quinta-feira, 16 de maio de 2019

João Calvino e a Resistência ao Estado

(...) Cumpre, porém, acima de tudo que nos guardemos de desprezar e desobedecer a autoridade de nossos superiores, a qual, como vimos, permanece revestida de majestade mesmo quando exercida por pessoas indignas que a corrompem com sua maldade. Porque embora a punição de uma autoridade seja ato de vingança de Deus, não devemos concluir que ela nos tenha sido confiada e seja lícito exercê-la; cabe-nos apenas obedecer e suportar. Refiro-me sempre a pessoas particulares. Porque, se em nossos dias existissem magistrados instituídos para a tutela do povo e para conter a excessiva licença e a cobiça dos soberanos, como outrora os éforos entre os espartanos e os tribunos da plebe entre os romanos, os demarcas atenienses, ou como os três estados quando se reúnem as cortes, a estas pessoas, que estão investidas de autoridade, não posso de modo algum proibir, segundo as exigências de seu ofício, que façam oposição e resistiam à excessiva licença dos reis, pois, deixando de fazê-lo, trairão ao dever de proteger a liberdade do povo (Institutas, 4.20.31).

Na obra “Contingency, Hegemony, Universality”, Slavoj Žižek, Ernesto Laclau e Judith Butler iniciam um diálogo sobre as lógicas democráticas radicais, afirmando que qualquer posição subjetiva se torna, inevitavelmente, incompleta. Isso ocorre porque a articulação de um sujeito, no âmbito de um discurso específico, está sempre condenada ao fracasso, constituída por meio da exclusão radical de suas premissas fundamentais.

Essa lógica é pertinente à análise da teologia política de João Calvino, cuja reflexão sobre autoridade civil combina, paradoxalmente, a defesa da “obediência irrestrita às autoridades seculares” com a justificação do “direito de resistência”. A inconsistência interna dessa formulação torna-se evidente quando observamos que, por um lado, Calvino prega a submissão às autoridades instituídas por Deus, mesmo que corruptas, mas, por outro, concede espaço para a resistência legítima por parte de magistrados virtuosos, os quais têm a responsabilidade de conter a tirania e proteger a liberdade do povo.

A complexidade da teologia política calvinista revela-se na maneira pela qual essa tradição foi apropriada por diferentes grupos ao longo da história. Enquanto alguns a interpretaram como um chamado à obediência passiva, outros a utilizaram para justificar a resistência ao poder opressor. A tradição reformada, nesse sentido, nunca foi monolítica, mas marcada por diferentes adequações e reinterpretações de seus princípios fundadores.

Imagem: DALL-E

A questão que se coloca para os reformados brasileiros contemporâneos, especialmente aqueles de vertentes conservadoras, é a seguinte: até que ponto a “resistência espiritual” defendida por certos setores da igreja evangélica se sustenta frente à sua reaproximação pragmática com o poder político? A contradição entre a postura reacionária de alguns grupos em relação aos governos anteriores e o apoio incondicional ao atual presidente da República é, no mínimo, irônica.

Calvino, ao longo de sua trajetória, precisou lidar com acusações de que o “novo evangelho” promovia rebelião e insubordinação. Sua resposta foi dupla: por um lado, afirmou a importância da obediência às autoridades; por outro, refinou os critérios para a resistência legítima, evitando uma defesa simplista de revoltas populares.

A teoria política de Calvino, ao contrário do que possa parecer, não é uma defesa cega da não-resistência. Em seu pensamento, há uma complexa combinação de “aristocracia humanista da virtude” com a hierarquia política, em que os magistrados virtuosos têm o dever de agir em prol do bem comum, mesmo que isso signifique resistir à tirania.

Como bem coloca André Biéler, a Reforma nunca exigiu dos crentes uma repetição servil de seus atos passados. A tradição reformada, ao contrário, sempre esteve aberta à crítica e à reinterpretação contínua, conforme novas circunstâncias históricas surgiam. Essa flexibilidade é o que permite à Reforma manter-se relevante, mesmo em contextos culturais e políticos tão distintos como os do Brasil contemporâneo.

