O artigo “O espectro da ideologia” de Slavoj Žižek, presente na obra “Um mapa da Ideologia”, configura-se como uma crítica sofisticada à concepção marxista clássica de ideologia, abordando-a de maneira a desmantelar (e reformular) a noção que a vê como uma “falsa consciência”. Para Žižek, a ideologia não se limita a distorcer a percepção da realidade; ela é constitutiva da própria realidade social, inseparável dela. No artigo, o autor explora as complexidades desse conceito, articulando-o com a psicanálise lacaniana e com uma perspectiva dialética que desvela suas nuances e paradoxos. O texto de Žižek, portanto, desafia as formulações marxistas e oferece uma nova leitura que ultrapassa a compreensão tradicional e abrange a ideologia como parte integrante e estruturante da realidade.
Žižek inicia sua análise ao propor uma reconsideração da ideologia, que deixa de ser compreendida como uma “máscara” que encobre o real e passa a ser uma condição estrutural da experiência e percepção da realidade. Diferentemente de Marx, que via a ideologia como uma “falsa consciência” alienadora, Žižek argumenta que a ideologia permeia a própria estrutura social, funcionando como uma matriz simbólica que sustenta a vivência cotidiana dos sujeitos. Em outras palavras, a ideologia não é apenas uma ilusão que encobre o que é verdadeiro; ela é a estrutura fantasmática que organiza a experiência do sujeito dentro de um determinado sistema, como o capitalismo. Žižek utiliza a noção de “fantasia” lacaniana para ilustrar como a ideologia opera. Assim como no conceito lacaniano de que “não existe relação sexual”, onde o ato sexual é sempre permeado por fantasias, a ideologia também configura uma relação fantasmática com o real que oculta sua complexidade e media a experiência humana.
Esse entendimento permite que Žižek vá além das concepções clássicas e revele como a ideologia atua não apenas no nível da consciência, mas também da realidade material. A ideologia, nesse contexto, não necessita que as pessoas creiam nela em um sentido estrito; basta que elas sigam suas práticas para que seu funcionamento continue inabalável. Dessa maneira, Žižek elabora o conceito de “ideologia cínica”, onde os sujeitos sabem que o sistema é injusto, mas agem como se não soubessem, perpetuando a estrutura ideológica através de suas ações cotidianas. Essa perspectiva aprofunda o alcance da ideologia no capitalismo contemporâneo, onde os sujeitos participam do sistema sem precisar acreditar nele. Para Žižek, a ideologia persiste exatamente porque ela já está materializada na realidade, e os sujeitos operam conforme suas regras, mesmo que não compartilhem mais de sua “verdade” subjetiva.
Ao examinar a ideologia, Žižek utiliza a “leitura sintomal” como ferramenta crítica para explorar o que os discursos tentam ocultar de maneira estruturante. Inspirado pela psicanálise lacaniana e pela crítica literária, o autor defende que, ao invés de tomar as ideias ou valores ideológicos em sua literalidade, é preciso identificar as falhas, lacunas e rupturas no discurso oficial — aquilo que ele chama de “sintomas”. Esses sintomas, muitas vezes expressos em contradições ou omissões sutis, são manifestações de um desejo reprimido ou de uma tensão não resolvida que sustenta a ideologia. A leitura sintomal, portanto, permite que o crítico identifique aquilo que não é dito diretamente, mas que é central para a estrutura ideológica em questão. Nesse sentido, a crítica da ideologia não busca apenas “desmascarar” uma distorção consciente, mas desvendar os elementos inarticulados que revelam a função de controle e manipulação do discurso ideológico.
Žižek ilustra o uso da leitura sintomal em suas análises de fenômenos concretos, revelando como a ideologia permeia o cotidiano. Ele examina, por exemplo, a forma como o Ocidente abordou o conflito da Bósnia e a dissolução da Iugoslávia, onde a mídia e intelectuais liberais ocidentais descrevem o conflito como uma explosão de rivalidades étnicas primordiais, assumindo uma posição de “observador antropológico”. Tal leitura apresentava o conflito como um “espetáculo étnico”, alheio à modernidade racional ocidental, e exime o Ocidente de sua responsabilidade no processo. Para Žižek, essa explicação ideológica transformava a guerra em um fenômeno naturalizado, mascarando as dinâmicas políticas e econômicas globais que contribuíram para a desintegração da região. A leitura sintomal permite revelar que o que está sendo ocultado não é apenas o papel ativo do Ocidente, mas o próprio funcionamento do discurso de civilidade ocidental, que se estrutura na contradição de um “outro bárbaro”.
