sexta-feira, 28 de março de 2025

Nem igualitarismo, nem complementarismo: por uma ruptura epistemológica no campo teológico

O debate contemporâneo acerca das relações de gênero no campo teológico deve ser compreendido não como fenômeno emergente ou extemporâneo, mas como parte de um longo processo de confrontação às estruturas simbólicas e institucionais que historicamente normatizaram a experiência religiosa a partir de um paradigma masculino, eurocêntrico e cisheteronormativo. Conforme delineado por Furlin (2011), em sua análise sobre a teologia feminista latino-americana, esse campo teórico-prático desenvolveu-se em três fases distintas, cada qual marcada por reconfigurações metodológicas e rupturas epistemológicas progressivas com o discurso teológico hegemônico. Trata-se, portanto, de uma genealogia crítica que reivindica não apenas a inclusão de novos sujeitos no interior da tradição cristã, mas a reestruturação das próprias condições de produção do saber teológico.

Na primeira fase, situada na segunda metade da década de 1970, observa-se o esforço inaugural de visibilização da mulher como sujeito teológico legítimo. A partir de uma reinterpretação crítica das Escrituras, mulheres teólogas passaram a destacar personagens femininas historicamente silenciadas ou subordinadas nas leituras tradicionais. Tal empreitada, ainda que marcada por uma concepção unitária do sujeito mulher, operou uma inflexão significativa ao deslocar a teologia de um locus exclusivamente masculino para um espaço tensionado pela experiência concreta da exclusão e da resistência. O reconhecimento da opressão vivida por mulheres no interior das estruturas religiosas funcionou, nesse momento, como ponto de partida para a construção de uma hermenêutica contra-hegemônica.

A segunda fase, consolidada ao longo da década de 1980, ampliou as bases críticas do movimento ao incorporar a categoria de gênero como instrumento epistemológico e analítico. Nesse estágio, a crítica teológica passou a problematizar não apenas a ausência das mulheres no discurso teológico, mas a própria constituição androcêntrica das categorias fundantes da tradição cristã. A interlocução com os estudos feministas, em especial com as formulações de Joan Scott, possibilitou compreender o gênero como construção social e relacional, atravessada por múltiplos eixos de poder. Com isso, a teologia feminista deixou de reivindicar exclusivamente o reconhecimento das mulheres e passou a questionar os dispositivos normativos que estruturam o saber teológico e organizam a produção da verdade no interior das instituições religiosas.

A terceira fase, articulada nos anos 1990 e início dos anos 2000, marca a entrada decisiva da teologia feminista no campo das teorias pós-estruturalistas. Influenciada por autoras como Teresa de Lauretis, essa fase passa a operar com categorias como “tecnologias de gênero” e “space off”, deslocando o foco da crítica para a análise dos regimes discursivos que instituem e regulam as subjetividades. A teologia é, então, concebida como um campo de produção simbólica dotado de capacidade normativa, em que a configuração dos sujeitos e das posições de enunciação está condicionada por estruturas históricas de poder e exclusão. Nesse contexto, o sujeito mulher é compreendido não como uma identidade fixa, mas como uma posição discursiva historicamente situada, cuja emergência desafia as fronteiras do sistema teológico tradicional.

Apesar das contribuições teóricas acumuladas por essas três fases, observa-se, no cenário evangélico contemporâneo, o ressurgimento e a consolidação de categorias como “complementarismo” e “igualitarismo”, as quais, embora revestidas de verniz moderno, operam com fundamentos teológicos marcadamente conservadores. O complementarismo, ao propor uma igualdade ontológica entre homens e mulheres acompanhada de funções distintivas e hierarquicamente organizadas, retoma uma antropologia teológica essencialista e excludente. O igualitarismo, ainda que advogue pela equiparação de funções eclesiásticas, frequentemente se abstém de questionar os fundamentos simbólicos que sustentam a masculinização do sagrado. Em ambos os casos, verifica-se uma adesão acrítica a modelos normativos pré-críticos, incompatíveis com os avanços promovidos pelas teorias contemporâneas do discurso, da corporeidade e das dissidências sexuais.

Tais abordagens, ao recusarem o enfrentamento das contradições inerentes às estruturas teológicas herdadas, evidenciam não apenas uma limitação hermenêutica, mas uma recusa sistemática à ruptura epistemológica. O esforço de preservação de categorias tradicionais, mesmo quando permeado por discursos conciliatórios, configura uma forma de capitulação diante das pressões institucionais que moldam o campo religioso. Em muitos casos, observa-se uma tentativa de acomodação estratégica aos dispositivos de validação eclesiástica, ainda que isso implique o silenciamento de sujeitos cujas existências tensionam as fronteiras da ortodoxia. A resistência à desestabilização das normatividades teológicas é, assim, menos uma defesa da tradição do que uma adesão tácita aos regimes de poder que governam a inteligibilidade da fé no espaço público religioso.

É nesse contexto que o deslocamento da análise das estruturas de memória para o campo do discurso adquire centralidade. A memória, frequentemente mobilizada como instrumento de reconhecimento histórico, não é suficiente para elucidar os mecanismos pelos quais se operam a exclusão, a marginalização e o apagamento de corpos dissidentes. O discurso, conforme delineado pelas teorias de M. Foucault, deve ser compreendido como uma tecnologia de poder que institui “regimes de verdade”, autoriza formas de subjetivação e regula as condições de enunciação. Nesse sentido, quando a teologia reafirma categorias como “papéis naturais” ou “ordens divinas de gênero”, ela não apenas reproduz conteúdos doutrinários, mas reinscreve dispositivos normativos que interditam determinadas formas de existência e agência, em especial aquelas associadas às dissidências sexuais e de gênero.

Imagem gerada por IA

A teologia feminista, ao incorporar essa crítica discursiva, não se limita à revisão das doutrinas ou à inclusão de novos sujeitos na narrativa teológica. Sua proposta é mais radical: trata-se de instaurar novos regimes de sentido e novas condições de possibilidade para o pensamento teológico. Isso implica, necessariamente, a reconfiguração do campo do dizível religioso, de modo que as subjetividades historicamente silenciadas — mulheres, pessoas LGBTQIA+, corpos racializados, dissidentes de gênero e sexualidade — possam emergir como agentes legítimos de interpretação, criação simbólica e autoridade espiritual. Essa tarefa não se realiza mediante concessões tímidas à inclusão, mas por meio de uma reestruturação epistemológica do próprio edifício teológico.

A crítica à antropologia teológica de corte conservador, portanto, não deve ser reduzida a uma divergência ideológica pontual. Ela constitui uma exigência teórica rigorosa de superação dos dispositivos simbólicos que sustentam a normatividade cisheteropatriarcal no interior das tradições religiosas. A persistência dessas normatividades não apenas compromete a integridade do discurso teológico, como inviabiliza a construção de um horizonte plural, equitativo e ético para a reelaboração contemporânea da fé cristã. Somente por meio da desnaturalização das categorias tradicionais e da abertura ao múltiplo será possível conceber uma teologia verdadeiramente comprometida com a justiça simbólica e com a dignidade incondicional de todas as existências.

Referências 

FURLIN, Neiva. Teologia feminista: uma voz que emerge nas margens do discurso teológico hegemônico. Rever: Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 139–160, jan./jun. 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/6034. Acesso em: 28 mar. 2025


quinta-feira, 27 de março de 2025

A quem pertence a memória? Gênero, teologia e a produção do esquecimento

O debate sobre gênero e cristianismo nas origens, embora já consolidado como campo de pesquisa, permanece em disputa. A historiografia tradicional e a teologia dominante seguem operando, com frequência, sob pressupostos patriarcais e epistemologias que naturalizam a ausência das mulheres como dado histórico ou doutrinário. A simples constatação de que mulheres atuaram nas primeiras comunidades cristãs não responde mais aos desafios colocados pela crítica contemporânea. O que está em jogo, em última instância, é a própria produção da memória e a estrutura das narrativas que legitimam exclusões ao longo da história e da teologia cristã.

Três abordagens, com diferentes níveis de complexidade teórica e alcance institucional, podem ser identificadas no atual cenário de produção do saber nesse campo. A primeira opera com uma perspectiva histórico-antropológica aplicada, centrada na reconstituição do contexto sociocultural do mundo bíblico, buscando iluminar o protagonismo feminino no cristianismo primitivo por meio de evidências arqueológicas, registros literários e práticas doméstico-comunitárias. Essa abordagem, com forte vocação pedagógica, visa sobretudo tornar acessível a públicos eclesiais e não especializados uma leitura ampliada da Bíblia, destacando figuras femininas como agentes históricos reais. Sua força reside na capacidade de tradução cultural e na penetração pastoral em contextos religiosos avessos à crítica teórica. No entanto, sua limitação manifesta-se na dificuldade de confrontar abertamente os sistemas de poder teológico que sustentam o apagamento das mulheres, permanecendo, em geral, dentro dos marcos canônicos tradicionais.

Uma segunda abordagem — mais antiga, diga-se de passagem, em termos cronológicos e de consolidação acadêmica — propõe uma reconfiguração radical da hermenêutica bíblica a partir de uma epistemologia crítica feminista, que recusa a neutralidade do método histórico-crítico e afirma o caráter político da interpretação teológica. Aqui, o interesse não está apenas em recuperar mulheres esquecidas, mas em desconstruir os regimes de verdade que permitiram seu esquecimento. Essa proposta exige uma inversão do ponto de partida: a leitura não deve ser feita “do centro para as margens”, mas desde as margens, como lugar de reinterpretação da totalidade. Isso implica não só tensionar os textos, mas também a própria estrutura do cânone, as categorias teológicas dominantes (como igreja, autoridade e discipulado), e os processos históricos de institucionalização da fé cristã. Trata-se de uma abordagem que opera com categorias analíticas originais e complexas — como sistemas de dominação interseccional, críticas à patriarcalização da linguagem teológica e modelos alternativos de eclesiologia — e que se inscreve explicitamente em projetos de libertação.