Referências
BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
CALVINO, João. A instituição da religião cristã, Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
HÖPFL, H. M., “The Ideal of Aristocratia Politiae Vicina in the Calvinist Political Tradition”. In: Backus, Irena; Benedict, Philip, “Calvin and His Influence, 1509-2009”.
SILVESTRE, Armando. Calvino: o potencial revolucionário de um pensamento. São Paulo: Editora Vida, 2009.
ŽIŽEK et al. Contingency, Hegemony, Universality. London: Verso Books, 2000.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

João Calvino e o livre uso das coisas indiferentes

“Comum nunca é propriedade, somente o inapropriável.
O compartilhamento desse inapropriável é o amor” G. Agamben
Em um notável tratado de arqueologia política, o filósofo italiano G. Agamben investiga, de um lado, o surgimento de uma esfera de intimidade (privacy), formada na modernidade por meio de dispositivos que regulam o uso que fazemos de nós mesmos e das coisas, seja sob a forma de posse, pelo direito ou pela força, em relação ao inapropriável. De outro, ele explora as estratégias políticas de desativação das máquinas que orientam nossas percepções sobre a condição humana. Em sua obra "O Uso dos Corpos", Agamben oferece um exemplo radical de uma potência destituinte ao recuperar discussões teológicas fundamentais — das antíteses paulinas à teoria das hipóstases, passando pela doutrina dos sacramentos. Ele nos lembra que o apóstolo Paulo, ao confrontar a lei, utiliza o verbo katargein, que significa nada menos que "tornar inoperante", "desativar" (2017, p. 305).

Na Carta aos Romanos, Paulo não abole a lei, mas a “suprassume” (Aufhebung), isto é, transforma-a através da potência da fé, conservando-a e levando-a ao cumprimento. Aqui, é importante ressaltar que esse conjunto de questões teológicas era bem conhecido por João Calvino, o reformador franco-genebrino. Em seu tratado sobre a liberdade cristã, Calvino não apenas faz referência à misericórdia divina — “devemos afastar de nós mesmos o olhar para fixá-lo somente em Jesus Cristo” —, no que diz respeito à teologia da justificação, como também convoca seus leitores a uma obediência livre e voluntária, uma moral religiosa sem coerção.

Teologicamente, o cumprimento da lei deixa de ser uma “obra meritória” e paradoxalmente se converte em um “ato de liberdade”, que pode manifestar-se até mesmo na forma de renúncia — uma renúncia que, à primeira vista, parece abdicar da própria liberdade, mas que, na verdade, é sua manifestação mais profunda, como expresso em “porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos” (1Co 9.19).

No pensamento calvinista, a liberdade em relação à lei assume um caráter essencialmente dialético: há simultaneamente libertação e cumprimento de uma exigência, que, conforme Lutero, se manifesta sob um duplo regime: “um espiritual, mediante o qual se instrui a consciência na piedade e no culto de Deus; e outro político, pelo qual o homem é instruído em suas obrigações e deveres de humanidade e de educação que devem presidir as relações humanas” (Institutas, 3.19.15).

Além disso, a lacuna que separa a liberdade da exigência religiosa, embora envolva um comprometimento com ela, manifesta-se na doutrina do “livre uso das coisas indiferentes”. Este conceito representa uma zona de indeterminação que tem sido negligenciada por muitos reformados brasileiros: uma coisa pode ser boa ou má dependendo das circunstâncias.

A terceira dimensão da liberdade cristã nos ensina que, diante de Deus, não devemos nos afligir com questões externas que, em sua essência, são indiferentes, podendo ser praticadas ou evitadas com liberdade. Este entendimento é fundamental, pois, sem ele, nossas consciências jamais encontrarão repouso, e as superstições se perpetuarão sem fim. (João Calvino).

