A obra A Instituição da Religião Cristã (1559), de João Calvino, permanece um marco incontornável para a compreensão do pensamento teológico reformado. Contudo, a tradição interpretativa que busca situar Calvino unicamente dentro dos paradigmas da ortodoxia protestante (séculos XVI e XVII) corre o risco de obscurecer certas tensões internas de sua obra, as quais se revelam surpreendentemente fecundas à luz de preocupações contemporâneas. A partir de uma leitura atenta das Institutas, bem como da análise de Richard A. Muller em “The Unaccommodated Calvin”, emerge uma possibilidade interpretativa singular: a de compreender a teologia calviniana à luz de uma lente pós-estrutural, em diálogo crítico com as teses de Jacques Derrida. Retomando uma hipótese já defendida alhures, esta proposta não visa uma anacrônica “fusão de horizontes”, mas a indicação de uma estrutura formal comum, na qual as categorias de fides, cognitio, intelecto e vontade, bem como a doutrina do testimonium Spiritus Sancti, adquirem ressonâncias profundas com a noção derridiana de différance.
Longe de ser um anacronismo redutor, nossa abordagem pretende evidenciar como a estrutura hermenêutica da fé em Calvino, fundada numa espécie de “descentramento do sujeito” (e no adiamento do acesso ao sentido, diga-se de passagem), revela uma abertura teológica constitutiva que antecede, em profundidade, os conceitos derridianos de différance e de desconstrução da “metafísica da presença”. Em ambos os casos, o acesso ao sentido é mediado, diferido e descentrado. Em Calvino, tal adiamento não é uma deficiência em seu sistema teológico, mas a própria condição de possibilidade do encontro com o Deus transcendente. A transcendência divina exige, para ser reconhecida como tal, a desconstrução de toda pretensão de presença imediata. A Escritura, enquanto testimonium divinitatis, é suficientemente clara, mas seu reconhecimento salvífico é suspenso até ser atualizada pela graça soberana do Espírito.
Ainda que Richard A. Muller advirta contra as projeções anacrônicas sobre Calvino, é importante reconhecer que as tensões hermenêuticas que aqui exploramos já encontraram ressonância, sob formas distintas, na teologia do século XX. A tradição dialética, inaugurada por Karl Barth, compreendeu a Palavra de Deus não como um dado natural, mas como um evento soberano e livre de revelação, cuja realidade se dá na proclamação, na fé e no testemunho, pela ação do Espírito Santo. Já em A Carta aos Romanos (1922), Barth denunciava a ilusão da presença imediata de Deus, mas é na Dogmática Eclesiástica (Kirchliche Dogmatik I/1, §§4–7) que ele formula sistematicamente a tese de que a Escritura não é em si mesma a Palavra de Deus, mas torna-se Palavra de Deus no evento de revelação. Barth, embora parta de premissas teológicas distintas do pós-estruturalismo, desestabiliza a lógica da presença plena ao insistir que o sentido da Escritura é mediado e atualizado pelo Espírito, escapando a toda pretensão de domínio conceitual. Tal concepção da Palavra como evento antecipa, no horizonte da dogmática cristã, uma crítica análoga à desconstrução da metafísica da presença tematizada por Derrida. Nossa proposta, portanto, inscreve-se num horizonte hermenêutico em que Calvino, Barth e Derrida, cada qual a partir de sua gramática própria — reformada, dialética e pós-estrutural, respectivamente —, convergem na crítica à apropriação imediata do significado e na afirmação da alteridade como condição constitutiva do sentido.
Desde seus primeiros escritos, Calvino rejeita uma compreensão meramente intelectualista da fé. Em sua principal obra, ele define a fé como um “firme e certo conhecimento da benevolência de Deus para conosco, fundado na promessa gratuita em Cristo, revelado à mente e selado no coração pelo Espírito Santo” (Institutas III.2.7). Fides não é apenas cognitio, mas também fiducia: confiança viva e afetiva na promessa divina. A articulação entre intelecto e vontade, longe de ser reduzida a um dualismo, expressa uma tensão constitutiva: cognitio precede temporalmente fiducia, pois o objeto da fé precisa ser conhecido antes de ser confiado; contudo, é a fiducia que, em última instância, sela o ato da fé como resposta integral do ser humano.
Esta estrutura teológica, ao ser lida à luz de uma perspectiva contemporânea, revela um movimento de descentramento hermenêutico. Em Institutas I.7.4, Calvino assevera que a autoridade da Escritura não é fundada em raciocínios humanos nem em decretos eclesiásticos, mas se autentica pelo testemunho interno do Espírito Santo. Assim, embora a Escritura contenha em si mesma sinais suficientes de sua divindade, sua recepção como Palavra de Deus é “diferida”, isto é, mediada por um evento de graça soberana. O acesso ao sensus Scripturae é adiado em relação à mera leitura gramatical e depende de uma iluminação interior, instaurando uma lacuna entre o signo e o significado.
Este “adiamento” do sentido, tal como formulado em Calvino, encontra um eco formal na différance derridiana. Para Derrida, o significado nunca se entrega de maneira plena e definitiva, mas é incessantemente diferido na cadeia dos signos. O texto não possui um “centro” estabilizador que interrompa o jogo dos significantes. De modo semelhante, em Calvino, o crente não possui o sentido da Escritura por direito natural nem por força de suas próprias faculdades racionais: é necessário que o Spiritus Sanctus opere uma abertura no ser humano, rompendo a expectativa de presença imediata do sentido. A implicação disso é que a leitura da Escritura é, para Calvino, um ato de hospitalidade: o crente é chamado a acolher um sentido que lhe é dado, não produzido. Este acolhimento é, ao mesmo tempo, um ato de fé e de suspensão do desejo de apropriação total do significado. Portanto, assim como Derrida pensa a leitura como um exercício de abertura infinita ao Outro, também em Calvino a fé é abertura ao Deus que fala por meio da Escritura, mas cuja voz é reconhecida apenas pelo coração regenerado.
