perspectivas adicionais para a análise do poder e da violência. Balibar, ao discutir a violência e a civilidade, sugere que a violência inerente às estruturas sociais deve ser constantemente confrontada para que se construa uma sociedade mais justa. Butler usa essa ideia para ampliar seu entendimento da não-violência como uma prática ativa de resistência que não apenas rejeita a violência explícita, mas que também desafia as formas de violência estrutural que regulam e marginalizam. Por outro lado, Arendt, em sua distinção entre poder e violência, argumenta que o poder verdadeiro não necessita da violência para se manter, uma visão que Butler incorpora ao discutir a não-violência como uma manifestação de poder que valoriza a solidariedade e a construção de alianças. Butler se apropria dessa distinção arendtiana para questionar as justificativas de autodefesa usadas por Estados e outras instituições, que utilizam a violência sob o pretexto de proteger a “segurança pública” e a “ordem social”. Tais perspectivas complementam o projeto de Butler ao aprofundarem a crítica às formas de poder que se utilizam da violência, reforçando seu compromisso com a criação de alianças e redes de apoio mútuo.

Em “The Force of Nonviolence”, Judith Butler também confronta a questão da violência revolucionária, discutindo-a sob uma perspectiva crítica e diferenciada. Ao tratar do uso da violência como uma possível ferramenta de resistência em contextos de opressão, ela levanta uma importante questão: pode a violência revolucionária realmente fomentar uma transformação estrutural duradoura ou, ao contrário, corre o risco de reproduzir as mesmas lógicas de dominação que pretende abolir? Butler sugere que, ao recorrer à violência, mesmo por motivos considerados justos, os movimentos revolucionários podem inadvertidamente perpetuar uma ética instrumental e normativa que fundamenta os sistemas de poder opressivos. A ideia de que a violência, quando usada para fins revolucionários, pode se tornar um meio necessário para alcançar um objetivo justo, tende, para Butler, a comprometer a integridade ética do movimento. Nesse sentido, sua visão ecoa a crítica de Walter Benjamin, para quem a violência instrumental jamais pode ser completamente separada da lógica de dominação que busca destruir. Ao adotar a violência, a resistência revolucionária pode, portanto, se enredar nas mesmas estruturas que luta para subverter.

A partir dessa crítica, Butler propõe que a não-violência deve ser entendida como uma alternativa radical à violência revolucionária, não como ausência de conflito, mas como uma prática de resistência ética que transcende a lógica binária entre opressor e oprimido. Em sua visão, a verdadeira transformação política e social não reside na conquista do poder pelo poder, mas sim na criação de relações e instituições que rejeitem a instrumentalidade violenta. Em vez de reivindicar o poder por meio da força, Butler defende que a resistência política e ética deve reimaginar o próprio conceito de poder, buscando estruturas que se baseiem em princípios de dignidade, solidariedade e interdependência. A proposta de Butler, então, não nega o valor das lutas históricas contra regimes opressores, mas questiona se a violência, mesmo com propósitos revolucionários, pode efetivamente conduzir a uma sociedade mais justa e igualitária. Para ela, o compromisso com a não-violência não é uma postura passiva, mas uma forma ativa de resistência que desafia e subverte os mecanismos de poder hegemônicos, promovendo um novo horizonte político fundamentado na ética do cuidado e no respeito universal pela precariedade compartilhada.

Assim, a não-violência, segundo Butler, constitui-se como uma prática de resistência que, longe de se submeter ao status quo, busca criar as condições para uma transformação que transcende as relações de poder baseadas na violência. Esse ideal de resistência ativa e não-violenta, que recusa a lógica da violência revolucionária, emerge como um imperativo ético para Butler, na medida em que coloca a dignidade humana e o reconhecimento da vulnerabilidade mútua no centro do projeto político. Em sua concepção, a luta por justiça e igualdade requer uma reestruturação completa das formas de interação social, na qual o reconhecimento e a valorização das vidas precarizadas passam a ser fundamentais para o novo imaginário político.

Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.

Imagem: DALL-E

Podemos aqui ensaiar algumas provocações: em que medida as reflexões de Butler poderiam dialogar com o individualismo protestante, especialmente no contexto brasileiro, e contribuir para uma ética social mais abrangente? Vale lembrar que o calvinismo, de modo análogo, também parte da precariedade dos indivíduos: O conceito de depravação em João Calvino, como articulado nas Institutas da Religião Cristã (1559), fundamenta-se na concepção mítica de uma corrupção essencial e total da natureza humana, originada a partir da queda de Adão. Calvino não trata o pecado apenas como um conjunto de ações específicas ou falhas morais pontuais, mas o conceitua como um estado ontológico de alienação, que representa uma ruptura profunda e contínua entre o ser humano e Deus. Para ele, o pecado original é uma “depravação e corrupção hereditária”, algo que se infiltra na própria essência da humanidade e permeia todas as faculdades da alma, impossibilitando o ser humano de realizar, por seus próprios meios, qualquer ação que agrade a Deus (Institutas II.1.5). Esse ponto é central, pois fundamenta a necessidade de uma intervenção divina para qualquer retorno à retidão.

Na perspectiva de Calvino, essa corrupção é abrangente e absoluta, sem qualquer parte do ser humano que esteja imune à influência devastadora do pecado. O intelecto, a vontade e as emoções encontram-se igualmente corrompidos, o que configura o ser humano em um estado de contínua incapacidade para o bem. A profundidade dessa corrupção coloca o ser humano em um dilema insuperável, pois, mesmo que o desejo de buscar o bem se manifeste, ele se vê perpetuamente inibido pelo domínio do pecado, que aprisiona sua vontade. Ao contrário das perspectivas que enfatizam o livre-arbítrio como uma força ativa e operante para o bem, Calvino descreve a vontade humana como “em miserável servidão” ao pecado. A noção de depravação total e o conceito de um livre-arbítrio “escravizado constroem uma visão pessimista da condição humana, subjugada a uma “rebeldia estrutural” contra Deus (Institutas II.2.8).

Esse entendimento da natureza humana rejeita veementemente as ideias pelagianas, que atribuem a transmissão do pecado original à mera imitação. Para Calvino, o pecado não é uma mera influência externa, mas uma realidade intrínseca, um “contágio” transmitido hereditariamente desde Adão a toda a sua descendência. Assim, a depravação é uma corrupção radical e inescapável que se perpetua através das gerações, deixando o ser humano em uma condição que só pode gerar ações contrárias à vontade divina. Ao afirmar que o ser humano é “fecundo em todas as coisas ruins”, Calvino enfatiza a insuficiência das capacidades naturais humanas para o bem, reforçando que, sem a intervenção da graça divina, o homem está condenado a viver em oposição aos desígnios de Deus (Institutas II.1.8).