Por fim, uma terceira abordagem atua no campo da exegese neotestamentária com rigor técnico, aplicando métodos oriundos da linguística, da retórica antiga, da pragmática textual e da análise de discurso, voltados à reinterpretação dos textos do corpus paulino. Aqui, a crítica se desloca das grandes estruturas epistemológicas para o nível microanalítico da linguagem e do contexto comunicativo, mostrando como leituras tradicionais foram marcadas por inferências anacrônicas, erros de tradução e falhas metodológicas. O foco está em demonstrar que a teologia paulina, quando lida em sua complexidade interna e em sua coerência com o conjunto da tradição apostólica, não justifica a exclusão feminina, mas propõe modelos relacionais de autoridade, mutualidade no corpo e superação das hierarquias greco-romanas. Essa abordagem é especialmente potente porque desafia as leituras conservadoras em seu próprio campo argumentativo, revelando que o problema não está apenas na hermenêutica, mas na fragilidade interpretativa dos próprios exegetas que sustentaram tais posições.

O confronto entre essas três vias é inevitável — e necessário. A abordagem pastoral-histórica cumpre importante função formativa, sobretudo em comunidades religiosas refratárias ao vocabulário feminista. No entanto, ao permanecer dentro dos limites interpretativos impostos por uma tradição exegética pouco autocrítica, corre o risco de reforçar, ainda que involuntariamente, os marcos simbólicos que sustentam a desigualdade. Já a abordagem epistêmica crítica desloca o debate para o nível das estruturas de saber e poder, mas enfrenta resistência por parte das instituições eclesiais e do próprio campo teológico, que frequentemente a classifica como ideológica ou militante. A via exegética técnico-científica, por sua vez, alcança interlocução com setores evangélicos e confessionais conservadores, mas ainda luta para ser reconhecida como proposta teológica transformadora — e não apenas como alternativa interpretativa.

É nesse entrechoque que se joga o futuro dos estudos sobre gênero e cristianismo. A memória das mulheres precisa ser mais do que restaurada: ela deve ser reivindicada como lugar epistemológico e teológico. A questão não é apenas quem foi lembrado, mas quem teve o poder de lembrar — e sob quais critérios. A tarefa, portanto, não é repetir nomes ou retomar vozes, mas disputar a gramática da tradição.

Imagem: DALL-E

A teologia que se quer crítica e comprometida com a justiça de gênero não pode se dar por satisfeita com pedagogias adaptativas. É preciso tensionar os fundamentos do campo: os cânones, os métodos, as categorias, as premissas etc. Os estudos bíblicos e teológicos contemporâneos que desejam ser relevantes devem ir além da mediação pastoral e assumir o risco da ruptura conceitual, ainda que isso implique perdas institucionais, desconfortos devocionais ou o isolamento acadêmico. O tempo das sínteses fáceis parece ter passado. O que se impõe é reabrir os conflitos — entre memória e exclusão, entre tradição e transgressão, entre o que se disse e o que ainda precisa ser dito.

Concluindo, é possível — e, mais do que isso, necessário — tomar partido teórico diante das abordagens em questão. Entre elas, aquela que mais radicalmente tensiona os fundamentos epistemológicos da tradição cristã e dos estudos bíblicos é, sem dúvida, a que se inscreve explicitamente no horizonte do pós-estruturalismo. Trata-se de uma perspectiva que desconstrói as pretensões de neutralidade da exegese histórico-crítica, deslegitima a lógica binária dos sistemas de dominação e desestabiliza o próprio cânone como artefato de poder. Elisabeth Schüssler Fiorenza, por exemplo, não apenas denuncia a exclusão das mulheres da narrativa cristã; ela interroga os próprios regimes de verdade que sustentam essa exclusão, desafiando os dispositivos simbólicos que produzem e naturalizam a marginalização. Nesse sentido, sua proposta não se limita a uma hermenêutica alternativa: configura-se como uma ruptura teórica deliberada com os alicerces modernos da teologia ocidental. Assumir tal filiação é reconhecer que o debate sobre gênero e cristianismo não deve ser conduzido apenas como demanda por inclusão, mas como intervenção crítica na própria produção do saber teológico — onde a disputa não é apenas pelo lugar das mulheres, mas pela gramática da fé e pelas condições de possibilidade do discurso teológico em si.

Referências
RUETHER, Rosemary Radford. Sexism and God-Talk: Toward a Feminist Theology. Boston: Beacon Press, 1983.
SCHÜSSLER FIORENZA, Elisabeth. In Memory of Her: A Feminist Theological Reconstruction of Christian Origins. New York: PublishDrive, 1994.
TRIBLE, Phyllis. Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives. Philadelphia: Fortress Press, 1984.
WESTFALL, Cynthia Long. Paul and Gender: Reclaiming the Apostle's Vision for Men and Women in Christ. Grand Rapids: Baker Academic, 2016.

quarta-feira, 26 de março de 2025

A Vontade Divina e o Silêncio da Linguagem

A Vontade Divina e o Silêncio da Linguagem

A obra “Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation”, de Richard A. Muller, representa um dos esforços mais significativos da historiografia teológica contemporânea para repensar a tradição reformada a partir de uma análise rigorosa de fontes primárias e das complexas trajetórias do pensamento teológico entre os séculos XVI e XVII. Em oposição às interpretações que veem a teologia reformada como rígida e monolítica, Muller defende a existência de um desenvolvimento plural, polifônico e profundamente contextualizado dessa tradição, recusando tanto o mito de um “Calvino fundador” quanto as caricaturas dicotômicas que opõem “Calvino aos calvinistas”. Sua leitura propõe uma reavaliação da doutrina da vontade divina à luz das tensões que emergem nas discussões sobre expiação, eleição e graça, com especial atenção para as formulações de teólogos como Moïse Amyraut (1596–1664), John Davenant (c. 1572–1641) e Pierre Du Moulin (1568–1658). O debate sobre o chamado “universalismo hipotético”, examinado nos capítulos 4 e 5 da obra, oferece um campo fértil para compreender os limites da unidade volitiva de Deus tal como expressa na tradição reformada.

A tradição reformada clássica sempre se empenhou em preservar a simplicidade de Deus, isto é, a ideia de que em Deus não há partes, contradições ou qualquer tipo de mudança interna. Essa concepção sustenta a unidade absoluta da vontade divina e orienta a forma como os teólogos reformados interpretam os textos bíblicos que parecem sugerir tensões ou ambivalências na ação ou no desejo de Deus. Nesse contexto, tornou-se comum a distinção entre a chamada “voluntas decretiva”, vontade eficaz e secreta de Deus, e a “voluntas preceptiva”, vontade revelada por meio da lei e da pregação. Tal distinção, embora mantenha a ideia de uma única vontade, reconhece expressões distintas dessa vontade no plano da revelação histórica e da experiência humana.

No entanto, durante os debates teológicos dos séculos XVI e XVII, essa distinção foi tensionada de maneira significativa. A figura de Moïse Amyraut destaca-se como representante de uma tentativa de afirmar, com base em textos como Ezequiel 18:23 e 1 Timóteo 2:4, que Deus possui um desejo sincero de salvar a todos, ainda que apenas os eleitos sejam efetivamente salvos. Amyraut propõe que a vontade de Deus deve ser compreendida como dual: uma vontade antecedente, de caráter hipotético e universal, pela qual Deus deseja a salvação de todos os seres humanos, e uma vontade consequente, eficaz e particular, pela qual Ele salva somente os eleitos. Tal formulação insere na teologia reformada uma tensão entre intenção e realização que desafia diretamente o princípio da vontade divina una e simples.

Richard Muller, ao analisar essa proposta, recusa qualquer leitura que atribua duplicidade real à vontade divina, argumentando que Amyraut incorre em um equívoco ao sugerir que Deus deseja salvífica e sinceramente aquilo que, segundo seu próprio decreto, não realizará. Para Muller, João Calvino (1509–1564), embora reconheça a suficiência universal da obra de Cristo e a universalidade da pregação do evangelho, nunca endossou uma estrutura teológica que atribuísse vontades conflitantes ou hierarquizadas a Deus. A exegese de Ezequiel 18:23, por exemplo, é por ele interpretada como expressão do caráter misericordioso de Deus e não como indicativo de um desejo frustrado pela incredulidade humana.

Ainda assim, mesmo dentro do contexto da teologia reformada ortodoxa, a necessidade constante de explicar, distinguir e qualificar os diversos modos de manifestação da vontade divina acaba por indicar, ainda que de forma implícita, a presença de uma fratura conceitual que insiste em se fazer notar. A tentativa de negar qualquer cisão interna na vontade de Deus não elimina, mas frequentemente reforça, por contraste, a percepção de que há na linguagem teológica um jogo irresoluto entre o uno e o múltiplo, o eficaz e o frustrado, o particular e o universal.

Imagem: DALL-E

Sob a ótica de uma leitura pós-estrutural, essa insistência na unidade volitiva pode ser compreendida não como reflexo da ontologia divina, mas como operação discursiva que busca recompor aquilo que a linguagem fragmenta. A teologia, enquanto prática de nomeação e significação do divino, está inevitavelmente submetida aos limites da linguagem e à lógica do significante. O discurso teológico sobre a vontade de Deus não escapa, em termos derridianos, ao movimento de diferenciação e defasagem que caracteriza toda construção discursiva. Assim, a vontade divina, ao ser dita, é desde sempre dividida: marcada por uma tensão entre o que é ordenado e o que é decretado, entre o que é proclamado ao homem e o que é reservado ao conselho divino. A cisão não está apenas no objeto da fala — Deus — mas emerge como efeito da própria estrutura da linguagem religiosa, que opera por duplicações, substituições e silêncios constitutivos.