Ao realizar uma crítica radical à vida monástica, marcada por uma moralidade dualista, e atribuir um significado religioso à vida cotidiana através da ideia de vocação, a lógica calvinista rapidamente se inseriu naquele dispositivo ontológico-político agambiano de uma vida cindida: o desenvolvimento de uma ascese, separada de seus fundamentos religiosos, que possibilitou a emergência do trabalho humano como ergon (Agamben, 2017, p. 37; McGrath, 2004, p. 249-277). S. Žižek, em uma análise sugestiva, ressalta:
A lição que deve ser tirada do paradoxo básico do protestantismo (como é possível que uma religião que ensina a predestinação tenha sustentado o capitalismo, a maior explosão de atividade e liberdade humanas da história) é que a liberdade não é nem necessidade apreendida (a vulgata de Espinosa a Hegel e os marxistas tradicionais) nem necessidade negligenciada/ignorada (a tese das ciências cognitivas e do cérebro: liberdade é a “ilusão do usuário” da nossa consciência, que não tem ciência dos processos bioneurais que a determinam), mas uma Necessidade que é pressuposta como/e desconhecida/desconhecível. Sabemos que tudo é predeterminado, mas não sabemos o que é nosso destino predeterminado, e é essa incerteza que direciona nossa incessante atividade (ŽIŽEK, 2013, p. 57, grifos do autor).


Foto: “Grant Wood
 [Public domain], via Wikimedia Commons

Proponho, portanto, que apenas ao resgatar as formas de inoperosidade implícitas no livre uso das coisas indiferentes (αδιάφοροι), seremos capazes de reencontrar aquela dimensão radicalmente progressista e libertadora do cristianismo reformado. Como bem sublinha Agamben (2017, p. 85) ao tratar da teoria messiânica que Paulo desenvolve na primeira epístola aos Coríntios (1Co 7.21), “o uso, assim como o hábito, é uma forma-de-vida, e não o saber ou a faculdade de um sujeito”. Inspirando-se em Max Weber, Agamben (2016) destaca que a "vocação messiânica” é um chamado dentro do chamado: “a vocação chama a própria vocação, é uma urgência que a trabalha e escava desde o interior, anulando-a no próprio gesto em que se mantém nela” (ibid., p. 37).

Dessa forma, o “cada um permaneça na profissão em que foi chamado” (1Co 7.20) assume um sentido profundamente radical: “a vocação chama para o nada e para lugar nenhum; assim, pode coincidir com a condição factícia em que cada um é chamado, mas, exatamente por isso, ela a revoga completamente” (ibid., p. 37). A expressão paulina para esse chamado é κλῆσις. Contrapondo-se à racionalização weberiana, Agamben esclarece: "A vocação messiânica é a revogação de toda vocação" (ibid., p. 37, grifo do autor). Assim, a "nova criatura" (2Co 5.17) não funda uma nova identidade: "não é senão o uso e a vocação messiânica da velha" (ibid., p. 40).

Imagem: DALL-E

A vocação messiânica paulina, por meio do hōs mē (como se não”, 1Co 7.20-31), suspende a eficácia simbólica de todas as vocações, tornando-as inoperantes por dentro: “não é um direito nem constitui uma identidade: é uma potência genérica de que se usa sem jamais ser seu titular. Ser messiânico, viver no messias, significa a desapropriação de toda propriedade jurídico-factícia” (ibid., p. 40). Sob a vocação messiânica (1Co 7.29-32), todas as identidades perdem sua plenitude, pois a vocação separa toda κλῆσις de si mesma, colocando-a em tensão consigo, sem fornecer uma nova identidade.

Para Paulo, o messiânico é o lugar de uma exigência que concerne à redenção daquilo que foi. Ele não é um ponto de vista do qual se possa olhar o mundo como se a redenção estivesse completa. O advento do messias significa que todas as coisas — e o sujeito que as observa — são envolvidas no “como não”, chamadas e revogadas simultaneamente (Cf. AGAMBEN, 2016, p. 54).

