(...) Cumpre, porém, acima de tudo que nos guardemos de desprezar e desobedecer a autoridade de nossos superiores, a qual, como vimos, permanece revestida de majestade mesmo quando exercida por pessoas indignas que a corrompem com sua maldade. Porque embora a punição de uma autoridade seja ato de vingança de Deus, não devemos concluir que ela nos tenha sido confiada e seja lícito exercê-la; cabe-nos apenas obedecer e suportar. Refiro-me sempre a pessoas particulares. Porque, se em nossos dias existissem magistrados instituídos para a tutela do povo e para conter a excessiva licença e a cobiça dos soberanos, como outrora os éforos entre os espartanos e os tribunos da plebe entre os romanos, os demarcas atenienses, ou como os três estados quando se reúnem as cortes, a estas pessoas, que estão investidas de autoridade, não posso de modo algum proibir, segundo as exigências de seu ofício, que façam oposição e resistiam à excessiva licença dos reis, pois, deixando de fazê-lo, trairão ao dever de proteger a liberdade do povo (Institutas, 4.20.31).
Na obra “Contingency, Hegemony, Universality”, Slavoj Žižek, Ernesto Laclau e Judith Butler iniciam um diálogo sobre as lógicas democráticas radicais, afirmando que qualquer posição subjetiva se torna, inevitavelmente, incompleta. Isso ocorre porque a articulação de um sujeito, no âmbito de um discurso específico, está sempre condenada ao fracasso, constituída por meio da exclusão radical de suas premissas fundamentais.
Essa lógica é pertinente à análise da teologia política de João Calvino, cuja reflexão sobre autoridade civil combina, paradoxalmente, a defesa da “obediência irrestrita às autoridades seculares” com a justificação do “direito de resistência”. A inconsistência interna dessa formulação torna-se evidente quando observamos que, por um lado, Calvino prega a submissão às autoridades instituídas por Deus, mesmo que corruptas, mas, por outro, concede espaço para a resistência legítima por parte de magistrados virtuosos, os quais têm a responsabilidade de conter a tirania e proteger a liberdade do povo.
A complexidade da teologia política calvinista revela-se na maneira pela qual essa tradição foi apropriada por diferentes grupos ao longo da história. Enquanto alguns a interpretaram como um chamado à obediência passiva, outros a utilizaram para justificar a resistência ao poder opressor. A tradição reformada, nesse sentido, nunca foi monolítica, mas marcada por diferentes adequações e reinterpretações de seus princípios fundadores.
A questão que se coloca para os reformados brasileiros contemporâneos, especialmente aqueles de vertentes conservadoras, é a seguinte: até que ponto a “resistência espiritual” defendida por certos setores da igreja evangélica se sustenta frente à sua reaproximação pragmática com o poder político? A contradição entre a postura reacionária de alguns grupos em relação aos governos anteriores e o apoio incondicional ao atual presidente da República é, no mínimo, irônica.
Calvino, ao longo de sua trajetória, precisou lidar com acusações de que o “novo evangelho” promovia rebelião e insubordinação. Sua resposta foi dupla: por um lado, afirmou a importância da obediência às autoridades; por outro, refinou os critérios para a resistência legítima, evitando uma defesa simplista de revoltas populares.
A teoria política de Calvino, ao contrário do que possa parecer, não é uma defesa cega da não-resistência. Em seu pensamento, há uma complexa combinação de “aristocracia humanista da virtude” com a hierarquia política, em que os magistrados virtuosos têm o dever de agir em prol do bem comum, mesmo que isso signifique resistir à tirania.
Como bem coloca André Biéler, a Reforma nunca exigiu dos crentes uma repetição servil de seus atos passados. A tradição reformada, ao contrário, sempre esteve aberta à crítica e à reinterpretação contínua, conforme novas circunstâncias históricas surgiam. Essa flexibilidade é o que permite à Reforma manter-se relevante, mesmo em contextos culturais e políticos tão distintos como os do Brasil contemporâneo.
Referências
BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
CALVINO, João. A instituição da religião cristã, Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
HÖPFL, H. M., “The Ideal of Aristocratia Politiae Vicina in the Calvinist Political Tradition”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip, “Calvin and His Influence, 1509-2009”.
SILVESTRE, Armando. Calvino: o potencial revolucionário de um pensamento. São Paulo: Editora Vida, 2009.
ŽIŽEK et al. Contingency, Hegemony, Universality. London: Verso Books, 2000.