Nesse sentido, a teologia reformada, ainda que fiel ao seu princípio de simplicidade divina, encontra-se às voltas com uma vontade que, ao ser dita, já se apresenta como partida. Essa fissura na “voluntas Dei”, longe de ser uma heresia a evitar, pode ser pensada como condição discursiva da própria teologia: uma fala sobre o Uno que só pode ocorrer por meio do múltiplo, uma tentativa de afirmar a unidade de Deus que acaba por revelar, de maneira inescapável, os traços de sua ausência. O que se apresenta como vontade cindida não é um defeito da doutrina, mas uma janela para os modos como o desejo divino, uma vez lançado ao campo da linguagem, se torna jogo de forças, campo de disputa, e talvez até, um sujeito escorregadio — que, como nós, fala sempre a partir de sua própria falta.

Convém assinalar que esta reflexão opera sob o marco epistemológico da teoria do discurso, em especial na confluência entre a análise do discurso de orientação pós-estruturalista e os estudos da linguagem aplicados à teologia. Compreende-se, assim, que a doutrina da vontade divina — mais do que uma estrutura metafísica plenamente acessível — constitui-se como um objeto discursivo, isto é, como efeito de linguagem produzido em determinados “regimes de saber”, sujeitos às mediações do tempo, da tradição e da interpretação. Essa perspectiva não visa invalidar os aportes da exegese ou da dogmática histórica, mas deslocar o olhar: da ontologia da vontade para sua inscrição no discurso, dos atributos imutáveis de Deus para os modos pelos quais Deus é dito e pensado ao longo da história. A tensão entre unidade e cisão da vontade divina, tal como explorada nesta breve provocação, emerge, portanto, menos como proposição teológica normativa e mais como um fenômeno de leitura que revela as fraturas do significante teológico no próprio ato de enunciar o divino.

Referências
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Teologia de Mesa de Bar: Cristianismo e Desconstrução

No último dia 20 de novembro, às 20h, ocorreu mais uma edição do Teologia de Mesa de Bar, evento que combina reflexão teológica crítica e diálogo aberto em um ambiente descontraído. Com o tema Cristianismo e Desconstrução, a atividade buscou explorar os desafios e potencialidades de um Cristianismo capaz de dialogar com a pluralidade, a diferença e as tensões do mundo contemporâneo. A conversa, conduzida por Martorelli Dantas, Herlon Bezerra e Robson Souza, foi transmitida ao vivo no YouTube e teve como ponto de partida o texto “Cristianismo e desconstrução: fé, diferença e esfera pública em perspectiva teórica e prática”.

Cristianismo e Desconstrução
A discussão girou em torno da desconstrução como abordagem teórica capaz de desestabilizar e reconfigurar categorias teológicas tradicionais, questionando as bases normativas que sustentam práticas excludentes e hierarquias históricas. Inspirada por autores como J. Derrida, S. Žižek e J. Butler, a desconstrução foi apresentada como uma ferramenta essencial para repensar o Cristianismo enquanto prática discursiva inserida em um mundo plural, contestável e em constante transformação.

Cristianismo como Discurso
Um dos pontos centrais debatidos foi a ideia de que o Cristianismo não deve ser compreendido como uma instância transcendental fixa, mas como uma formação discursiva histórica, sujeita a disputas, rearticulações e ressignificações. A teoria do discurso de E. Laclau e C. Mouffe foi mobilizada para demonstrar como o Cristianismo, ao longo de sua trajetória, estabilizou significados e consolidou hegemonias, mas também permaneceu permeável a tensões e antagonismos que desafiavam essas estabilizações. Nesse contexto, a desconstrução revela que as fronteiras e categorias que delimitam o nós e o outro no Cristianismo são contingentes e historicamente situadas.

Desconstrução, Alteridade e Ética
A desconstrução derridiana foi apresentada como uma abordagem que enfatiza a alteridade e a diferença como constitutivas da ética. Derrida propõe que toda construção discursiva carrega em si tensões internas que minam sua pretensão de totalidade ou universalidade. Ao trazer essa perspectiva para o Cristianismo, o debate destacou como a desconstrução permite reposicionar a tradição cristã em direção a uma prática ética mais inclusiva, que valorize a pluralidade e promova uma hospitalidade incondicional, desafiando normatividades históricas excludentes.


A Negatividade Estrutural e o Pós-teísmo
Partindo das ideias de S. Žižek, discutiu-se a morte do grande Outro e o colapso das garantias transcendentes que, historicamente, sustentaram a teologia cristã. Žižek argumenta que essa ausência não é um vazio a ser preenchido, mas uma oportunidade para o surgimento de novas formas de engajamento ético e político, baseadas na imanência e na relacionalidade. Nesse sentido, o conceito de pós-teísmo surge como uma alternativa teológica que dispensa fundamentos transcendentes, reposicionando o Cristianismo como prática ética e política voltada para a justiça social e o reconhecimento da diferença.

Cristianismo e Esfera Pública
Outro aspecto amplamente debatido foi o papel do Cristianismo na esfera pública contemporânea, marcada pela contestabilidade das crenças e pela coexistência de perspectivas religiosas e seculares. Inspirados pelo conceito de secularidade de C. Taylor e pela ideia de tradução proposta por J. Habermas, os participantes discutiram como o Cristianismo pode atuar como interlocutor ético na esfera pública, sem buscar um monopólio discursivo ou ético, mas promovendo o diálogo e a convivência plural.

Reflexões Finais
O evento demonstrou como o Cristianismo pode ser reconfigurado como uma prática discursiva dinâmica e transformadora, em constante negociação com as demandas éticas e políticas de um mundo plural. Ao adotar ferramentas como a desconstrução e o pós-teísmo, o Cristianismo é chamado a transcender suas limitações institucionais e normativas, reposicionando-se como agente de hospitalidade, justiça e inclusão. A Teologia de Mesa de Bar reafirmou sua relevância como espaço de diálogo crítico e acessível, promovendo reflexões que ultrapassam as barreiras da academia e alcançam a esfera pública. Se você perdeu este debate, não deixe de assistir à gravação no YouTube e conferir como a desconstrução pode abrir novos horizontes para a fé cristã:




domingo, 10 de novembro de 2024

Vulnerabilidade Interdependente: Ética Relacional e Resistência Estrutural

Desde a vitória de Trump, parte da esquerda tornou-se alvo de críticas pela sua aliança com o projeto político do identitarismo. Para alguns críticos, essa aliança enfraquece as lutas progressistas ao permitir que o identitarismo seja rapidamente absorvido pelo liberalismo político, o que limita seu alcance transformador e promove a fragmentação da classe trabalhadora. Contudo, no contexto de uma proposta de democracia radical, emergem alternativas ao universalismo liberal, alternativas que buscam uma compreensão mais inclusiva da solidariedade. Judith Butler, em The Force of Nonviolence, oferece uma dessas abordagens ao reformular o conceito de universalismo com base na noção de precariedade compartilhada, vista como uma condição intrínseca e inescapável da existência humana, capaz de fundamentar um universalismo ético que transcenda divisões identitárias.

Distante do universalismo liberal, que se ancora em uma igualdade formal e na defesa de direitos abstratos, Butler critica a ideia de que todos os indivíduos, como sujeitos autônomos e independentes, são igualmente protegidos e valorizados no sistema liberal. Contrapondo-se a essa concepção, ela argumenta que o verdadeiro ponto de partida para um universalismo ético e político deve ser a precariedade – a vulnerabilidade e interdependência inerentes à experiência humana. Para Butler, reconhecer essa precariedade, com todas as suas implicações éticas e políticas, é essencial para construir uma sociedade em que todas as vidas sejam igualmente valorizadas, protegidas e respeitadas.

Essa obra articula-se diretamente ao projeto teórico-filosófico da autora, especialmente em seu compromisso com a crítica à violência normativa e a defesa de uma ética relacional que atravessa sua produção intelectual. Essa ética relacional e baseada na precariedade ressoa, de forma potente, com uma crítica radical ao liberalismo e suas limitações em entender a vida humana como algo autossuficiente e isolado. Butler desafia o conceito de sujeito liberal autônomo, que constitui a base do universalismo moderno, ao propor que a real universalidade está no reconhecimento de uma interdependência ontológica (e na proteção da vida vulnerável em todas as suas formas).

A crítica de Butler ao individualismo liberal ecoa as noções foucaultianas de biopolítica e poder pastoral, conceitos centrais para a compreensão de como a vida humana é regulada e classificada em termos de quem merece proteção e cuidado. Foucault argumenta que o biopoder moderno impõe uma distinção entre os que devem ser “feitos viver” e os que podem ser “deixados morrer”, configurando assim uma violência estrutural nas instituições contemporâneas. Butler apropria-se dessa leitura para afirmar que o universalismo liberal, com sua pretensão de neutralidade e abstração, falha ao não considerar as diferenças materiais e simbólicas que estruturam a sociedade.

Em vez disso, Butler propõe que o universalismo deve ser construído sobre a noção de “grievability” (lamentabilidade), ou seja, sobre o reconhecimento de que todas as vidas merecem ser vividas e lamentadas igualmente. Butler expande essa crítica, sugerindo que o conceito foucaultiano de biopolítica, ao regular quem pode ser feito viver ou deixado morrer, legitima uma violência normativa que perpassa as instituições e permeia as práticas de exclusão social. Para Butler, o reconhecimento ético de uma vida como digna de lamento se torna central na luta por uma justiça que, além de reivindicar direitos, desafia a lógica de valor desigual das vidas, estabelecendo uma resistência à hierarquia normativa que institui a violência estrutural. Essa leitura foucaultiana fundamenta a crítica de Butler à desigualdade de tratamento e ao valor desigual das vidas, especialmente nas questões raciais e de gênero, que estão no cerne do pensamento biopolítico. Dessa forma, ela mantém sua abordagem crítica das normas que regulam as subjetividades e define o valor das vidas, um traço fundamental de seu projeto teórico, visível desde suas obras anteriores sobre performatividade e poder.