Outro exemplo significativo é a análise de Žižek sobre o que ele chama de “cinismo ideológico” no capitalismo contemporâneo, onde as pessoas reconhecem a injustiça e a exploração do sistema, mas continuam a operar dentro dele como se não soubessem. Esse cinismo se manifesta, por exemplo, na cultura consumista, onde os consumidores se sentem atraídos por propagandas que sabem ser enganosas, mas que ainda assim impactam suas escolhas. Essa participação cínica, segundo Žižek, revela um dos aspectos mais sutis da ideologia atual, que não mais demanda uma crença genuína, mas uma adesão automática às práticas do sistema. A leitura sintomal aqui permite que se observe como o discurso da “consciência crítica” dos consumidores mascara a reprodução do próprio sistema que se critica.
Essa reflexão leva Žižek a revisitar o conceito de fetichismo da mercadoria, oferecendo uma nova leitura. Para Marx, o fetichismo da mercadoria era a atribuição de qualidades humanas a objetos, obscurecendo a relação entre trabalhadores e meios de produção. Žižek, no entanto, vê o fetichismo como uma característica constitutiva do sistema capitalista, um processo que não se limita à “distorção”, mas que constitui o próprio modo de operação do capitalismo. Esse fetichismo não é uma “ilusão” que pode ser desfeita, mas um processo material e simbólico que emerge espontaneamente. Ao ver os produtos como portadores de valor intrínseco, estamos perpetuando a estrutura do capitalismo. Para Žižek, a crítica marxista que vê o fetichismo como um erro de percepção perde de vista o caráter inevitável e estrutural desse processo. O fetichismo é, portanto, o modo como o capitalismo estrutura as relações econômicas, e não algo que possa ser desmontado com a revelação de sua falsidade.
A análise de Žižek sobre a ideologia segue uma lógica dialética, onde ele articula os conceitos de ideologia “em si” e “para si”. A ideologia “em si” refere-se à doutrina, às crenças e valores coletivos que aparentam um sentido compartilhado e que operam como uma “verdade” social. Nesse nível, a ideologia fornece coesão ao sustentar os discursos e valores que aparentam uma neutralidade. No entanto, Žižek propõe que a ideologia “para si” revela sua dimensão material e externa, onde doutrinas e crenças se convertem em práticas, rituais e instituições. Ao tornar-se “para si”, a ideologia se transforma em um mecanismo visível e operacional na vida social, constituindo-se nos “Aparelhos Ideológicos de Estado” descritos por Althusser. Žižek identifica nesse movimento dialético uma transformação interna, onde a ideologia desintegra-se em fenômenos aparentemente distintos, que se articulam de maneira dispersa no corpo social. Ao se manifestar de maneira fragmentada, a ideologia não mais se apresenta como uma “falsa consciência” centralizada, mas como uma “família” de elementos interconectados que persistem de maneira invisível e dispersa.
Por meio dessa articulação dialética, Žižek demonstra que a tentativa de escapar da ideologia é, frequentemente, uma das formas mais puras de subordinação a ela. Essa estrutura cínica da ideologia revela que a crítica tradicional que vê a ideologia como algo externo à realidade é, ela mesma, uma ilusão ideológica. Para Žižek, a ideologia não é um elemento a ser superado, pois sua própria lógica está presente nas formas de vida e de pensamento que aparentam romper com ela. A ideologia não é um erro a ser corrigido; é um fundamento estrutural do modo como a realidade é experimentada. Dessa forma, Žižek rejeita a ideia de que a ideologia possa ser simplesmente desmascarada e sugere que toda tentativa de escapar dela a reafirma, colocando os sujeitos ainda mais profundamente sob seu domínio.
Essa abordagem culmina em uma crítica à ideia marxista de representação ideológica. Para Žižek, a ideologia não é meramente uma distorção na representação da realidade, mas uma prática materializada que se realiza nas ações cotidianas. Inspirado em Althusser, Žižek propõe que a ideologia não é somente interna ao sujeito; é performada em ações e sustentada por instituições. Esse “materialismo da ideologia” implica que, em vez de ser uma crença íntima, a ideologia molda as ações dos sujeitos independentemente de suas crenças conscientes. O autor, então, refuta a noção de que a ideologia seja uma distorção que pode ser corrigida ou superada. Para ele, a ideologia opera como uma base real da estrutura social, estabelecendo um quadro que não se desintegra simplesmente ao se tomar consciência dele.