A aceitação plena do abismo dessubstancializado como a única realidade efetiva sob o “chamado messiânico” converte-se em uma forma poderosa de desativação da ansiedade ontológica instaurada pelos desenvolvimentos posteriores do Calvinismo nos séculos XVI e XVIII, possibilitando uma nova familiaridade com o mundo e com os entes intramundanos — um novo "uso do mundo", nos termos de Agamben.

Referências
Agamben, G. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
Agamben, G. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.
Calvino, J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
Calvino, J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
Calvino, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. v. 4.
McGrath, A. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
Žižek, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.


Para saber mais:

SOUZA, Robson da Costa de. (2020), “A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada”. Reflexão, v. 45, e204792. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4792 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2022), “Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista”. Religião e Sociedade, v. 42, n. 1, p. 37-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872021v42n1cap02 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281



quinta-feira, 2 de maio de 2019

O lado bom do Calvinismo?

“Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus.” (J. Calvino, As Institutas, II.2.15)

Apesar da marcante e austera influência do Sínodo de Dort (1618-1619), que consolidou uma imagem rígida e dogmática do Calvinismo, o subsequente desenvolvimento de uma tradição reformada mais moderada nos Países Baixos, especialmente do “cocceio-cartesianismo” aos “neologianos”, trouxe novas perspectivas. Inspirada por teólogos suíços reformados de linha mais liberal, essa corrente mais mitigada da tradição reformada abriu um caminho teológico promissor. Ela resgatou um aspecto frequentemente negligenciado do vasto trabalho intelectual de João Calvino, o reformador que, ao contrário de Lutero, não hesitou em desafiar a tradição escolástica de seu tempo.

Este “protestantismo liberal”, bastante próximo das luzes do Iluminismo holandês, apresentou-se, naquele contexto, como uma espécie de via media, uma tentativa de preservar o Calvinismo das amarras da ortodoxia protestante estéril que caracterizou o século XVII. Com a emancipação da teologia dogmática, a exegese protestante dos séculos XVIII e XIX encontrou novos canais de expressão e proporcionou à modernidade uma versão mais liberal e tolerante do cristianismo reformado, transitando entre os polos do socinianismo e os movimentos entusiásticos que floresceram naquela época.

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Betje Wolff, uma pensadora reformada holandesa, expressou de maneira contundente esse espírito: “Se recebo a verdade de Lutero ou Calvino, de São Paulo ou Sócrates, pouco importa, pois a verdade é a verdade.” Essa postura, ancorada em uma busca incessante pela verdade, não apenas soube acolher as dúvidas radicais sobre o pecado original, a predestinação e a suposta corrupção inerente da natureza humana, como também pavimentou o caminho para o desenvolvimento de uma espiritualidade progressista. No final do século XVIII, tal espiritualidade foi capaz de dialogar abertamente com o Iluminismo e suas inovações.
    
Citando o título de uma obra publicada por um amigo, talvez seja proveitoso conhecer melhor o “lado bom do Calvinismo”. Para uma análise detalhada dos principais aspectos dessa corrente, recomenda-se a obra de Ernestine Van Der Wall, “The Dutch Enlightenment and Distant Calvin”, publicada em Calvin and His Influence, 1509-2009, organizada por Irena Backus e Philip Benedict.

Referência
VAN DER WALL, E. The dutch enlightenment and distant Calvin. In: BACKUS, I.; BENEDICT, P. Calvin and his influence: 1509-2009. New York: Oxford University Press, 2011. cap. 10, p. 202-223.










Calvino era um biblicista?


A questão de se João Calvino pode ou não ser considerado um biblicista é complexa e deve ser abordada a partir de uma análise cuidadosa de suas obras (e do contexto teológico em que atuou). Para responder a essa questão, é fundamental, antes de mais nada, entender a relação que Calvino estabelece entre a Palavra de Deus e a tradição eclesiástica. No prefácio ao Rei Francisco, em 1536, Calvino já sinaliza uma ruptura epistemológica em relação à visão tradicional da igreja, afirmando categoricamente:

(...) Nós, ao contrário, afirmamos que a igreja pode existir sem aparência visível; igualmente, que não se deve querer que a sua aparência tenha esta magnificência exterior que os nossos adversários loucamente admiram; mas é bem outra a marca da igreja, a saber, a pura pregação da Palavra de Deus, incluída a legítima administração dos sacramentos (Calvino, 2006, p. 48).