Neste ponto, Judith Butler utiliza as análises de Fanon sobre a violência colonial para construir uma crítica abrangente à violência estrutural que permeia as instituições modernas. Para Fanon, o colonialismo impõe uma violência total, que transcende a esfera física e incorpora formas de violência simbólica e psicológica que remodelam a subjetividade dos colonizados. Butler se apoia nessa perspectiva para afirmar que a violência contra populações marginalizadas, incluindo as racializadas e economicamente desfavorecidas, é sustentada por uma rede de estruturas sociais que justifica e até naturaliza a exclusão desses grupos. Este ponto é crucial para Butler, pois revela como a violência estrutural pode se apresentar como “não-violenta” em sua superfície, mas atua de forma insidiosa no cerne das práticas institucionais.

A partir desse conceito de violência estrutural, Butler aprofunda a ideia de “vidas grieveis” (grievable lives), que constitui um dos alicerces de sua obra. Enquanto Fanon demonstra como o colonialismo desumaniza e “desgrievabiliza” os colonizados, Butler amplia essa lógica para compreender como o Estado moderno se engaja em práticas biopolíticas que definem quais vidas são dignas de proteção e quais são relegadas ao abandono. A exclusão de certas vidas da esfera de proteção estatal reflete, para Butler, uma violência estrutural que vai além da força física, funcionando como uma forma de violência simbólica que legitima e reforça desigualdades. O diálogo com Fanon permite que Butler elabore uma crítica da violência que não apenas reconhece, mas enfatiza as dimensões racializadas e econômicas dessa exclusão institucional. Ao discutir “vidas grieveis”, Butler propõe uma ética da não-violência comprometida com a igualdade radical, onde toda vida é digna de luto e proteção.

Essa visão é enriquecida pela abordagem de Fanon à autodefesa como um ato de sobrevivência frente a uma estrutura violenta e opressiva. Para Fanon, a violência dos colonizados é uma resposta necessária à violência colonial, e, de certa forma, uma tentativa de reconstituir a dignidade humana através do rompimento da opressão. Butler revisita essa concepção, subvertendo a noção de autodefesa como defesa de um “eu” individualista e propondo uma “autodefesa relacional”, onde a proteção da vida do outro se torna essencial para a própria sobrevivência. Ao reinterpretar a autodefesa, Butler sugere que a verdadeira prática da não-violência está na preservação e no fortalecimento das relações interdependentes que formam a base da sociedade. Dessa forma, ela propõe uma “não-violência agressiva” que não foge do conflito, mas o redireciona para resistir à lógica de exclusão e destruição social. Fanon, então, oferece a Butler um ponto de partida para imaginar uma resistência que, embora determinada, evita a perpetuação do ciclo de violência e rejeita o individualismo como estrutura fundamental da política.

Além disso, o conceito de “grievability” de Butler se torna um elemento analítico central na articulação de uma ética de não-violência, inspirada pela crítica fanoniana da desumanização colonial. Em Fanon, a violência desfigura tanto a humanidade do colonizador quanto a do colonizado, reforçando a divisão entre o que é considerado humano e subumano. Butler amplia essa perspectiva para discutir como a violência estrutural do Estado não apenas exclui fisicamente os marginalizados, mas os torna invisíveis e “não-grieveis” aos olhos da sociedade. Ao defender que toda vida merece ser lamentada, Butler afirma uma ética que desafia as hierarquias de valor social e se compromete com uma transformação que inclui todas as vidas. Este compromisso ético cria uma nova prática de resistência que vai além da retribuição violenta e enfatiza a solidariedade e o reconhecimento mútuo, fundamentando-se numa interdependência que se opõe à lógica da exclusão.

O diálogo entre Butler e Fanon também ilumina a visão de Butler sobre a não-violência como resistência coletiva frente à violência do Estado. Fanon observa que a violência é muitas vezes a única expressão de resistência possível para aqueles cujas vozes e vidas são sistematicamente silenciadas. Butler, no entanto, propõe que essa resistência pode e deve adotar uma forma coletiva de não-violência, onde a interdependência entre os sujeitos é central. Ela sugere que a resistência não deve ser entendida como mero confronto, mas como a construção de alternativas de vida e solidariedade que se opõem ao abandono e à fragmentação promovidos pelo Estado. Inspirada por Fanon, Butler propõe uma prática de não-violência que desafia as divisões raciais e culturais que fundamentam a violência estrutural. Esse compromisso ativo com a construção de redes de apoio e reciprocidade promove uma ética política que rejeita as normas excludentes e legitima uma forma de vida solidária e integrada.

Em última instância, o diálogo entre Butler e Fanon fornece uma base sólida para que Butler critique a ordem social baseada na exclusão e proponha uma ética da não-violência como compromisso contínuo com a transformação das condições materiais de vida. Para Fanon, a libertação dos colonizados exige a erradicação das estruturas de opressão colonial; Butler amplia essa visão ao afirmar que a não-violência precisa ir além da resistência passiva e construir um projeto de futuro onde a interdependência e a igualdade sejam fundamentos centrais. A partir da análise de Fanon, Butler reforça que a não-violência é uma prática ativa de confrontação com a violência estrutural, e não uma aceitação resignada. Assim, a criação de um espaço social mais justo e igualitário passa pela reafirmação do valor e dignidade de todas as vidas, promovendo uma resistência que desafia e redesenha as formas como as vidas são valorizadas e reconhecidas.

A relação de Butler com a obra de Walter Benjamin é igualmente significativa, especialmente no que diz respeito à crítica do instrumentalismo na prática da violência. Em seu ensaio “Crítica da Violência”, Benjamin distingue entre a violência que cria e preserva a lei e uma “violência divina” que questiona essas estruturas de poder. Butler se apropria dessa distinção para explorar a não-violência como uma forma de resistência ética que transcende o campo legal e o contrato social, posicionando-a como um compromisso com a justiça e a igualdade que não se submete às estruturas de poder hegemônicas. Nesse sentido, a não-violência assume uma qualidade quase messiânica, pois desafia a instrumentalização da violência e a lógica de dominação, oferecendo um modelo de resistência radical que se opõe às hierarquias normativas. A referência à violência divina de Benjamin fornece a Butler uma maneira de visualizar a resistência não-violenta não como um ato passivo, mas como uma prática agressiva e transformadora. Esse aspecto também se alinha com a perspectiva de Butler sobre a necessidade de transformar as estruturas normativas que geram e perpetuam a violência, mostrando que a não-violência requer uma crítica radical às normas e que, para Butler, essa crítica deve ser agressiva, um ato de resistência que não cede à pacificação.

Um ato de resistência que não cede à pacificação, segundo Butler, é aquele que se recusa a aceitar a “paz” oferecida por estruturas de poder que mantêm hierarquias e desigualdades intactas. Em vez disso, essa resistência persiste em desestabilizar e expor as violências normativas, sejam elas institucionais, raciais, de gênero ou de classe, afirmando continuamente a necessidade de mudanças reais e profundas. Inspirada nas filosofias de Gandhi e Martin Luther King Jr., Butler defende que a verdadeira força da não-violência reside em sua capacidade de recusar compromissos que apenas perpetuem as dinâmicas de opressão e que mantenham o status quo. Dessa forma, um ato de resistência não-violenta que se recusa à pacificação é aquele que confronta o poder de maneira contundente, demonstrando que a não-violência não se trata de evitar o confronto, mas de transformar radicalmente as bases de convivência social, revelando a precariedade e interdependência compartilhadas como fundamentos para um novo horizonte ético e político.

Nessa perspectiva, Judith Butler recorre aos exemplos de Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. para enriquecer sua concepção de não-violência como uma prática ativa e transformadora. Ela examina a filosofia de Gandhi, especialmente seu conceito de “satyagraha”, traduzido como “força da alma”, que rejeita a violência e posiciona a não-violência como uma forma de resistência ativa e moral. Ao distinguir a “satyagraha” da simples resistência passiva, Gandhi vê nela um “instrumento dos fortes”, sugerindo que a não-violência requer coragem e determinação. Butler se apropria desse entendimento para desafiar a visão convencional de não-violência como fraqueza ou inação, argumentando que a recusa em recorrer à violência exige um comprometimento ético profundo com a justiça e a dignidade humana. A resistência não-violenta torna-se, assim, uma prática que não apenas evita a agressão, mas que também confronta e desestabiliza as estruturas de poder que sustentam a opressão, assumindo um caráter ético transformador.

Martin Luther King Jr., influenciado diretamente pela filosofia de Gandhi, também é uma figura central no argumento de Butler. King via a não-violência não apenas como uma tática de resistência, mas como um compromisso ético e espiritual que enraiza a luta pela justiça na fé na dignidade humana e na solidariedade social. Para Butler, a abordagem de King exemplifica a não-violência como uma prática que desafia a violência estrutural de forma contundente, sustentada por um ideal de igualdade que transcende a violência. A não-violência, para King e para Butler, não é uma mera abstenção de agressão, mas um ato de resistência com poder de transformação, que exige tanto um compromisso com a justiça quanto a crença na capacidade de reorganizar a sociedade em torno de princípios de respeito mútuo e interdependência. Esse ideal de não-violência, inspirado em figuras religiosas, fortalece a proposta de Butler ao ressaltar que a verdadeira força da não-violência está em sua capacidade de agir como uma forma de resistência ética, que rejeita o ciclo da violência e aponta para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Além disso, Sigmund Freud e sua teoria da pulsão de morte desempenham um papel central na concepção de Butler sobre a não-violência. Freud argumenta que a pulsão de morte e a agressividade são forças inerentes à psique humana, representando o potencial destrutivo nas relações interpessoais e sociais. Butler utiliza essa concepção para propor que a não-violência não se limita a reprimir a agressividade, mas implica uma constante negociação com essas forças destrutivas, ressignificando-as em práticas de cuidado e solidariedade que reconhecem a interdependência humana. A partir de Freud, Butler constrói uma ética de não-violência que admite a ambivalência e os conflitos inerentes aos laços sociais, sugerindo que o compromisso com a preservação da vida demanda um reconhecimento ativo dessas tensões. Essa postura sugere que a não-violência de Butler não é uma simples rejeição do conflito, mas uma negociação ativa com a agressividade. Ao integrar a teoria freudiana ao seu modelo de não-violência, Butler defende que a ética do cuidado deve ser entendida como uma prática dinâmica, capaz de sustentar uma vida coletiva em meio à pulsão destrutiva. Esse diálogo com Freud ressoa com a preocupação de Butler com a complexidade das relações sociais e as ambivalências que permeiam as construções da identidade e da subjetividade.