Ao propor que a ideologia é algo inescapável e intrínseco à realidade, Žižek eleva a crítica da ideologia a um novo patamar. Em vez de buscar uma “consciência verdadeira” livre de ideologia, ele sustenta que nossa compreensão da realidade está inextricavelmente moldada por ela. O caráter inescapável da ideologia torna o conceito de “falsa consciência” inadequado, pois assume que é possível uma consciência sem distorções. No entanto, é importante destacar que, para Žižek, o “Real” lacaniano permanece um vazio estrutural, uma dimensão inatingível e essencialmente fora do alcance da simbolização completa. A ideologia, então, atua como uma estrutura que mascara essa ausência central e oferece uma versão de realidade que parece coesa, ainda que construída em torno desse vazio intransponível. Dessa forma, a própria tentativa de alcançar essa consciência pura já é uma ilusão ideológica, pois se ancora na ideia de que há uma “realidade verdadeira” além das estruturas simbólicas que nos condicionam.
Em “O espectro da ideologia”, Slavoj Žižek, portanto, nos oferece uma crítica abrangente e original da concepção marxista de ideologia. Ao reformular o conceito para além da ideia de “falsa consciência”, ele introduz a noção de ideologia como estrutura constitutiva da realidade social, um campo de práticas e significados que condiciona a experiência humana. A ideologia, para ele, é o próprio horizonte da realidade que habitamos, não sendo algo a ser superado, mas constantemente analisado em sua capacidade de nos capturar mesmo quando pensamos escapar dela. Em última instância, Žižek nos convoca a desconfiar de todas as tentativas de romper com a ideologia, pois elas podem, paradoxalmente, ser o gesto mais profundo de sujeição a seu poder estrutural.
Para estabelecer uma ponte entre a crítica à ideologia em Žižek e a teologia calvinista, é fundamental reconhecer que ambos os autores veem na mente humana uma predisposição estrutural a construir representações incompletas e ilusórias da realidade. Se para Žižek a ideologia atua como uma “lente invisível” que estrutura a percepção e normaliza sistemas de crença, para Calvino essa estrutura assume a forma de uma inclinação natural da mente para criar ídolos, afastando-se do verdadeiro conhecimento. Em ambos os casos, o ser humano se submete a uma realidade fragmentada e limitada, seja por meio de ideologias que distorcem a realidade social ou de ídolos que obscurecem a essência divina. Essa convergência entre os autores revela o quanto essas “fábricas de crenças” operam dentro do sujeito, impondo barreiras que o afastam de uma experiência genuína e desvelando, em última instância, a profundidade do vazio estrutural que ambos, cada um à sua maneira, buscam expor.
Em “As Institutas da Religião Cristã,” João Calvino desenvolve uma compreensão aguda da natureza humana ao descrever a mente como uma “fábrica perpétua de ídolos”. Essa expressão sintetiza o entendimento calvinista da inclinação humana à idolatria, não como um desvio esporádico, mas como um traço estrutural do ser humano após a queda. Em sua análise, Calvino não vê a criação de ídolos apenas como uma falha moral ou intelectual, mas como uma compulsão que emerge da incapacidade do homem de compreender plenamente o divino. A mente humana, ao se deparar com a Transcendência, tende a criar representações que satisfaçam a necessidade de tangibilizar e controlar o incompreensível, levando à fabricação de “falsos deuses” que, ao invés de revelarem Deus, refletem as limitações e desejos humanos.
Para Calvino, essa inclinação idólatra é tão pervasiva que se manifesta não só em crenças religiosas, mas também em práticas cotidianas e na maneira como o ser humano interpreta a realidade ao seu redor. Ele argumenta que o impulso de criar ídolos responde à necessidade humana de preencher o vazio deixado pela própria finitude e pelo afastamento de Deus. Nesse sentido, a idolatria não é um erro superficial, mas uma busca inerente do coração humano por estabilidade e sentido em uma existência marcada pela impermanência. O ídolo, para Calvino, surge como uma projeção dos próprios limites e fraquezas humanas e molda a forma como o indivíduo se relaciona com o sagrado. Essa “idolatria estrutural” expõe uma verdade sobre o ser humano: a tendência de construir “verdades” e representações que, ao invés de captarem o absoluto, refletem a própria subjetividade finita.