No cerne dessa depravação encontra-se o conceito de “concupiscência”, que Calvino entende como uma inclinação incontrolável e desordenada para o pecado. A concupiscência representa, para ele, um estado de corrupção moral interna, que molda as escolhas, desejos e motivações do indivíduo, direcionando-o para uma contínua alienação da bondade divina. Esse estado de alienação é, segundo Calvino, tão determinante que a natureza humana se vê conduzida a uma trajetória de autodestruição espiritual e moral. A concupiscência não é, portanto, um desejo específico ou restrito, mas uma inclinação radical que contamina todos os aspectos da vida humana, reforçando a necessidade de uma intervenção externa para qualquer possibilidade de reconciliação com Deus (Institutas II.2.10).

A solução para essa condição de depravação, na visão de Calvino, não se encontra em qualquer potencial humano, mas exclusivamente na obra redentora de Cristo e na regeneração operada pelo Espírito Santo. Calvino defende que essa regeneração não é um mérito ou conquista humana, mas uma obra da graça soberana de Deus. Somente por meio desse ato regenerador a mente e o coração humanos podem ser transformados, habilitando o ser humano a buscar a justiça. Essa regeneração é um processo monergístico, em que a vontade e a ação de Deus são essenciais e exclusivas, determinando a renovação espiritual do ser humano sem qualquer cooperação humana. Assim, a redenção se torna um reflexo da glória divina, como um dom que transcende as capacidades humanas e que só pode ser recebido por meio da graça (Institutas II.3.3).

Por fim, a doutrina da depravação total em Calvino não apenas destaca a profundidade do pecado humano, mas sublinha a centralidade da graça divina como o único meio de redenção. Ao afirmar que o ser humano está em um estado de perdição completo, Calvino exalta a necessidade absoluta da graça para libertá-lo das amarras da corrupção. A regeneração, neste contexto, é mais do que uma mudança de comportamento ou uma reorientação moral; é um dom divino que transforma a essência do ser humano, renovando a sua natureza e permitindo-lhe viver de acordo com a justiça divina. Dessa forma, a depravação total e a regeneração monergística constituem elementos interdependentes, estabelecendo as bases teológicas para a salvação, onde a intervenção divina é a única esperança de restauração (Institutas II.3.6).

Na proposta de leitura dialógica entre a noção de depravação total em Calvino e a vulnerabilidade em Judith Butler, surge uma interpretação secular da insuficiência humana que ressoa em ambas as concepções. A perspectiva de Calvino sobre a depravação total descreve uma corrupção ontológica que abrange todas as faculdades humanas, tornando o indivíduo completamente incapaz de alcançar o bem divino sem uma intervenção sobrenatural. Esse estado de alienação não se refere meramente à prática de atos imorais, mas a uma condição existencial de insuficiência, onde o ser humano é profundamente dependente da graça divina para obter regeneração espiritual. A depravação, portanto, não permite que o sujeito supere sua própria alienação sem uma força transcendental que o resgate de sua natureza corrompida.

Judith Butler, ao tratar da vulnerabilidade e da precariedade, apresenta uma visão da condição humana que ecoa, em termos seculares, essa dependência essencial. Em sua concepção, a vulnerabilidade é uma característica ontológica que revela o ser humano como inerentemente exposto e interdependente, incapaz de sustentar-se fora de relações sociais e de apoio mútuo. A sobrevivência e o reconhecimento dependem de uma resposta ética a esse estado de exposição, implicando uma fragilidade que demanda uma estrutura de cuidado e coabitação. Surge então a provocação: essa vulnerabilidade, situada no plano ético-social, espelha de certo modo o estado de necessidade essencial descrito por Calvino, em que o ser humano, sem uma intervenção externa, estaria inevitavelmente destinado à autodestruição ou ao isolamento? Em ambos os casos, a insuficiência humana parece requerer uma transformação que transcende as capacidades individuais, seja pela graça divina ou pela ética da interdependência. Desenvolver esse ponto, no entanto, exigiria inúmeras mediações sócio analíticas, correndo o risco de trair a especificidade de cada autor. Ainda assim, ele permanece como uma instigante questão para futuras reflexões.

Concluindo, a precariedade em Butler não se limita a um estado ontológico de fragilidade humana, mas é constituída materialmente por relações de poder que definem quais vidas merecem amparo e quais são deixadas à margem. Em “The Force of Nonviolence”, Butler vincula a vulnerabilidade a condições estruturais que expõem populações racializadas, economicamente desfavorecidas ou marginalizadas a uma violência silenciosa, onde o abandono e a exclusão operam com a mesma força que a violência física. Para Butler, essas condições produzem um estado de vulnerabilidade distribuído de forma desigual, resultante de uma economia política que determina o valor das vidas segundo sua posição nas hierarquias sociais. Assim, a grievability representa um reconhecimento da dignidade e do valor de todas as vidas, desafiando não apenas a exclusão ética, mas também os processos materiais que perpetuam desigualdades. Essa “graça” secular, portanto, se fundamenta na resposta às necessidades concretas das vidas precarizadas, propondo uma solidariedade ativa e relacional que reconfigura as estruturas sociais de amparo e proteção.

Ao deslocar a crítica ao individualismo liberal para o plano das práticas de reconhecimento e proteção social, Butler também desafia o conceito de sujeito autônomo que caracteriza o universalismo abstrato. Sua ênfase na interdependência humana revela uma crítica mais ampla à noção de que o indivíduo é uma unidade completa, que existe independentemente dos laços sociais. Em contraste com o sujeito calvinista, que depende exclusivamente da graça divina, o sujeito de Butler encontra sua dignidade e reconhecimento na coabitação e no cuidado mútuo, onde a “graça” se manifesta não como intervenção sobrenatural, mas como prática coletiva de resistência e de justiça. Assim, enquanto o liberalismo promove a autonomia do sujeito, o pensamento de Butler radicaliza o entendimento do sujeito como dependente da interdependência social e da dignidade partilhada, sugerindo, paradoxalmente, uma ética relacional que ecoa, em chave secular, a dependência radical da graça calvinista. Nesse sentido, o universalismo da precariedade exige uma ética do cuidado que transcenda o sujeito isolado, posicionando o valor da vida no centro de um projeto político e ético que desafia as exclusões estruturais e redefine as bases da solidariedade em uma democracia radical.

Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. A “graça” secularizada, nos termos desta “precária” tentativa de tradução teológica, torna-se um compromisso ativo de justiça, respondendo não apenas a um ideal ético abstrato, mas às urgências concretas que desafiam a exclusão estrutural. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.

Referências
BUTLER, Judith. The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind. London: Verso, 2020.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 4 v. (Baseada na edição de 1559).