Aqui, Judith Butler oferece uma análise densa sobre a filosofia política freudiana, articulando as noções de guerra e destruição no contexto das pulsões humanas e seu papel na dinâmica social e política. Para Butler, a reflexão freudiana sobre a pulsão de morte não é meramente descritiva das tendências destrutivas do sujeito humano, mas levanta um questionamento profundo sobre como essas pulsões moldam as estruturas institucionais e os processos de violência sistemática. Baseando-se na correspondência entre Freud e Einstein, Butler examina a possibilidade de conter ou sublimar esses impulsos destrutivos e os desafios intrínsecos à própria construção de uma ética da não-violência, que, segundo a autora, não se baseia em um ideal pacífico individualista, mas sim em uma resistência ativa e agressiva contra as forças de opressão e violência estrutural.

Freud postula uma dialética entre Eros e Thanatos – a pulsão de vida e a pulsão de morte –, que configura o sujeito humano como um espaço de ambivalência psíquica, onde o desejo de preservação e união está em constante tensão com o impulso de destruição. Butler utiliza esse dualismo freudiano para problematizar as noções tradicionais de violência e não-violência. Para ela, ao tratar da destrutividade como parte constitutiva do sujeito, Freud permite uma leitura da violência que ultrapassa o âmbito do ato físico, revelando um substrato estrutural de violência que permeia as instituições e práticas sociais. Esta ambivalência freudiana, como argumenta Butler, desestabiliza a ideia de que a não-violência seria uma postura naturalmente pacífica; ao contrário, a autora propõe que a não-violência é, em si, uma prática carregada de uma agressividade que é direcionada contra a perpetuação da violência sistêmica.

Ao ampliar a noção freudiana da “faculdade crítica” como mecanismo psíquico que inibe a pulsão de destruição, Butler aponta para as implicações políticas desse conceito, em que o potencial de autocrítica do sujeito poderia funcionar como uma força moderadora dos impulsos destrutivos. Freud sugere que essa capacidade crítica é indispensável para a contenção dos impulsos de violência, especialmente no contexto de grupos sociais, onde o risco de dissolução dos laços é acentuado pela presença de forças destrutivas coletivas. Butler interpreta essa inibição como uma forma de resistência à destruição, propondo que, no campo da política, a crítica e a autocrítica podem ser formas de contenção de tendências autodestrutivas de caráter estrutural. Assim, a “faculdade crítica” freudiana torna-se central na análise de Butler sobre a possibilidade de uma política de não-violência, onde o exercício da crítica se manifesta não como um ideal abstrato, mas como uma prática necessária para conter e redirecionar as forças de violência e destruição que permeiam as estruturas sociais.

A discussão de Butler sobre o “crítico ambivalente” e a inibição crítica retoma a questão freudiana da formação do super-ego, que, ao internalizar as normas sociais, cria um espaço onde a pulsão destrutiva pode se voltar contra o próprio sujeito, em um processo de autonegação que pode assumir proporções autodestrutivas. Butler explora como essa dinâmica de autocrítica pode ser, ao mesmo tempo, uma prática de autocontrole e uma armadilha psíquica, em que o sujeito se torna vítima de um regime de normas que reforçam um ciclo contínuo de violência e autoagressão. No contexto político, isso sugere que a contenção da violência por meio de normas sociais deve ser acompanhada por uma análise crítica das próprias normas, evitando que o controle da violência acabe gerando novas formas de opressão e exclusão. Butler parece, assim, convocar o leitor a pensar a crítica como uma prática ética que desafia os mecanismos institucionais que instrumentalizam a violência, expondo os limites da contenção normativa e os perigos de uma cultura da pulsão de morte que se perpetua sob a aparência de ordem social.

A propósito, esse debate posiciona a psicanálise freudiana no centro do projeto ético-político de Butler, onde a não-violência é compreendida como um “vínculo ético-político” que transcende o individualismo e abraça uma interdependência agressiva. A autora sugere que a luta contra a violência estrutural exige uma reformulação da ética e da política, em que a crítica à violência sistêmica está intrinsecamente ligada à crítica do individualismo. Butler questiona as noções de autonomia e soberania, propondo que a verdadeira não-violência emerge do reconhecimento de uma interdependência que resiste à normatividade opressiva e ao abandono dos sujeitos mais vulneráveis. Assim, o capítulo se alinha com a tese central do livro ao propor que o combate à violência estrutural requer uma reavaliação da própria ideia de sujeito e da relação entre o eu e o outro, enfatizando que a ética da não-violência deve ser uma prática coletiva de resistência.

A análise de Butler, portanto, expande a filosofia freudiana ao explorar a dimensão social das pulsões destrutivas, questionando como a pulsão de morte influencia o comportamento coletivo e a organização política. Em sua visão, a luta pela não-violência não pode se restringir ao âmbito individual ou moral, pois demanda uma abordagem crítica da estrutura social e das condições materiais que promovem a violência como meio de controle. Butler propõe que a filosofia política e a psicanálise se encontram no compromisso de compreender a destrutividade como elemento constitutivo das relações sociais, mas também na tarefa de canalizar essa energia destrutiva para a construção de uma política de interdependência que valorize a vulnerabilidade e a precariedade da vida. Em última análise, o capítulo serve para reafirmar o argumento de Butler de que a não-violência é uma prática de "construção de mundo" que se opõe radicalmente ao individualismo e ao isolamento, promovendo um compromisso ético com a igualdade e a interconexão.

Outro diálogo filosófico que enriquece o argumento de Butler é com Immanuel Kant, particularmente em relação ao princípio da universalidade moral. Kant, ao formular o imperativo categórico, propõe que uma ação moral deve poder ser universalizada sem contradições. Butler aplica essa ideia ao questionar os limites éticos da violência, especialmente nas justificativas de autodefesa. Ao propor um universalismo fundamentado na precariedade, ela sugere que o ideal de igualdade deve ir além das fronteiras liberais e incorporar o reconhecimento da interdependência, um movimento que ela acredita ser necessário para ampliar a concepção kantiana de moralidade universal. Este diálogo com Kant reforça o argumento de Butler de que a não-violência não é uma simples escolha individual, mas uma responsabilidade coletiva que transcende o indivíduo e se estende ao coletivo. Ao propor uma revisão kantiana que inclui a precariedade como fundamento ético, Butler está, de certo modo, reinterpretando o imperativo categórico para uma ética que reconhece a complexidade da diferença e da vulnerabilidade humana.

Para Butler, Étienne Balibar e Hannah Arendt oferecem ainda perspectivas adicionais para a análise do poder e da violência. Balibar, ao discutir a violência e a civilidade, sugere que a violência inerente às estruturas sociais deve ser constantemente confrontada para que se construa uma sociedade mais justa. Butler usa essa ideia para ampliar seu entendimento da não-violência como uma prática ativa de resistência que não apenas rejeita a violência explícita, mas que também desafia as formas de violência estrutural que regulam e marginalizam. Por outro lado, Arendt, em sua distinção entre poder e violência, argumenta que o poder verdadeiro não necessita da violência para se manter, uma visão que Butler incorpora ao discutir a não-violência como uma manifestação de poder que valoriza a solidariedade e a construção de alianças. Butler se apropria dessa distinção arendtiana para questionar as justificativas de autodefesa usadas por Estados e outras instituições, que utilizam a violência sob o pretexto de proteger a “segurança pública” e a “ordem social”. Tais perspectivas complementam o projeto de Butler ao aprofundarem a crítica às formas de poder que se utilizam da violência, reforçando seu compromisso com a criação de alianças e redes de apoio mútuo.

Em “The Force of Nonviolence”, Judith Butler também confronta a questão da violência revolucionária, discutindo-a sob uma perspectiva crítica e diferenciada. Ao tratar do uso da violência como uma possível ferramenta de resistência em contextos de opressão, ela levanta uma importante questão: pode a violência revolucionária realmente fomentar uma transformação estrutural duradoura ou, ao contrário, corre o risco de reproduzir as mesmas lógicas de dominação que pretende abolir? Butler sugere que, ao recorrer à violência, mesmo por motivos considerados justos, os movimentos revolucionários podem inadvertidamente perpetuar uma ética instrumental e normativa que fundamenta os sistemas de poder opressivos. A ideia de que a violência, quando usada para fins revolucionários, pode se tornar um meio necessário para alcançar um objetivo justo, tende, para Butler, a comprometer a integridade ética do movimento. Nesse sentido, sua visão ecoa a crítica de Walter Benjamin, para quem a violência instrumental jamais pode ser completamente separada da lógica de dominação que busca destruir. Ao adotar a violência, a resistência revolucionária pode, portanto, se enredar nas mesmas estruturas que luta para subverter.

A partir dessa crítica, Butler propõe que a não-violência deve ser entendida como uma alternativa radical à violência revolucionária, não como ausência de conflito, mas como uma prática de resistência ética que transcende a lógica binária entre opressor e oprimido. Em sua visão, a verdadeira transformação política e social não reside na conquista do poder pelo poder, mas sim na criação de relações e instituições que rejeitem a instrumentalidade violenta. Em vez de reivindicar o poder por meio da força, Butler defende que a resistência política e ética deve reimaginar o próprio conceito de poder, buscando estruturas que se baseiem em princípios de dignidade, solidariedade e interdependência. A proposta de Butler, então, não nega o valor das lutas históricas contra regimes opressores, mas questiona se a violência, mesmo com propósitos revolucionários, pode efetivamente conduzir a uma sociedade mais justa e igualitária. Para ela, o compromisso com a não-violência não é uma postura passiva, mas uma forma ativa de resistência que desafia e subverte os mecanismos de poder hegemônicos, promovendo um novo horizonte político fundamentado na ética do cuidado e no respeito universal pela precariedade compartilhada.