Esse conceito calvinista de idolatria dialoga profundamente com a análise de ideologia proposta por Slavoj Žižek, que a concebe como uma estrutura que organiza a percepção humana, funcionando como uma “lente” que define o que é visível, compreensível e aceitável para o sujeito. Žižek propõe que a ideologia não é apenas uma falsa representação, mas uma camada estruturante que molda a própria experiência da realidade. A ideologia, assim como a idolatria em Calvino, configura-se como uma disposição intrínseca da mente humana que não é facilmente superável. Para Žižek, ela não é um “erro” de entendimento, mas uma dimensão constitutiva da subjetividade, que leva o indivíduo a interpretar a realidade de maneira limitada e condicionada, sustentando crenças e práticas que refletem e reforçam o sistema dominante. Ademais, ao considerar o “Real” lacaniano como um vazio estrutural, percebemos que a idolatria calvinista e a ideologia zizekiana operam ambas como estruturas simbólicas que buscam preencher uma ausência fundamental: a primeira, no plano da experiência religiosa e do sagrado; a segunda, no contexto social e político. Esse vazio do “Real” se assemelha, na perspectiva de Calvino, à incompreensibilidade de Deus, o que leva a mente a construir ídolos para “preencher” essa lacuna.
Uma afinidade clara entre Calvino e Žižek é a ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia funcionam como substitutos imperfeitos para uma realidade mais profunda e autêntica. Na teologia calvinista, o ídolo oferece ao crente uma versão distorcida do divino, que obscurece a verdadeira natureza de Deus e afasta o fiel da genuína experiência do sagrado. Na perspectiva de Žižek, a ideologia opera de modo similar ao criar uma “fantasia estruturante” que define a experiência do mundo de acordo com as exigências e limitações de um sistema específico de crenças e valores. Ambos os conceitos apontam para a necessidade de mediação: tanto a idolatria quanto a ideologia revelam que o ser humano parece incapaz de encarar o “real” em sua essência sem projetar sobre ele camadas de significados que acabam por obscurecer sua verdadeira natureza. Para Žižek, esse “Real” permanece um vazio inalcançável, e a ideologia atua como um dispositivo de cobertura, oferecendo uma ilusão de completude. A idolatria, segundo Calvino, realiza função análoga ao transformar a infinidade incompreensível de Deus em figuras manejáveis e limitadas.
No entanto, uma distinção sutil emerge entre Calvino e Žižek. Calvino enxerga a idolatria como uma expressão da depravação humana e da necessidade de aproximação de um Deus inacessível pela própria razão. Para ele, o ídolo é um reflexo da fraqueza e da corrupção da mente humana, que busca conforto em representações tangíveis que atendem a seus desejos e limitações. Žižek, por outro lado, vê a ideologia como um mecanismo interno ao próprio funcionamento da sociedade, que não surge como uma manifestação isolada da “fraqueza” do sujeito, mas como uma estrutura compartilhada que sustenta e organiza o sistema social. Para Žižek, o indivíduo contribui para a perpetuação da ideologia não apenas por sua fraqueza, mas porque a ideologia opera como uma estrutura que molda a própria subjetividade do sujeito, fazendo-o agir como agente de valores e práticas que ele, em certa medida, aceita e perpetua inconscientemente.
Calvino ainda sugere que o homem projeta nos ídolos algo que é produto de suas próprias limitações e fraquezas, construindo neles uma falsa segurança. Žižek compartilha dessa visão ao entender que a ideologia, embora envolva certa dose de engano, não é imposta ao sujeito de maneira arbitrária; ao contrário, emerge do próprio sujeito, que a perpetua por meio de práticas e atitudes cotidianas. Dessa forma, tanto a idolatria quanto a ideologia são sustentadas internamente, por uma disposição inerente à própria mente humana de buscar sentido e ordem, mesmo que esses sentidos e ordens sejam limitados e distorcidos. Para Calvino, essa disposição representa um afastamento da verdade divina; para Žižek, ela configura o afastamento do sujeito de uma percepção crítica da própria realidade social, enquanto o vazio do “Real” permanece oculto sob a coesão ilusória que a ideologia busca criar.
Por fim, a crítica de Calvino aos ídolos e a análise de Žižek sobre a ideologia permitem uma articulação interessante em torno da ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia refletem construções da subjetividade que, ao invés de libertarem o sujeito, o confinam em uma realidade artificial e limitada. Calvino vê na idolatria um mecanismo pelo qual o ser humano, ao tentar suprir a ausência de Deus, se distancia ainda mais da verdade divina. Žižek, por sua vez, observa que a ideologia se perpetua porque oferece ao sujeito uma estrutura de sentido, ainda que distorcido, sustentada pela necessidade de encobrir o vazio do “Real”. Ambos apontam que, ao tentar preencher suas vidas com “deuses” ou “ideias” que estruturam o mundo, os seres humanos acabam aprisionados em uma realidade fragmentada que não é reflexo do real, mas da limitação e fragmentação de sua própria subjetividade.
Referências
ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 7-46.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009. 4 v.