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Ídolos e Ideologia: Fragmentação da Subjetividade e o Vazio do Real em Calvino e Žižek

O artigo “O espectro da ideologia” de Slavoj Žižek, presente na obra “Um mapa da Ideologia”, configura-se como uma crítica sofisticada à concepção marxista clássica de ideologia, abordando-a de maneira a desmantelar (e reformular) a noção que a vê como uma “falsa consciência”. Para Žižek, a ideologia não se limita a distorcer a percepção da realidade; ela é constitutiva da própria realidade social, inseparável dela. No artigo, o autor explora as complexidades desse conceito, articulando-o com a psicanálise lacaniana e com uma perspectiva dialética que desvela suas nuances e paradoxos. O texto de Žižek, portanto, desafia as formulações marxistas e oferece uma nova leitura que ultrapassa a compreensão tradicional e abrange a ideologia como parte integrante e estruturante da realidade.

Žižek inicia sua análise ao propor uma reconsideração da ideologia, que deixa de ser compreendida como uma “máscara” que encobre o real e passa a ser uma condição estrutural da experiência e percepção da realidade. Diferentemente de Marx, que via a ideologia como uma “falsa consciência” alienadora, Žižek argumenta que a ideologia permeia a própria estrutura social, funcionando como uma matriz simbólica que sustenta a vivência cotidiana dos sujeitos. Em outras palavras, a ideologia não é apenas uma ilusão que encobre o que é verdadeiro; ela é a estrutura fantasmática que organiza a experiência do sujeito dentro de um determinado sistema, como o capitalismo. Žižek utiliza a noção de “fantasia” lacaniana para ilustrar como a ideologia opera. Assim como no conceito lacaniano de que “não existe relação sexual”, onde o ato sexual é sempre permeado por fantasias, a ideologia também configura uma relação fantasmática com o real que oculta sua complexidade e media a experiência humana.

Esse entendimento permite que Žižek vá além das concepções clássicas e revele como a ideologia atua não apenas no nível da consciência, mas também da realidade material. A ideologia, nesse contexto, não necessita que as pessoas creiam nela em um sentido estrito; basta que elas sigam suas práticas para que seu funcionamento continue inabalável. Dessa maneira, Žižek elabora o conceito de “ideologia cínica”, onde os sujeitos sabem que o sistema é injusto, mas agem como se não soubessem, perpetuando a estrutura ideológica através de suas ações cotidianas. Essa perspectiva aprofunda o alcance da ideologia no capitalismo contemporâneo, onde os sujeitos participam do sistema sem precisar acreditar nele. Para Žižek, a ideologia persiste exatamente porque ela já está materializada na realidade, e os sujeitos operam conforme suas regras, mesmo que não compartilhem mais de sua “verdade” subjetiva.

Ao examinar a ideologia, Žižek utiliza a “leitura sintomal” como ferramenta crítica para explorar o que os discursos tentam ocultar de maneira estruturante. Inspirado pela psicanálise lacaniana e pela crítica literária, o autor defende que, ao invés de tomar as ideias ou valores ideológicos em sua literalidade, é preciso identificar as falhas, lacunas e rupturas no discurso oficial — aquilo que ele chama de “sintomas”. Esses sintomas, muitas vezes expressos em contradições ou omissões sutis, são manifestações de um desejo reprimido ou de uma tensão não resolvida que sustenta a ideologia. A leitura sintomal, portanto, permite que o crítico identifique aquilo que não é dito diretamente, mas que é central para a estrutura ideológica em questão. Nesse sentido, a crítica da ideologia não busca apenas “desmascarar” uma distorção consciente, mas desvendar os elementos inarticulados que revelam a função de controle e manipulação do discurso ideológico.

Žižek ilustra o uso da leitura sintomal em suas análises de fenômenos concretos, revelando como a ideologia permeia o cotidiano. Ele examina, por exemplo, a forma como o Ocidente abordou o conflito da Bósnia e a dissolução da Iugoslávia, onde a mídia e intelectuais liberais ocidentais descrevem o conflito como uma explosão de rivalidades étnicas primordiais, assumindo uma posição de “observador antropológico”. Tal leitura apresentava o conflito como um “espetáculo étnico”, alheio à modernidade racional ocidental, e exime o Ocidente de sua responsabilidade no processo. Para Žižek, essa explicação ideológica transformava a guerra em um fenômeno naturalizado, mascarando as dinâmicas políticas e econômicas globais que contribuíram para a desintegração da região. A leitura sintomal permite revelar que o que está sendo ocultado não é apenas o papel ativo do Ocidente, mas o próprio funcionamento do discurso de civilidade ocidental, que se estrutura na contradição de um “outro bárbaro”.

Outro exemplo significativo é a análise de Žižek sobre o que ele chama de “cinismo ideológico” no capitalismo contemporâneo, onde as pessoas reconhecem a injustiça e a exploração do sistema, mas continuam a operar dentro dele como se não soubessem. Esse cinismo se manifesta, por exemplo, na cultura consumista, onde os consumidores se sentem atraídos por propagandas que sabem ser enganosas, mas que ainda assim impactam suas escolhas. Essa participação cínica, segundo Žižek, revela um dos aspectos mais sutis da ideologia atual, que não mais demanda uma crença genuína, mas uma adesão automática às práticas do sistema. A leitura sintomal aqui permite que se observe como o discurso da “consciência crítica” dos consumidores mascara a reprodução do próprio sistema que se critica.

Essa reflexão leva Žižek a revisitar o conceito de fetichismo da mercadoria, oferecendo uma nova leitura. Para Marx, o fetichismo da mercadoria era a atribuição de qualidades humanas a objetos, obscurecendo a relação entre trabalhadores e meios de produção. Žižek, no entanto, vê o fetichismo como uma característica constitutiva do sistema capitalista, um processo que não se limita à “distorção”, mas que constitui o próprio modo de operação do capitalismo. Esse fetichismo não é uma “ilusão” que pode ser desfeita, mas um processo material e simbólico que emerge espontaneamente. Ao ver os produtos como portadores de valor intrínseco, estamos perpetuando a estrutura do capitalismo. Para Žižek, a crítica marxista que vê o fetichismo como um erro de percepção perde de vista o caráter inevitável e estrutural desse processo. O fetichismo é, portanto, o modo como o capitalismo estrutura as relações econômicas, e não algo que possa ser desmontado com a revelação de sua falsidade.