Assim, a não-violência, segundo Butler, constitui-se como uma prática de resistência que, longe de se submeter ao status quo, busca criar as condições para uma transformação que transcende as relações de poder baseadas na violência. Esse ideal de resistência ativa e não-violenta, que recusa a lógica da violência revolucionária, emerge como um imperativo ético para Butler, na medida em que coloca a dignidade humana e o reconhecimento da vulnerabilidade mútua no centro do projeto político. Em sua concepção, a luta por justiça e igualdade requer uma reestruturação completa das formas de interação social, na qual o reconhecimento e a valorização das vidas precarizadas passam a ser fundamentais para o novo imaginário político.

Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.

Imagem: DALL-E

Podemos aqui ensaiar algumas provocações: em que medida as reflexões de Butler poderiam dialogar com o individualismo protestante, especialmente no contexto brasileiro, e contribuir para uma ética social mais abrangente? Vale lembrar que o calvinismo, de modo análogo, também parte da precariedade dos indivíduos: O conceito de depravação em João Calvino, como articulado nas Institutas da Religião Cristã (1559), fundamenta-se na concepção mítica de uma corrupção essencial e total da natureza humana, originada a partir da queda de Adão. Calvino não trata o pecado apenas como um conjunto de ações específicas ou falhas morais pontuais, mas o conceitua como um estado ontológico de alienação, que representa uma ruptura profunda e contínua entre o ser humano e Deus. Para ele, o pecado original é uma “depravação e corrupção hereditária”, algo que se infiltra na própria essência da humanidade e permeia todas as faculdades da alma, impossibilitando o ser humano de realizar, por seus próprios meios, qualquer ação que agrade a Deus (Institutas II.1.5). Esse ponto é central, pois fundamenta a necessidade de uma intervenção divina para qualquer retorno à retidão.

Na perspectiva de Calvino, essa corrupção é abrangente e absoluta, sem qualquer parte do ser humano que esteja imune à influência devastadora do pecado. O intelecto, a vontade e as emoções encontram-se igualmente corrompidos, o que configura o ser humano em um estado de contínua incapacidade para o bem. A profundidade dessa corrupção coloca o ser humano em um dilema insuperável, pois, mesmo que o desejo de buscar o bem se manifeste, ele se vê perpetuamente inibido pelo domínio do pecado, que aprisiona sua vontade. Ao contrário das perspectivas que enfatizam o livre-arbítrio como uma força ativa e operante para o bem, Calvino descreve a vontade humana como “em miserável servidão” ao pecado. A noção de depravação total e o conceito de um livre-arbítrio “escravizado constroem uma visão pessimista da condição humana, subjugada a uma “rebeldia estrutural” contra Deus (Institutas II.2.8).

Esse entendimento da natureza humana rejeita veementemente as ideias pelagianas, que atribuem a transmissão do pecado original à mera imitação. Para Calvino, o pecado não é uma mera influência externa, mas uma realidade intrínseca, um “contágio” transmitido hereditariamente desde Adão a toda a sua descendência. Assim, a depravação é uma corrupção radical e inescapável que se perpetua através das gerações, deixando o ser humano em uma condição que só pode gerar ações contrárias à vontade divina. Ao afirmar que o ser humano é “fecundo em todas as coisas ruins”, Calvino enfatiza a insuficiência das capacidades naturais humanas para o bem, reforçando que, sem a intervenção da graça divina, o homem está condenado a viver em oposição aos desígnios de Deus (Institutas II.1.8).

No cerne dessa depravação encontra-se o conceito de “concupiscência”, que Calvino entende como uma inclinação incontrolável e desordenada para o pecado. A concupiscência representa, para ele, um estado de corrupção moral interna, que molda as escolhas, desejos e motivações do indivíduo, direcionando-o para uma contínua alienação da bondade divina. Esse estado de alienação é, segundo Calvino, tão determinante que a natureza humana se vê conduzida a uma trajetória de autodestruição espiritual e moral. A concupiscência não é, portanto, um desejo específico ou restrito, mas uma inclinação radical que contamina todos os aspectos da vida humana, reforçando a necessidade de uma intervenção externa para qualquer possibilidade de reconciliação com Deus (Institutas II.2.10).

A solução para essa condição de depravação, na visão de Calvino, não se encontra em qualquer potencial humano, mas exclusivamente na obra redentora de Cristo e na regeneração operada pelo Espírito Santo. Calvino defende que essa regeneração não é um mérito ou conquista humana, mas uma obra da graça soberana de Deus. Somente por meio desse ato regenerador a mente e o coração humanos podem ser transformados, habilitando o ser humano a buscar a justiça. Essa regeneração é um processo monergístico, em que a vontade e a ação de Deus são essenciais e exclusivas, determinando a renovação espiritual do ser humano sem qualquer cooperação humana. Assim, a redenção se torna um reflexo da glória divina, como um dom que transcende as capacidades humanas e que só pode ser recebido por meio da graça (Institutas II.3.3).

Por fim, a doutrina da depravação total em Calvino não apenas destaca a profundidade do pecado humano, mas sublinha a centralidade da graça divina como o único meio de redenção. Ao afirmar que o ser humano está em um estado de perdição completo, Calvino exalta a necessidade absoluta da graça para libertá-lo das amarras da corrupção. A regeneração, neste contexto, é mais do que uma mudança de comportamento ou uma reorientação moral; é um dom divino que transforma a essência do ser humano, renovando a sua natureza e permitindo-lhe viver de acordo com a justiça divina. Dessa forma, a depravação total e a regeneração monergística constituem elementos interdependentes, estabelecendo as bases teológicas para a salvação, onde a intervenção divina é a única esperança de restauração (Institutas II.3.6).

Na proposta de leitura dialógica entre a noção de depravação total em Calvino e a vulnerabilidade em Judith Butler, surge uma interpretação secular da insuficiência humana que ressoa em ambas as concepções. A perspectiva de Calvino sobre a depravação total descreve uma corrupção ontológica que abrange todas as faculdades humanas, tornando o indivíduo completamente incapaz de alcançar o bem divino sem uma intervenção sobrenatural. Esse estado de alienação não se refere meramente à prática de atos imorais, mas a uma condição existencial de insuficiência, onde o ser humano é profundamente dependente da graça divina para obter regeneração espiritual. A depravação, portanto, não permite que o sujeito supere sua própria alienação sem uma força transcendental que o resgate de sua natureza corrompida.

Judith Butler, ao tratar da vulnerabilidade e da precariedade, apresenta uma visão da condição humana que ecoa, em termos seculares, essa dependência essencial. Em sua concepção, a vulnerabilidade é uma característica ontológica que revela o ser humano como inerentemente exposto e interdependente, incapaz de sustentar-se fora de relações sociais e de apoio mútuo. A sobrevivência e o reconhecimento dependem de uma resposta ética a esse estado de exposição, implicando uma fragilidade que demanda uma estrutura de cuidado e coabitação. Surge então a provocação: essa vulnerabilidade, situada no plano ético-social, espelha de certo modo o estado de necessidade essencial descrito por Calvino, em que o ser humano, sem uma intervenção externa, estaria inevitavelmente destinado à autodestruição ou ao isolamento? Em ambos os casos, a insuficiência humana parece requerer uma transformação que transcende as capacidades individuais, seja pela graça divina ou pela ética da interdependência. Desenvolver esse ponto, no entanto, exigiria inúmeras mediações sócio analíticas, correndo o risco de trair a especificidade de cada autor. Ainda assim, ele permanece como uma instigante questão para futuras reflexões.

Concluindo, a precariedade em Butler não se limita a um estado ontológico de fragilidade humana, mas é constituída materialmente por relações de poder que definem quais vidas merecem amparo e quais são deixadas à margem. Em “The Force of Nonviolence”, Butler vincula a vulnerabilidade a condições estruturais que expõem populações racializadas, economicamente desfavorecidas ou marginalizadas a uma violência silenciosa, onde o abandono e a exclusão operam com a mesma força que a violência física. Para Butler, essas condições produzem um estado de vulnerabilidade distribuído de forma desigual, resultante de uma economia política que determina o valor das vidas segundo sua posição nas hierarquias sociais. Assim, a grievability representa um reconhecimento da dignidade e do valor de todas as vidas, desafiando não apenas a exclusão ética, mas também os processos materiais que perpetuam desigualdades. Essa “graça” secular, portanto, se fundamenta na resposta às necessidades concretas das vidas precarizadas, propondo uma solidariedade ativa e relacional que reconfigura as estruturas sociais de amparo e proteção.

Ao deslocar a crítica ao individualismo liberal para o plano das práticas de reconhecimento e proteção social, Butler também desafia o conceito de sujeito autônomo que caracteriza o universalismo abstrato. Sua ênfase na interdependência humana revela uma crítica mais ampla à noção de que o indivíduo é uma unidade completa, que existe independentemente dos laços sociais. Em contraste com o sujeito calvinista, que depende exclusivamente da graça divina, o sujeito de Butler encontra sua dignidade e reconhecimento na coabitação e no cuidado mútuo, onde a “graça” se manifesta não como intervenção sobrenatural, mas como prática coletiva de resistência e de justiça. Assim, enquanto o liberalismo promove a autonomia do sujeito, o pensamento de Butler radicaliza o entendimento do sujeito como dependente da interdependência social e da dignidade partilhada, sugerindo, paradoxalmente, uma ética relacional que ecoa, em chave secular, a dependência radical da graça calvinista. Nesse sentido, o universalismo da precariedade exige uma ética do cuidado que transcenda o sujeito isolado, posicionando o valor da vida no centro de um projeto político e ético que desafia as exclusões estruturais e redefine as bases da solidariedade em uma democracia radical.