Aqui, observa-se uma ênfase em elementos que transcendem a mera materialidade (ou visibilidade) da instituição eclesiástica, trazendo para o centro da sua reflexão a pregação pura da Palavra e a administração correta dos sacramentos. A defesa da Palavra de Deus como critério último e fundamental da legitimidade da Igreja ecoa fortemente o princípio reformador de "sola scriptura", mas vai além de um simples apego ao texto bíblico. Calvino não está defendendo um biblicismo estrito, mas uma teologia profundamente engajada com a ideia da Palavra enquanto expressão viva e eficaz da comunicação divina.

Essa visão dialoga com o que Martinho Lutero, precursor da Reforma, havia proposto em sua obra “A Liberdade Cristã” (1520), onde ele eleva o conceito de liberdade ao estatuto de doutrina fundamental, vinculada diretamente à justificação pela fé. Lutero articulou sua posição de maneira paradoxal, afirmando: “O cristão é um senhor libérrimo sobre tudo, a ninguém sujeito. O cristão é um servo oficiosíssimo de tudo, a todos sujeito.” A dialética implícita nessa formulação, conforme observa W. Altmann, revela uma tensão intrínseca no cerne da teologia reformada: a liberdade cristã como autonomia espiritual, mas também como servidão abnegada.

Imagem: DALL-E

Calvino, ao trilhar caminhos semelhantes aos de Lutero, introduz uma perspectiva adicional, especialmente no que tange à obediência à lei. Enquanto Lutero inaugura a Reforma com a tese da liberdade de consciência, Calvino, por outro lado, propõe uma teologia que, apesar de enraizada na liberdade, não abdica da necessidade de uma obediência agradável à lei de Deus, como expressa nas Institutas da Religião Cristã. Essa tensão entre liberdade e disciplina é uma das características marcantes de seu pensamento teológico.

No que concerne à cisão paulina entre a fé (πίστις) e a lei (νόμος), Calvino explora uma compreensão dialética da relação entre a liberdade cristã e a disciplina espiritual. Para ele, viver em Cristo significa tanto a libertação do jugo da lei quanto o seu cumprimento. Nesse sentido, a teologia calvinista não se restringe a um simples "biblicismo" literal, mas procura integrar a Palavra e os sacramentos dentro de uma visão sacramental do Evangelho. Como A, Biéler sugere, a teologia calvinista deve ser compreendida como uma síntese dinâmica entre liberdade e responsabilidade, entre proclamação e presença.

Calvino, portanto, desenvolve uma teologia na qual a justiça (δικαιοσύνη) é entendida à luz da fidelidade ao pacto divino e da administração dos sacramentos. Sua ênfase contínua na Palavra e nos sacramentos reflete uma tentativa de articular, de um lado, a proclamação (λόγος) e, de outro, a presença real de Cristo (παρουσία). Essa perspectiva “sacramentalista” difere de um biblicismo rígido, pois reconhece a Palavra como um evento performativo (e não apenas como um texto estático).

Essa dimensão performativa da Palavra é corroborada por uma formulação teológica do século XVI, presente na Segunda Confissão Helvética, que afirma: “A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus.” Essa afirmação ressoa de maneira profunda no pensamento contemporâneo, especialmente nas reflexões de J. Derrida sobre o testemunho e a promessa como constitutivos da verdade do discurso religioso. Para Derrida, o ato de enunciar a Palavra de Deus já implica uma promessa performativa, em que a verdade se dá no próprio ato de sua enunciação. Derrida afirma:

“(...) não há ‘religio’ sem ‘sacramentum’, sem aliança e promessa de testemunhar em verdade da verdade, isto é, de dizer a verdade prometendo dizê-la, - de já tê-la dito! – no próprio ato da promessa. De já ter dito a ‘veritas’, em latim, e, portanto, de considerá-la como dita. A promessa ‘se’ promete, ela 'já' se prometeu, eis a fé jurada e, portanto, a resposta. A ‘religio’ começaria aí.” (DERRIDA, 2000, p. 45).