A análise de Žižek sobre a ideologia segue uma lógica dialética, onde ele articula os conceitos de ideologia “em si” e “para si”. A ideologia “em si” refere-se à doutrina, às crenças e valores coletivos que aparentam um sentido compartilhado e que operam como uma “verdade” social. Nesse nível, a ideologia fornece coesão ao sustentar os discursos e valores que aparentam uma neutralidade. No entanto, Žižek propõe que a ideologia “para si” revela sua dimensão material e externa, onde doutrinas e crenças se convertem em práticas, rituais e instituições. Ao tornar-se “para si”, a ideologia se transforma em um mecanismo visível e operacional na vida social, constituindo-se nos “Aparelhos Ideológicos de Estado” descritos por Althusser. Žižek identifica nesse movimento dialético uma transformação interna, onde a ideologia desintegra-se em fenômenos aparentemente distintos, que se articulam de maneira dispersa no corpo social. Ao se manifestar de maneira fragmentada, a ideologia não mais se apresenta como uma “falsa consciência” centralizada, mas como uma “família” de elementos interconectados que persistem de maneira invisível e dispersa.

Por meio dessa articulação dialética, Žižek demonstra que a tentativa de escapar da ideologia é, frequentemente, uma das formas mais puras de subordinação a ela. Essa estrutura cínica da ideologia revela que a crítica tradicional que vê a ideologia como algo externo à realidade é, ela mesma, uma ilusão ideológica. Para Žižek, a ideologia não é um elemento a ser superado, pois sua própria lógica está presente nas formas de vida e de pensamento que aparentam romper com ela. A ideologia não é um erro a ser corrigido; é um fundamento estrutural do modo como a realidade é experimentada. Dessa forma, Žižek rejeita a ideia de que a ideologia possa ser simplesmente desmascarada e sugere que toda tentativa de escapar dela a reafirma, colocando os sujeitos ainda mais profundamente sob seu domínio.

Essa abordagem culmina em uma crítica à ideia marxista de representação ideológica. Para Žižek, a ideologia não é meramente uma distorção na representação da realidade, mas uma prática materializada que se realiza nas ações cotidianas. Inspirado em Althusser, Žižek propõe que a ideologia não é somente interna ao sujeito; é performada em ações e sustentada por instituições. Esse “materialismo da ideologia” implica que, em vez de ser uma crença íntima, a ideologia molda as ações dos sujeitos independentemente de suas crenças conscientes. O autor, então, refuta a noção de que a ideologia seja uma distorção que pode ser corrigida ou superada. Para ele, a ideologia opera como uma base real da estrutura social, estabelecendo um quadro que não se desintegra simplesmente ao se tomar consciência dele.

Ao propor que a ideologia é algo inescapável e intrínseco à realidade, Žižek eleva a crítica da ideologia a um novo patamar. Em vez de buscar uma “consciência verdadeira” livre de ideologia, ele sustenta que nossa compreensão da realidade está inextricavelmente moldada por ela. O caráter inescapável da ideologia torna o conceito de “falsa consciência” inadequado, pois assume que é possível uma consciência sem distorções. No entanto, é importante destacar que, para Žižek, o “Real” lacaniano permanece um vazio estrutural, uma dimensão inatingível e essencialmente fora do alcance da simbolização completa. A ideologia, então, atua como uma estrutura que mascara essa ausência central e oferece uma versão de realidade que parece coesa, ainda que construída em torno desse vazio intransponível. Dessa forma, a própria tentativa de alcançar essa consciência pura já é uma ilusão ideológica, pois se ancora na ideia de que há uma “realidade verdadeira” além das estruturas simbólicas que nos condicionam.

Em “O espectro da ideologia”, Slavoj Žižek, portanto, nos oferece uma crítica abrangente e original da concepção marxista de ideologia. Ao reformular o conceito para além da ideia de “falsa consciência”, ele introduz a noção de ideologia como estrutura constitutiva da realidade social, um campo de práticas e significados que condiciona a experiência humana. A ideologia, para ele, é o próprio horizonte da realidade que habitamos, não sendo algo a ser superado, mas constantemente analisado em sua capacidade de nos capturar mesmo quando pensamos escapar dela. Em última instância, Žižek nos convoca a desconfiar de todas as tentativas de romper com a ideologia, pois elas podem, paradoxalmente, ser o gesto mais profundo de sujeição a seu poder estrutural.

Imagem: DALL-E

Para estabelecer uma ponte entre a crítica à ideologia em Žižek e a teologia calvinista, é fundamental reconhecer que ambos os autores veem na mente humana uma predisposição estrutural a construir representações incompletas e ilusórias da realidade. Se para Žižek a ideologia atua como uma “lente invisível” que estrutura a percepção e normaliza sistemas de crença, para Calvino essa estrutura assume a forma de uma inclinação natural da mente para criar ídolos, afastando-se do verdadeiro conhecimento. Em ambos os casos, o ser humano se submete a uma realidade fragmentada e limitada, seja por meio de ideologias que distorcem a realidade social ou de ídolos que obscurecem a essência divina. Essa convergência entre os autores revela o quanto essas “fábricas de crenças” operam dentro do sujeito, impondo barreiras que o afastam de uma experiência genuína e desvelando, em última instância, a profundidade do vazio estrutural que ambos, cada um à sua maneira, buscam expor.

Em “As Institutas da Religião Cristã,” João Calvino desenvolve uma compreensão aguda da natureza humana ao descrever a mente como uma “fábrica perpétua de ídolos”. Essa expressão sintetiza o entendimento calvinista da inclinação humana à idolatria, não como um desvio esporádico, mas como um traço estrutural do ser humano após a queda. Em sua análise, Calvino não vê a criação de ídolos apenas como uma falha moral ou intelectual, mas como uma compulsão que emerge da incapacidade do homem de compreender plenamente o divino. A mente humana, ao se deparar com a Transcendência, tende a criar representações que satisfaçam a necessidade de tangibilizar e controlar o incompreensível, levando à fabricação de “falsos deuses” que, ao invés de revelarem Deus, refletem as limitações e desejos humanos.

Para Calvino, essa inclinação idólatra é tão pervasiva que se manifesta não só em crenças religiosas, mas também em práticas cotidianas e na maneira como o ser humano interpreta a realidade ao seu redor. Ele argumenta que o impulso de criar ídolos responde à necessidade humana de preencher o vazio deixado pela própria finitude e pelo afastamento de Deus. Nesse sentido, a idolatria não é um erro superficial, mas uma busca inerente do coração humano por estabilidade e sentido em uma existência marcada pela impermanência. O ídolo, para Calvino, surge como uma projeção dos próprios limites e fraquezas humanas e molda a forma como o indivíduo se relaciona com o sagrado. Essa “idolatria estrutural” expõe uma verdade sobre o ser humano: a tendência de construir “verdades” e representações que, ao invés de captarem o absoluto, refletem a própria subjetividade finita.