Em última análise, o universalismo fundamentado na precariedade proposto por Butler transcende a igualdade liberal ao estabelecer uma base comum de vulnerabilidade, que é, paradoxalmente, universal e diferenciada. Esse novo modelo de universalismo não busca apagar as diferenças, mas reconhecê-las e valorizá-las dentro de um contexto onde a dignidade e a proteção da vida sejam prioritárias. Em vez de um universalismo abstrato e individualista, o que Butler propõe é um universalismo que se funda na interdependência e na ética do cuidado, rejeitando as fronteiras rígidas impostas pelo poder pastoral e pela biopolítica. A “graça” secularizada, nos termos desta “precária” tentativa de tradução teológica, torna-se um compromisso ativo de justiça, respondendo não apenas a um ideal ético abstrato, mas às urgências concretas que desafiam a exclusão estrutural. Tal visão, construída a partir do diálogo com Foucault, Fanon, Benjamin, Freud, Kant, Balibar e Arendt, redefine a ética do cuidado e a não-violência como fundamentos de uma justiça genuína e de um compromisso político com a dignidade universal, articulando-se perfeitamente ao projeto teórico-filosófico de Butler, que busca subverter as normas excludentes e criar novas possibilidades de reconhecimento e coabitação.

Referências
BUTLER, Judith. The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind. London: Verso, 2020.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 4 v. (Baseada na edição de 1559).

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Ídolos e Ideologia: Fragmentação da Subjetividade e o Vazio do Real em Calvino e Žižek

O artigo “O espectro da ideologia” de Slavoj Žižek, presente na obra “Um mapa da Ideologia”, configura-se como uma crítica sofisticada à concepção marxista clássica de ideologia, abordando-a de maneira a desmantelar (e reformular) a noção que a vê como uma “falsa consciência”. Para Žižek, a ideologia não se limita a distorcer a percepção da realidade; ela é constitutiva da própria realidade social, inseparável dela. No artigo, o autor explora as complexidades desse conceito, articulando-o com a psicanálise lacaniana e com uma perspectiva dialética que desvela suas nuances e paradoxos. O texto de Žižek, portanto, desafia as formulações marxistas e oferece uma nova leitura que ultrapassa a compreensão tradicional e abrange a ideologia como parte integrante e estruturante da realidade.

Žižek inicia sua análise ao propor uma reconsideração da ideologia, que deixa de ser compreendida como uma “máscara” que encobre o real e passa a ser uma condição estrutural da experiência e percepção da realidade. Diferentemente de Marx, que via a ideologia como uma “falsa consciência” alienadora, Žižek argumenta que a ideologia permeia a própria estrutura social, funcionando como uma matriz simbólica que sustenta a vivência cotidiana dos sujeitos. Em outras palavras, a ideologia não é apenas uma ilusão que encobre o que é verdadeiro; ela é a estrutura fantasmática que organiza a experiência do sujeito dentro de um determinado sistema, como o capitalismo. Žižek utiliza a noção de “fantasia” lacaniana para ilustrar como a ideologia opera. Assim como no conceito lacaniano de que “não existe relação sexual”, onde o ato sexual é sempre permeado por fantasias, a ideologia também configura uma relação fantasmática com o real que oculta sua complexidade e media a experiência humana.

Esse entendimento permite que Žižek vá além das concepções clássicas e revele como a ideologia atua não apenas no nível da consciência, mas também da realidade material. A ideologia, nesse contexto, não necessita que as pessoas creiam nela em um sentido estrito; basta que elas sigam suas práticas para que seu funcionamento continue inabalável. Dessa maneira, Žižek elabora o conceito de “ideologia cínica”, onde os sujeitos sabem que o sistema é injusto, mas agem como se não soubessem, perpetuando a estrutura ideológica através de suas ações cotidianas. Essa perspectiva aprofunda o alcance da ideologia no capitalismo contemporâneo, onde os sujeitos participam do sistema sem precisar acreditar nele. Para Žižek, a ideologia persiste exatamente porque ela já está materializada na realidade, e os sujeitos operam conforme suas regras, mesmo que não compartilhem mais de sua “verdade” subjetiva.

Ao examinar a ideologia, Žižek utiliza a “leitura sintomal” como ferramenta crítica para explorar o que os discursos tentam ocultar de maneira estruturante. Inspirado pela psicanálise lacaniana e pela crítica literária, o autor defende que, ao invés de tomar as ideias ou valores ideológicos em sua literalidade, é preciso identificar as falhas, lacunas e rupturas no discurso oficial — aquilo que ele chama de “sintomas”. Esses sintomas, muitas vezes expressos em contradições ou omissões sutis, são manifestações de um desejo reprimido ou de uma tensão não resolvida que sustenta a ideologia. A leitura sintomal, portanto, permite que o crítico identifique aquilo que não é dito diretamente, mas que é central para a estrutura ideológica em questão. Nesse sentido, a crítica da ideologia não busca apenas “desmascarar” uma distorção consciente, mas desvendar os elementos inarticulados que revelam a função de controle e manipulação do discurso ideológico.

Žižek ilustra o uso da leitura sintomal em suas análises de fenômenos concretos, revelando como a ideologia permeia o cotidiano. Ele examina, por exemplo, a forma como o Ocidente abordou o conflito da Bósnia e a dissolução da Iugoslávia, onde a mídia e intelectuais liberais ocidentais descrevem o conflito como uma explosão de rivalidades étnicas primordiais, assumindo uma posição de “observador antropológico”. Tal leitura apresentava o conflito como um “espetáculo étnico”, alheio à modernidade racional ocidental, e exime o Ocidente de sua responsabilidade no processo. Para Žižek, essa explicação ideológica transformava a guerra em um fenômeno naturalizado, mascarando as dinâmicas políticas e econômicas globais que contribuíram para a desintegração da região. A leitura sintomal permite revelar que o que está sendo ocultado não é apenas o papel ativo do Ocidente, mas o próprio funcionamento do discurso de civilidade ocidental, que se estrutura na contradição de um “outro bárbaro”.

Outro exemplo significativo é a análise de Žižek sobre o que ele chama de “cinismo ideológico” no capitalismo contemporâneo, onde as pessoas reconhecem a injustiça e a exploração do sistema, mas continuam a operar dentro dele como se não soubessem. Esse cinismo se manifesta, por exemplo, na cultura consumista, onde os consumidores se sentem atraídos por propagandas que sabem ser enganosas, mas que ainda assim impactam suas escolhas. Essa participação cínica, segundo Žižek, revela um dos aspectos mais sutis da ideologia atual, que não mais demanda uma crença genuína, mas uma adesão automática às práticas do sistema. A leitura sintomal aqui permite que se observe como o discurso da “consciência crítica” dos consumidores mascara a reprodução do próprio sistema que se critica.

Essa reflexão leva Žižek a revisitar o conceito de fetichismo da mercadoria, oferecendo uma nova leitura. Para Marx, o fetichismo da mercadoria era a atribuição de qualidades humanas a objetos, obscurecendo a relação entre trabalhadores e meios de produção. Žižek, no entanto, vê o fetichismo como uma característica constitutiva do sistema capitalista, um processo que não se limita à “distorção”, mas que constitui o próprio modo de operação do capitalismo. Esse fetichismo não é uma “ilusão” que pode ser desfeita, mas um processo material e simbólico que emerge espontaneamente. Ao ver os produtos como portadores de valor intrínseco, estamos perpetuando a estrutura do capitalismo. Para Žižek, a crítica marxista que vê o fetichismo como um erro de percepção perde de vista o caráter inevitável e estrutural desse processo. O fetichismo é, portanto, o modo como o capitalismo estrutura as relações econômicas, e não algo que possa ser desmontado com a revelação de sua falsidade.

A análise de Žižek sobre a ideologia segue uma lógica dialética, onde ele articula os conceitos de ideologia “em si” e “para si”. A ideologia “em si” refere-se à doutrina, às crenças e valores coletivos que aparentam um sentido compartilhado e que operam como uma “verdade” social. Nesse nível, a ideologia fornece coesão ao sustentar os discursos e valores que aparentam uma neutralidade. No entanto, Žižek propõe que a ideologia “para si” revela sua dimensão material e externa, onde doutrinas e crenças se convertem em práticas, rituais e instituições. Ao tornar-se “para si”, a ideologia se transforma em um mecanismo visível e operacional na vida social, constituindo-se nos “Aparelhos Ideológicos de Estado” descritos por Althusser. Žižek identifica nesse movimento dialético uma transformação interna, onde a ideologia desintegra-se em fenômenos aparentemente distintos, que se articulam de maneira dispersa no corpo social. Ao se manifestar de maneira fragmentada, a ideologia não mais se apresenta como uma “falsa consciência” centralizada, mas como uma “família” de elementos interconectados que persistem de maneira invisível e dispersa.

Por meio dessa articulação dialética, Žižek demonstra que a tentativa de escapar da ideologia é, frequentemente, uma das formas mais puras de subordinação a ela. Essa estrutura cínica da ideologia revela que a crítica tradicional que vê a ideologia como algo externo à realidade é, ela mesma, uma ilusão ideológica. Para Žižek, a ideologia não é um elemento a ser superado, pois sua própria lógica está presente nas formas de vida e de pensamento que aparentam romper com ela. A ideologia não é um erro a ser corrigido; é um fundamento estrutural do modo como a realidade é experimentada. Dessa forma, Žižek rejeita a ideia de que a ideologia possa ser simplesmente desmascarada e sugere que toda tentativa de escapar dela a reafirma, colocando os sujeitos ainda mais profundamente sob seu domínio.