A propósito, Richard Muller confirma que, para Calvino, não é a Escritura que é opaca, mas a mente humana que é entenebrecida (cf. Institutas II.2.18). A Escritura é perspicua em si, mas o pecado introduz uma obscuridade epistemológica que só pode ser vencida pela intervenção do Espírito. Desta forma, não há posse soberana do texto sagrado; há uma dependência radical de um evento da graça que ilumina e sela o sentido no coração do crente (cf. Institutas III.2.33). No entanto, é fundamental reconhecer que Richard Muller, em sua abordagem rigorosa do “Calvino não acomodado”, seria crítico de uma leitura como a que propomos. Muller (2001) insistentemente adverte contra a tendência de projetar sobre Calvino categorias modernas, como a desconstrução ou a pós-modernidade, que lhe são estranhas. Para Muller, a teologia calviniana deve ser interpretada a partir de seu contexto do século XVI, resistindo à tentação de harmonizá-la com projetos filosóficos contemporâneos. Nossa hipótese, portanto, não pretende apresentar uma leitura histórica “fiel” segundo os padrões de Muller, mas antes propor um exercício hermenêutico crítico, no qual reconhecemos a alteridade histórica de Calvino e, ao mesmo tempo, exploramos as potências de ressonância formal entre sua teologia e certos princípios pós-estruturais.
Entretanto, é preciso destacar a diferença essencial entre Calvino e Derrida: para o primeiro, o adiamento hermenêutico é escatológico, pois está tensionado pela promessa da redenção final da inteligibilidade; para o segundo, o diferimento é estrutural e irredutível. Em Calvino, a verdade é plenamente presente em Deus e garantida pela soberania divina, ainda que o acesso a ela seja mediado; em Derrida, não existe qualquer presença originária a ser atingida. Nossa hipótese, portanto, pode ser enunciada do seguinte modo: em João Calvino, a teologia do testemunho interno configura uma hermenêutica do descentramento e do adiamento do sentido, análoga formalmente à différance derridiana, mas ontologicamente ancorada na promessa escatológica da verdade plena em Deus. A Escritura não é um “centro” estático de presença, mas um campo de interpelação no qual o crente, através da fé (fides qua creditur), é chamado a acolher a Palavra viva, num movimento incessante de adiamento e promessa.
Assim, a fé reformada, tal como concebida por Calvino, antecipa uma ética da diferença: uma disposição de abertura ao sentido que não se possui, mas que se recebe; uma hospitalidade radical à alteridade do Verbo, que, mesmo prometido, nunca é apropriado como propriedade do sujeito. A interpretação da Escritura, nesta perspectiva, é um ato escatológico de esperança e de humildade, no qual a verdade não é capturada, mas aguardada, como dom gracioso daquele que se revela e, ao mesmo tempo, se oculta no texto sagrado.
Este horizonte hermenêutico, que reconhece o adiamento do sentido e a necessidade do testemunho interno para a verdadeira recepção da Palavra, contrasta frontalmente com certas manifestações contemporâneas do fundamentalismo religioso, particularmente no contexto brasileiro. Ao defender de maneira acrítica a inerrância das Escrituras como se fosse possível uma apreensão imediata, literal e isenta da mediação espiritual, o fundamentalismo trai tanto a natureza da Escritura como sacramentum do Verbo quanto a estrutura teológica da fé como abertura escatológica. Ao reduzir a Escritura a um objeto de posse intelectual ou a uma coleção de proposições transparentes ao intelecto natural, o fundamentalismo reinstaura precisamente a metafísica da presença que tanto Calvino quanto, em outra chave, a filosofia da diferença desconstruíram. A pretensão fundamentalista de fixar o sentido da Escritura em interpretações rígidas, invariáveis e autorreferenciais ignora que, para Calvino, a verdadeira autoridade da Palavra não é capturada pela letra nem dominada pelo entendimento humano natural. A Palavra é viva, eficaz, e sua clareza não elimina, mas intensifica, a dependência radical do Espírito. Longe de constituir um objeto fechado e autossuficiente, a Escritura, como locus da interpelação divina, exige do crente uma disposição de hospitalidade ao mistério, à alteridade e à promessa. A fé reformada, nessa perspectiva, não se confunde com a segurança dogmática da letra morta, mas floresce na tensão escatológica entre o já da revelação e o ainda não da plenitude. Contra toda tentação fundamentalista, é preciso reafirmar que, como dizia Calvino, “a Escritura não brilha a não ser para aqueles cujos olhos foram abertos pelo Espírito” (Institutas I.6.2).
Referências
BARTH, Karl. Church Dogmatics, Volume I/1: The Doctrine of the Word of God. Translated by G. W. Bromiley. Edited by G. W. Bromiley and T. F. Torrance. Edinburgh: T&T Clark, 1975.
MULLER, Richard A. The Unaccommodated Calvin: Studies in the Foundation of a Theological Tradition. New York: Oxford University Press, 2001.