Esse conceito calvinista de idolatria dialoga profundamente com a análise de ideologia proposta por Slavoj Žižek, que a concebe como uma estrutura que organiza a percepção humana, funcionando como uma “lente” que define o que é visível, compreensível e aceitável para o sujeito. Žižek propõe que a ideologia não é apenas uma falsa representação, mas uma camada estruturante que molda a própria experiência da realidade. A ideologia, assim como a idolatria em Calvino, configura-se como uma disposição intrínseca da mente humana que não é facilmente superável. Para Žižek, ela não é um “erro” de entendimento, mas uma dimensão constitutiva da subjetividade, que leva o indivíduo a interpretar a realidade de maneira limitada e condicionada, sustentando crenças e práticas que refletem e reforçam o sistema dominante. Ademais, ao considerar o “Real” lacaniano como um vazio estrutural, percebemos que a idolatria calvinista e a ideologia zizekiana operam ambas como estruturas simbólicas que buscam preencher uma ausência fundamental: a primeira, no plano da experiência religiosa e do sagrado; a segunda, no contexto social e político. Esse vazio do “Real” se assemelha, na perspectiva de Calvino, à incompreensibilidade de Deus, o que leva a mente a construir ídolos para “preencher” essa lacuna.

Uma afinidade clara entre Calvino e Žižek é a ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia funcionam como substitutos imperfeitos para uma realidade mais profunda e autêntica. Na teologia calvinista, o ídolo oferece ao crente uma versão distorcida do divino, que obscurece a verdadeira natureza de Deus e afasta o fiel da genuína experiência do sagrado. Na perspectiva de Žižek, a ideologia opera de modo similar ao criar uma “fantasia estruturante” que define a experiência do mundo de acordo com as exigências e limitações de um sistema específico de crenças e valores. Ambos os conceitos apontam para a necessidade de mediação: tanto a idolatria quanto a ideologia revelam que o ser humano parece incapaz de encarar o “real” em sua essência sem projetar sobre ele camadas de significados que acabam por obscurecer sua verdadeira natureza. Para Žižek, esse “Real” permanece um vazio inalcançável, e a ideologia atua como um dispositivo de cobertura, oferecendo uma ilusão de completude. A idolatria, segundo Calvino, realiza função análoga ao transformar a infinidade incompreensível de Deus em figuras manejáveis e limitadas.

No entanto, uma distinção sutil emerge entre Calvino e Žižek. Calvino enxerga a idolatria como uma expressão da depravação humana e da necessidade de aproximação de um Deus inacessível pela própria razão. Para ele, o ídolo é um reflexo da fraqueza e da corrupção da mente humana, que busca conforto em representações tangíveis que atendem a seus desejos e limitações. Žižek, por outro lado, vê a ideologia como um mecanismo interno ao próprio funcionamento da sociedade, que não surge como uma manifestação isolada da “fraqueza” do sujeito, mas como uma estrutura compartilhada que sustenta e organiza o sistema social. Para Žižek, o indivíduo contribui para a perpetuação da ideologia não apenas por sua fraqueza, mas porque a ideologia opera como uma estrutura que molda a própria subjetividade do sujeito, fazendo-o agir como agente de valores e práticas que ele, em certa medida, aceita e perpetua inconscientemente.

Calvino ainda sugere que o homem projeta nos ídolos algo que é produto de suas próprias limitações e fraquezas, construindo neles uma falsa segurança. Žižek compartilha dessa visão ao entender que a ideologia, embora envolva certa dose de engano, não é imposta ao sujeito de maneira arbitrária; ao contrário, emerge do próprio sujeito, que a perpetua por meio de práticas e atitudes cotidianas. Dessa forma, tanto a idolatria quanto a ideologia são sustentadas internamente, por uma disposição inerente à própria mente humana de buscar sentido e ordem, mesmo que esses sentidos e ordens sejam limitados e distorcidos. Para Calvino, essa disposição representa um afastamento da verdade divina; para Žižek, ela configura o afastamento do sujeito de uma percepção crítica da própria realidade social, enquanto o vazio do “Real” permanece oculto sob a coesão ilusória que a ideologia busca criar.

Por fim, a crítica de Calvino aos ídolos e a análise de Žižek sobre a ideologia permitem uma articulação interessante em torno da ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia refletem construções da subjetividade que, ao invés de libertarem o sujeito, o confinam em uma realidade artificial e limitada. Calvino vê na idolatria um mecanismo pelo qual o ser humano, ao tentar suprir a ausência de Deus, se distancia ainda mais da verdade divina. Žižek, por sua vez, observa que a ideologia se perpetua porque oferece ao sujeito uma estrutura de sentido, ainda que distorcido, sustentada pela necessidade de encobrir o vazio do “Real”. Ambos apontam que, ao tentar preencher suas vidas com “deuses” ou “ideias” que estruturam o mundo, os seres humanos acabam aprisionados em uma realidade fragmentada que não é reflexo do real, mas da limitação e fragmentação de sua própria subjetividade.

Referências
ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 7-46.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009. 4 v.

domingo, 3 de novembro de 2024

Rupturas e Verdades em Tempos de Conservadorismo: Badiou, Žižek e o Potencial Revolucionário do Real

O processo de acesso ao real - a que chamo, em meu jargão filosófico, de um procedimento de verdade - está sempre em via de destruir uma formalização parcial, porque faz advir a impossibilidade particular e pontual dessa formalização. Que conclusões tirar daí? Primeira: que só há conquista do real ali onde há uma formalização - pois, se o real é o impasse da formalização, é preciso que haja uma formalização. Logo, não há esperança de conquistar o real fora da existência de uma formalização, de um arranjo, de uma forma. O real supõe que tenha sido pensada e construída a forma aparente daquilo de que um determinado real é o real oculto. Segunda: a afirmação do real como impasse dessa formalização vai ser em parte a destruição dessa formalização. Ou, digamos, sua divisão. E tudo vai começar por uma afirmação inaceitável do ponto de vista da própria formalização, que prescreve o que é possível, a saber, a afirmação de que o impossível existe. Está aí o gesto fundamental de conquista do real: declarar que o impossível existe. Alain Badiou

Pensar as revoluções a partir das filosofias de Alain Badiou e Slavoj Žižek é um exercício que exige uma compreensão profunda das suas concepções de “real” e “verdade”, da natureza do “evento” e do papel do “discurso” na configuração da realidade. Ambos os pensadores, cada um à sua maneira, dialogam criticamente com o pós-estruturalismo, incorporando certas críticas e desconfianças em relação a estruturas fixas e essenciais, mas se distanciam dele ao propor que há dimensões da realidade que escapam ao discurso e ao campo simbólico. A revolução, para Badiou e Žižek, não é apenas uma mudança estrutural ou um rearranjo superficial das normas; trata-se de uma interrupção radical que desestabiliza as bases mesmas da realidade simbólica, confrontando o sujeito com um “real” que perturba e desafia a ordem vigente. Contudo, as abordagens de Badiou e Žižek divergem em pontos fundamentais, especialmente na maneira como compreendem o papel do evento, a importância da fidelidade a uma verdade emergente e o potencial transformador do discurso ideológico.