Essas considerações nos levam a uma conclusão importante: a teologia de Calvino, ao insistir na pregação da Palavra e na administração dos sacramentos como marcas da verdadeira igreja, está longe de ser um simples “biblicismo”. Ao contrário, Calvino reconhece a complexidade do fazer teológico, consciente da lacuna constitutiva entre a Palavra de Deus (λόγος τοῦ θεοῦ) e a tradição (παράδοσις). Essa lacuna, longe de ser um defeito ou uma falha, é constitutiva do próprio discurso teológico, como exemplificado na crítica de Jesus às tradições humanas em Marcos 7:1-8, 14-15, 21-23.

Ao reconhecer essa distância entre a Palavra e a tradição, Calvino se afasta de um biblicismo estrito, postulando uma teologia que se coloca constantemente em “estado de exceção”, conforme a expressão de G. Agamben. Esse estado de exceção se refere à tensão contínua e irresolúvel que marca a reflexão teológica, especialmente quando confrontada com a radical alteridade da revelação divina.

Assim, Calvino não é um biblicista no sentido tradicional do termo. Sua teologia reconhece a importância da Palavra, mas não a reduz a uma letra morta, como evidenciado na distinção feita por Lutero entre a ‘litera occidens’ e o ‘spiritus vivificans’. A teologia de Calvino, ao incorporar essa distinção, aponta para uma visão das Escrituras que transcende o texto em si, afirmando sua vitalidade apenas quando iluminada pelo Espírito e vinculada à graça de Cristo. Como ele mesmo afirma: “A Lei de Deus é letra morta e mata os que a seguem, quando está desvinculada da graça de Cristo e somente soa nos ouvidos, mas não toca o coração” (CALVINO, 2006a, p. 77).

Portanto, longe de ser um biblicista, Calvino constrói uma teologia na qual a Palavra de Deus não é um fim em si mesma, mas um meio pelo qual os fiéis são conduzidos à comunhão com Deus, por meio da ação vivificadora do Espírito e da mediação sacramental. Sua visão das Escrituras é profundamente dialética, integrando a liberdade cristã com a obediência à lei, e a proclamação da Palavra com a presença real de Cristo nos sacramentos.

Referências
ALTMANN, W. Lutero e libertação. São Paulo: Ática, 1994.
DERRIDA, J. Fé e saber: as duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: VATTIMO, G.; DERRIDA, J. (org.). A Religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 11-90.
CALVINO, J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo I, Livros I e II. São Paulo: Editora UNESP, 2008.
CALVINO J. A Instituição da Religião Cristã, Tomo II, Livros III e IV. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
CALVINO, J. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. v. 4.

Para saber mais:

SOUZA, Robson da Costa de. (2020), “A tradição calvinista é intolerante? Uma breve contribuição à análise crítica da autorreferencialidade reformada”. Reflexão, v. 45, e204792. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v45e2020a4792 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2022), “Conservadorismos, fundamentalismo protestante e democracia no Brasil: uma compreensão em chave pós-estruturalista”. Religião e Sociedade, v. 42, n. 1, p. 37-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0100-85872021v42n1cap02 .

SOUZA, Robson da Costa de; SILVA, Jefferson Evânio da. (2023), “Pós-estruturalismo e religião: a ética calvinista em relação à temática mais abrangente da teologia política contemporânea”. Reflexão, v. 48, e237281. DOI: https://doi.org/10.24220/2447-6803v48a2023e7281

Teologia de Mesa de Bar: Cristianismo e Desconstrução

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