Essa abordagem culmina em uma crítica à ideia marxista de representação ideológica. Para Žižek, a ideologia não é meramente uma distorção na representação da realidade, mas uma prática materializada que se realiza nas ações cotidianas. Inspirado em Althusser, Žižek propõe que a ideologia não é somente interna ao sujeito; é performada em ações e sustentada por instituições. Esse “materialismo da ideologia” implica que, em vez de ser uma crença íntima, a ideologia molda as ações dos sujeitos independentemente de suas crenças conscientes. O autor, então, refuta a noção de que a ideologia seja uma distorção que pode ser corrigida ou superada. Para ele, a ideologia opera como uma base real da estrutura social, estabelecendo um quadro que não se desintegra simplesmente ao se tomar consciência dele.

Ao propor que a ideologia é algo inescapável e intrínseco à realidade, Žižek eleva a crítica da ideologia a um novo patamar. Em vez de buscar uma “consciência verdadeira” livre de ideologia, ele sustenta que nossa compreensão da realidade está inextricavelmente moldada por ela. O caráter inescapável da ideologia torna o conceito de “falsa consciência” inadequado, pois assume que é possível uma consciência sem distorções. No entanto, é importante destacar que, para Žižek, o “Real” lacaniano permanece um vazio estrutural, uma dimensão inatingível e essencialmente fora do alcance da simbolização completa. A ideologia, então, atua como uma estrutura que mascara essa ausência central e oferece uma versão de realidade que parece coesa, ainda que construída em torno desse vazio intransponível. Dessa forma, a própria tentativa de alcançar essa consciência pura já é uma ilusão ideológica, pois se ancora na ideia de que há uma “realidade verdadeira” além das estruturas simbólicas que nos condicionam.

Em “O espectro da ideologia”, Slavoj Žižek, portanto, nos oferece uma crítica abrangente e original da concepção marxista de ideologia. Ao reformular o conceito para além da ideia de “falsa consciência”, ele introduz a noção de ideologia como estrutura constitutiva da realidade social, um campo de práticas e significados que condiciona a experiência humana. A ideologia, para ele, é o próprio horizonte da realidade que habitamos, não sendo algo a ser superado, mas constantemente analisado em sua capacidade de nos capturar mesmo quando pensamos escapar dela. Em última instância, Žižek nos convoca a desconfiar de todas as tentativas de romper com a ideologia, pois elas podem, paradoxalmente, ser o gesto mais profundo de sujeição a seu poder estrutural.

Imagem: DALL-E

Para estabelecer uma ponte entre a crítica à ideologia em Žižek e a teologia calvinista, é fundamental reconhecer que ambos os autores veem na mente humana uma predisposição estrutural a construir representações incompletas e ilusórias da realidade. Se para Žižek a ideologia atua como uma “lente invisível” que estrutura a percepção e normaliza sistemas de crença, para Calvino essa estrutura assume a forma de uma inclinação natural da mente para criar ídolos, afastando-se do verdadeiro conhecimento. Em ambos os casos, o ser humano se submete a uma realidade fragmentada e limitada, seja por meio de ideologias que distorcem a realidade social ou de ídolos que obscurecem a essência divina. Essa convergência entre os autores revela o quanto essas “fábricas de crenças” operam dentro do sujeito, impondo barreiras que o afastam de uma experiência genuína e desvelando, em última instância, a profundidade do vazio estrutural que ambos, cada um à sua maneira, buscam expor.

Em “As Institutas da Religião Cristã,” João Calvino desenvolve uma compreensão aguda da natureza humana ao descrever a mente como uma “fábrica perpétua de ídolos”. Essa expressão sintetiza o entendimento calvinista da inclinação humana à idolatria, não como um desvio esporádico, mas como um traço estrutural do ser humano após a queda. Em sua análise, Calvino não vê a criação de ídolos apenas como uma falha moral ou intelectual, mas como uma compulsão que emerge da incapacidade do homem de compreender plenamente o divino. A mente humana, ao se deparar com a Transcendência, tende a criar representações que satisfaçam a necessidade de tangibilizar e controlar o incompreensível, levando à fabricação de “falsos deuses” que, ao invés de revelarem Deus, refletem as limitações e desejos humanos.

Para Calvino, essa inclinação idólatra é tão pervasiva que se manifesta não só em crenças religiosas, mas também em práticas cotidianas e na maneira como o ser humano interpreta a realidade ao seu redor. Ele argumenta que o impulso de criar ídolos responde à necessidade humana de preencher o vazio deixado pela própria finitude e pelo afastamento de Deus. Nesse sentido, a idolatria não é um erro superficial, mas uma busca inerente do coração humano por estabilidade e sentido em uma existência marcada pela impermanência. O ídolo, para Calvino, surge como uma projeção dos próprios limites e fraquezas humanas e molda a forma como o indivíduo se relaciona com o sagrado. Essa “idolatria estrutural” expõe uma verdade sobre o ser humano: a tendência de construir “verdades” e representações que, ao invés de captarem o absoluto, refletem a própria subjetividade finita.

Esse conceito calvinista de idolatria dialoga profundamente com a análise de ideologia proposta por Slavoj Žižek, que a concebe como uma estrutura que organiza a percepção humana, funcionando como uma “lente” que define o que é visível, compreensível e aceitável para o sujeito. Žižek propõe que a ideologia não é apenas uma falsa representação, mas uma camada estruturante que molda a própria experiência da realidade. A ideologia, assim como a idolatria em Calvino, configura-se como uma disposição intrínseca da mente humana que não é facilmente superável. Para Žižek, ela não é um “erro” de entendimento, mas uma dimensão constitutiva da subjetividade, que leva o indivíduo a interpretar a realidade de maneira limitada e condicionada, sustentando crenças e práticas que refletem e reforçam o sistema dominante. Ademais, ao considerar o “Real” lacaniano como um vazio estrutural, percebemos que a idolatria calvinista e a ideologia zizekiana operam ambas como estruturas simbólicas que buscam preencher uma ausência fundamental: a primeira, no plano da experiência religiosa e do sagrado; a segunda, no contexto social e político. Esse vazio do “Real” se assemelha, na perspectiva de Calvino, à incompreensibilidade de Deus, o que leva a mente a construir ídolos para “preencher” essa lacuna.

Uma afinidade clara entre Calvino e Žižek é a ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia funcionam como substitutos imperfeitos para uma realidade mais profunda e autêntica. Na teologia calvinista, o ídolo oferece ao crente uma versão distorcida do divino, que obscurece a verdadeira natureza de Deus e afasta o fiel da genuína experiência do sagrado. Na perspectiva de Žižek, a ideologia opera de modo similar ao criar uma “fantasia estruturante” que define a experiência do mundo de acordo com as exigências e limitações de um sistema específico de crenças e valores. Ambos os conceitos apontam para a necessidade de mediação: tanto a idolatria quanto a ideologia revelam que o ser humano parece incapaz de encarar o “real” em sua essência sem projetar sobre ele camadas de significados que acabam por obscurecer sua verdadeira natureza. Para Žižek, esse “Real” permanece um vazio inalcançável, e a ideologia atua como um dispositivo de cobertura, oferecendo uma ilusão de completude. A idolatria, segundo Calvino, realiza função análoga ao transformar a infinidade incompreensível de Deus em figuras manejáveis e limitadas.

No entanto, uma distinção sutil emerge entre Calvino e Žižek. Calvino enxerga a idolatria como uma expressão da depravação humana e da necessidade de aproximação de um Deus inacessível pela própria razão. Para ele, o ídolo é um reflexo da fraqueza e da corrupção da mente humana, que busca conforto em representações tangíveis que atendem a seus desejos e limitações. Žižek, por outro lado, vê a ideologia como um mecanismo interno ao próprio funcionamento da sociedade, que não surge como uma manifestação isolada da “fraqueza” do sujeito, mas como uma estrutura compartilhada que sustenta e organiza o sistema social. Para Žižek, o indivíduo contribui para a perpetuação da ideologia não apenas por sua fraqueza, mas porque a ideologia opera como uma estrutura que molda a própria subjetividade do sujeito, fazendo-o agir como agente de valores e práticas que ele, em certa medida, aceita e perpetua inconscientemente.

Calvino ainda sugere que o homem projeta nos ídolos algo que é produto de suas próprias limitações e fraquezas, construindo neles uma falsa segurança. Žižek compartilha dessa visão ao entender que a ideologia, embora envolva certa dose de engano, não é imposta ao sujeito de maneira arbitrária; ao contrário, emerge do próprio sujeito, que a perpetua por meio de práticas e atitudes cotidianas. Dessa forma, tanto a idolatria quanto a ideologia são sustentadas internamente, por uma disposição inerente à própria mente humana de buscar sentido e ordem, mesmo que esses sentidos e ordens sejam limitados e distorcidos. Para Calvino, essa disposição representa um afastamento da verdade divina; para Žižek, ela configura o afastamento do sujeito de uma percepção crítica da própria realidade social, enquanto o vazio do “Real” permanece oculto sob a coesão ilusória que a ideologia busca criar.

Por fim, a crítica de Calvino aos ídolos e a análise de Žižek sobre a ideologia permitem uma articulação interessante em torno da ideia de que tanto a idolatria quanto a ideologia refletem construções da subjetividade que, ao invés de libertarem o sujeito, o confinam em uma realidade artificial e limitada. Calvino vê na idolatria um mecanismo pelo qual o ser humano, ao tentar suprir a ausência de Deus, se distancia ainda mais da verdade divina. Žižek, por sua vez, observa que a ideologia se perpetua porque oferece ao sujeito uma estrutura de sentido, ainda que distorcido, sustentada pela necessidade de encobrir o vazio do “Real”. Ambos apontam que, ao tentar preencher suas vidas com “deuses” ou “ideias” que estruturam o mundo, os seres humanos acabam aprisionados em uma realidade fragmentada que não é reflexo do real, mas da limitação e fragmentação de sua própria subjetividade.

Referências
ŽIŽEK, Slavoj. O espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 7-46.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2009. 4 v.

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