Para Alain Badiou, a revolução encontra sua expressão máxima no conceito de “evento”. Em sua visão, o evento é uma irrupção que transcende as coordenadas da situação em que se insere, permitindo o surgimento de uma verdade que desafia o campo simbólico e reconfigura as relações sociais. Em “Em busca do real perdido”, Badiou descreve o evento como um momento de ruptura que suspende a legalidade e a normatividade estabelecidas, permitindo que o impossível se manifeste como uma nova configuração do real. Esse real não é meramente uma construção discursiva; ele surge como algo que desafia a formalização e abre um horizonte de transformação. O evento, para Badiou, é uma espécie de “rasgo” na textura da realidade simbólica, um ponto onde a verdade emerge e exige uma fidelidade ética do sujeito. Assim, a revolução é concebida como uma fidelidade a essa verdade emergente, um compromisso contínuo que o sujeito deve sustentar mesmo diante das tentativas de neutralização e assimilação por parte do sistema.

A noção de fidelidade ao evento é central na teoria de Badiou, pois a revolução não se realiza em um único ato de ruptura, mas requer um esforço contínuo para preservar e desenvolver a verdade que surge do evento. Badiou argumenta que a revolução só é bem-sucedida se a verdade que ela inaugura permanecer ativa e resistir à coaptação pelas estruturas de semblante e simulacro, que ele associa à ordem do discurso e da ideologia dominante. Dessa forma, o evento revolucionário, ao se afirmar como uma nova ontologia, expande os limites do possível e desafia o que antes era considerado intransponível. Exemplo disso pode ser visto em suas análises de revoluções históricas, como a Revolução Francesa e a Revolução Russa, onde o surgimento de uma nova verdade — de igualdade, liberdade e justiça social — transforma radicalmente a estrutura de poder e as categorias de entendimento social. Em Badiou, o real emerge como aquilo que escapa à formalização discursiva e rompe o simulacro da realidade estabelecida, proporcionando um ponto de partida para uma reconfiguração ontológica.

Por outro lado, Slavoj Žižek aborda a revolução com uma perspectiva que, embora também se ocupe da ruptura com o status quo, enfatiza o papel da negatividade e das falhas internas do sistema simbólico. Diferente de Badiou, que concebe a revolução como uma fidelidade a uma nova verdade, Žižek propõe que a revolução é essencialmente uma revelação da inconsistência estrutural da realidade, um momento em que a negatividade do real se torna visível e expõe as limitações do discurso ideológico. Em “Menos que Nada”, Žižek argumenta que a revolução é o ponto em que o sistema simbólico se confronta com o seu próprio “nada”, revelando que as bases da realidade social são construídas sobre um vazio estrutural. Para Žižek, o discurso é um instrumento ideológico que organiza o simbólico e sustenta a aparência de coesão e consistência do mundo social. No entanto, esse discurso ideológico é constantemente ameaçado por aquilo que ele chama de “sintoma” — pontos de disfunção ou resistência que revelam as contradições internas do sistema. Na revolução, o sintoma se torna uma fissura irreparável, desestabilizando o campo discursivo e permitindo que o real — a negatividade fundamental — se torne visível.

Žižek entende a revolução menos como um compromisso com uma verdade positiva e mais como uma oportunidade de confrontar o vazio estrutural do simbólico. Ele enfatiza que o verdadeiro potencial revolucionário reside na capacidade de expor essa lacuna, o que ele descreve como a “tensão entre o real e o simbólico”. Essa tensão ocorre quando o sujeito se depara com o fato de que o discurso ideológico não é capaz de oferecer uma coesão completa e revela, ao contrário, sua dependência de uma falta estrutural. A revolução, então, é um momento em que a ideologia dominante perde seu poder de mascarar o real, expondo a realidade social como uma construção contingente e instável. Žižek utiliza exemplos históricos, como a Revolução Bolchevique e o Maio de 68, para ilustrar como os atos revolucionários desestabilizam a ordem simbólica, criando uma abertura para o questionamento radical das estruturas de poder. No entanto, ele adverte sobre os riscos de que a revolução seja capturada e “domesticada” pelo poder estabelecido, transformando-se apenas em mais uma engrenagem dentro do sistema que pretendia desestabilizar.

Para ambos os pensadores, a revolução implica uma transformação radical da subjetividade, mas eles concebem essa transformação de formas distintas. Em Badiou, o sujeito revolucionário é constituído pela fidelidade ao evento e pela adesão à verdade que emerge desse momento de ruptura. O compromisso com essa verdade é uma tarefa ética e política que redefine a identidade do sujeito, que se torna uma espécie de “guardião” da nova realidade. A revolução, nesse sentido, não é apenas uma mudança nas estruturas externas, mas uma reconfiguração interna do sujeito, que passa a se definir pela sua relação com a verdade do evento. Em Žižek, a constituição do sujeito revolucionário ocorre pela relação com o sintoma, que ele define como um ponto de disfunção dentro do sistema simbólico. Para Žižek, o sujeito revolucionário só pode surgir ao confrontar o “real” do sintoma, reconhecendo nele a verdade reprimida pela ideologia dominante. A revolução, assim, exige que o sujeito encare o real como uma negatividade estrutural e construa sua identidade a partir dessa nova consciência da falibilidade do campo simbólico.

A relação entre discurso e revolução é outro ponto de divergência fundamental entre Badiou e Žižek. Badiou vê o discurso como uma estrutura de semblante e simulacro, que estabiliza e formaliza a realidade social, mas que deve ser superada pelo evento. Ele se distancia do pós-estruturalismo, especialmente da ideia de que o discurso é a totalidade da realidade, ao defender que existem verdades universais que transcendem o campo discursivo e que podem ser afirmadas na forma de eventos. Para ele, o discurso opera como um sistema de formalização que organiza a experiência, mas que se revela insuficiente diante das exigências do real inaugurado pelo evento. A revolução, então, exige que o sujeito se comprometa com essa nova verdade e que ultrapasse as limitações impostas pelo discurso e pela ideologia.

Žižek, por sua vez, também incorpora uma crítica ao discurso, mas enfatiza seu papel como um instrumento ideológico que organiza o simbólico e reprime o real. Ele propõe que a revolução deve ser entendida como uma fissura no discurso ideológico, um momento em que o sintoma se torna visível e desafia a coesão do campo simbólico. Ao contrário do pós-estruturalismo, que muitas vezes privilegia a desconstrução contínua do discurso, Žižek argumenta que há uma verdade traumática no real que o discurso tenta encobrir, mas que sempre retorna como sintoma. Ele se distancia do pós-estruturalismo ao afirmar que a revolução não é meramente um processo de desconstrução discursiva, mas uma confrontação com o real como uma negatividade intransponível.

Badiou e Žižek, portanto, ocupam uma posição ambivalente em relação ao pós-estruturalismo. Enquanto compartilham com ele uma crítica à estabilidade e à universalidade tradicionais, ambos rejeitam a ideia de que o discurso é a totalidade da realidade. Para Badiou, o discurso é uma camada de semblante que deve ser rompida para que a verdade emergente do evento se afirme. Para Žižek, o discurso ideológico encobre a negatividade do real, que só se torna visível em momentos de ruptura revolucionária. Dessa forma, ambos ultrapassam o pós-estruturalismo ao defenderem uma dimensão do real que escapa ao discurso.

Imagem: DALL-E

Pode-se questionar neste ponto: De que modo as reflexões de ambos os pensadores dialogam com o projeto da modernidade ocidental? A tradição iluminista, com sua ênfase na razão universal, na progressão linear do conhecimento e na crença na capacidade humana de organizar o mundo em termos claros e racionais, promove uma visão de mundo que presume estabilidade e previsibilidade. No entanto, tanto Badiou quanto Žižek desafiam esse paradigma ao propor que o verdadeiro motor da transformação social não é a progressão incremental da razão, mas sim a irrupção radical e imprevisível do “evento” e da “negatividade”. Em Badiou, o evento é um acontecimento que escapa à lógica da continuidade e rompe com a estrutura racionalizada da situação, introduzindo uma verdade que exige um compromisso ético para além das certezas racionalistas. A revolução, assim, não é vista como um desdobramento natural de ideias progressistas, mas como uma interrupção brusca e inclassificável dentro da ordem simbólica. Badiou critica o ideal iluminista da verdade como uma entidade a ser descoberta e formalizada, propondo em vez disso que a verdade é algo que se cria — algo que surge de rupturas que desafiam o campo estabelecido de significação. A universalidade, sob esse prisma, não é uma meta racional a ser alcançada, mas um posicionamento subjetivo e político que se afirma na fidelidade a uma nova configuração da realidade.

Para Žižek, o ataque ao iluminismo é ainda mais profundo, pois ele argumenta que a própria crença na transparência da razão encobre uma dimensão traumática que a ideologia iluminista tenta reprimir. Inspirado por Hegel e Lacan, Žižek vê a razão não como uma ferramenta neutra de compreensão, mas como um discurso que inevitavelmente constrói um “real” que ele próprio não consegue acomodar. A ordem racionalista iluminista, em sua tentativa de mapear e estabilizar a realidade, gera uma série de sintomas — pontos de disfunção que indicam as falhas internas de sua própria lógica. Em vez de promover uma transparência e clareza universal, a razão iluminista acaba impondo um campo de significados que reprime sua própria negatividade e contingência. Para Žižek, a verdadeira quebra de paradigmas não acontece pela ampliação do domínio da razão, mas sim quando o sujeito é forçado a confrontar a lacuna estrutural dentro do próprio discurso racionalista, revelando que toda a realidade construída pela razão repousa sobre um vazio, uma falta irredutível que somente pode ser enfrentada por uma revolução que não busca completar a razão, mas expor a inconsistência essencial do projeto iluminista.

Portanto, a discussão sobre as revoluções a partir de Badiou e Žižek envolve uma crítica à centralidade do discurso como organizador da realidade e uma defesa de que há algo além dele — uma verdade ou uma negatividade que desafia o sistema simbólico. Para Badiou, a revolução é um evento que inaugura uma nova verdade e exige uma fidelidade ética, enquanto Žižek entende a revolução como uma ruptura que expõe a inconsistência estrutural do simbólico. Ambos reconhecem a importância do discurso, mas insistem que há um real que transcende e desafia a formalização simbólica, uma dimensão que apenas a revolução pode revelar e transformar.

Ao considerar as implicações das teorias de Alain Badiou e Slavoj Žižek sobre o real, o evento e a verdade revolucionária, uma questão provocativa emerge: de que modo esses projetos filosóficos nos oferecem ferramentas para confrontar e questionar o crescente conservadorismo que caracteriza nossa época? Se ambos os pensadores desafiam o status quo ao propor uma verdade que escapa às formalizações da ideologia e uma negatividade que expõe a inconsistência do sistema simbólico, eles nos convidam a enxergar o conservadorismo como uma tentativa de contenção dessa abertura ao real. O conservadorismo, com seu desejo de preservar uma coesão simbólica fixa, resiste a reconhecer a fragilidade e a contingência sobre as quais as estruturas de poder se erguem.

Assim, a pergunta permanece: se o evento e a negatividade constituem as verdadeiras forças de ruptura, capazes de revelar as falhas internas e os limites do discurso ideológico, como podemos, enquanto sujeitos, nos posicionar frente a essa verdade? Como podemos sustentar uma fidelidade ao potencial disruptivo e transformador do real em uma era que, em muitos aspectos, busca precisamente neutralizar esse potencial? A provocação, então, se torna um convite para pensar se somos capazes de ir além das ilusões da estabilidade e da ordem imposta, e de afirmar, como propõem Badiou e Žižek, um compromisso radical com a verdade, a negatividade e a revolução.

Finalmente, uma última questão se coloca: não foi exatamente esse o gesto da Reforma ao romper com o mundo medieval? A Reforma Protestante, em sua essência, pode ser vista como um evento que desestabilizou profundamente o campo simbólico medieval, desafiando o discurso estabelecido pela Igreja e o sistema de crenças hegemônico que fundamentava a ordem social da época. Como um evento revolucionário, a Reforma abriu espaço para um real que, até então, permanecia reprimido ou inacessível sob as formalizações do poder religioso. Rompeu com uma estrutura que parecia intransponível e possibilitou a emergência de novas verdades — sejam elas doutrinárias, culturais ou políticas —, alterando de maneira irrevogável as coordenadas da realidade medieval. Em termos badiouanos, a Reforma poderia ser vista como um evento de fidelidade a uma nova verdade religiosa e social; em termos zizekianos, como a revelação de uma negatividade estrutural que desnudou a inconsistência do sistema simbólico da Igreja. Esse paralelo levanta uma provocação: ao olharmos para a história, quantos desses eventos revolucionários, movidos por fidelidade ou pela exposição de uma negatividade reprimida, abriram caminho para a reconfiguração da ordem simbólica e trouxeram à tona um real até então irrepresentável?

Referências
BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Entre Hipóstase e Potencialidade: A Trindade de Calvino e a Ontologia Modal de Agamben

Na análise final sobre a “arqueologia da ontologia” em O uso dos corpos, o filósofo Giorgio Agamben realiza um trabalho detalhado de desconstrução das estruturas ontológicas que sustentaram a filosofia ocidental. Sua investigação ilumina as bases das relações entre linguagem, ser e poder, condicionando as possibilidades de ação humana e as formas de vida. Agamben busca desvendar como a existência foi instituída como uma forma específica de ser, mediada por instâncias ontológicas consolidadas em dispositivos de controle. Nesse contexto, o conceito de hipóstase, que tem suas origens na filosofia neoplatônica e foi amplamente reformulado na teologia cristã trinitária, revela-se central. A teologia trinitária, que introduz a ideia de uma unidade substancial entre Pai, Filho e Espírito Santo, concebe, contudo, cada uma dessas entidades como uma instância ontológica distinta. Este modelo consolidou o termo “hipóstase” no vocabulário filosófico e teológico, fornecendo uma base ontológica que estrutura uma multiplicidade hierarquizada de modos de ser, permitindo que unidade e multiplicidade coexistam de maneira controlada e instrumentalizada.

Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã, aborda essa estrutura trinitária sob uma ótica que privilegia a unidade essencial de Deus, ao mesmo tempo em que preserva as distinções entre as três pessoas divinas — Pai, Filho e Espírito Santo. Para ele, a doutrina da Trindade é uma das fundações centrais de sua teologia reformada, onde cada uma das três pessoas compartilha da mesma substância divina, exercendo funções e relações distintas sem comprometer a unicidade essencial de Deus. A doutrina da Trindade, na visão de Calvino, não é apenas um assentimento teológico, mas o fundamento de toda a sua concepção da obra divina no mundo. Diferente de uma estrutura de controle, essa unidade trinitária resiste a qualquer tentativa de divisão funcionalista das hipóstases. Em sua análise, Calvino explica que o Pai, sendo o “princípio” e “origem” da divindade, em nada compromete a igualdade ontológica entre as pessoas, pois o Filho é eternamente gerado pelo Pai, e o Espírito Santo procede tanto do Pai quanto do Filho. Cada pessoa da Trindade possui uma propriedade que a caracteriza distintamente: o Pai é o princípio, o Filho é consubstancial ao Pai como o gerado, e o Espírito Santo é aquele que procede de ambos. Essa distinção, contudo, não implica qualquer desigualdade na substância divina, mas revela uma comunhão essencial e indivisível (Institutas, I.13.2; I.13.17).

Na economia trinitária, Calvino trata a relação entre Pai e Filho com atenção cuidadosa, especialmente à subordinação hipostática. Esta é compreendida como uma relação estritamente relacional e ontológica, sem que o Filho seja inferior ao Pai em divindade. Assim, embora o Filho seja gerado pelo Pai, Ele compartilha da mesma substância e eternidade do Pai, sendo “Deus de Deus verdadeiro”, e não uma criação subordinada. Calvino insiste que essa ordem relacional não reflete desigualdade, mas uma relação eterna que marca a procedência de uma pessoa em relação à outra. Essa abordagem reflete uma crítica implícita ao arianismo, que consideraria o Filho uma criação divina, mas, ao mesmo tempo, evita uma concepção hierárquica da Trindade, já que todas as pessoas divinas coexistem em plena comunhão (Institutas, I.13.7-9).

Para Calvino, o papel do Espírito Santo dentro dessa estrutura trinitária é essencial, pois Ele é visto como o vínculo de união entre o crente e Cristo e como o aplicador da graça nos corações eleitos. O Espírito Santo, consubstancial ao Pai e ao Filho, desempenha uma função única na regeneração e na vida de fé dos cristãos, sendo Ele quem torna a obra de Cristo real e eficaz no coração dos crentes. Assim, o Espírito sela a união com Cristo, aplicando a obra redentora de forma pessoal e vivificante (Institutas, I.13.14-15; III.1.1-3).

Imagem: DALL-E

Agamben, por outro lado, ao retomar o conceito de hipóstase, busca revelar como as articulações ontológicas foram historicamente instrumentalizadas em estruturas de controle e subordinação. Ele revisita a ontologia neoplatônica de Plotino, onde as hipóstases emanam de uma unidade transcendente, mas foram capturadas, ao longo da tradição cristã, por uma lógica funcionalista que subordina o ser à realização de funções específicas, uma “economia trinitária” que se insere em uma estrutura de poder. Ao contrário da visão de Calvino, que preserva a comunhão plena e indivisível da Trindade, Agamben observa que a tradição ocidental transformou as hipóstases em realizações operativas, que reduzem o ser a uma função a serviço de uma hierarquia. Para Agamben, a multiplicidade ontológica assim estruturada reflete uma lógica de poder que organiza o ser em instâncias controladas e instrumentalizáveis, capturando a existência dentro de um regime de funcionalidade que serve a uma finalidade superior.

Essa divergência torna-se evidente quando consideramos o modelo de controle que Agamben vê na “economia trinitária” e a sua crítica a uma ontologia essencialista que subordina o ser a um regime de normatização. Calvino, em contraste, vê a Trindade como uma unidade de comunhão que resiste a qualquer divisão subordinada em funções utilitárias. As três pessoas divinas participam da divindade sem serem capturadas por uma lógica de finalidade. Em oposição, Agamben critica essa estrutura ontológica como uma ferramenta de controle e captura da vida, onde a existência é transformada em uma ferramenta de uma ordem superior e dominada por uma lógica de produtividade (Institutas, I.13.16-18; IV.1.2).

Além disso, Agamben sugere uma alternativa: uma ontologia modal onde o ser se caracteriza por potencialidade e não por uma função concreta. Seu conceito de chresis ou “uso” desprovido de finalidade introduz uma maneira de ser que evita a captura pela funcionalidade. Nessa perspectiva, o uso ético rompe com a instrumentalização da vida e propõe uma existência autônoma. Chresis como uma prática ontológica resgata a vida da dominação, promovendo uma relação com o ser que é vivida sem subordinação a uma estrutura de controle. Curiosamente, essa noção de chresis encontra uma ressonância dialética na estrutura trinitária calvinista, que sugere uma comunhão relacional sem dominação. Assim, Calvino e Agamben, embora por vias distintas, acabam por convergir em uma visão de existência que resiste à funcionalização do ser.

Por fim, essa convergência dialética entre Calvino e Agamben quanto à liberdade ontológica do ser e à resistência contra a funcionalização abre uma nova interpretação da existência como prática. A ontologia trinitária de Calvino, que mantém a unidade essencial sem dominação, e o conceito de chresis de Agamben, com seu uso inoperante, estabelecem modelos de resistência contra estruturas de controle que instrumentalizam a vida. Ambos, em suas distinções, acabam por propor visões que permitem um ser vivido em liberdade e autenticidade, longe de uma lógica de posse e utilidade, promovendo uma ontologia que valoriza a vida em sua plenitude e potencialidade, fora de um regime de controle e submissão.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O uso dos Corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.
CAL​VINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 1: Livros I e II. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 2: Livros III e IV. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

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