sábado, 26 de abril de 2025

Fé, Diferimento e Alteridade

A obra A Instituição da Religião Cristã (1559), de João Calvino, permanece um marco incontornável para a compreensão do pensamento teológico reformado. Contudo, a tradição interpretativa que busca situar Calvino unicamente dentro dos paradigmas da ortodoxia protestante (séculos XVI e XVII) corre o risco de obscurecer certas tensões internas de sua obra, as quais se revelam surpreendentemente fecundas à luz de preocupações contemporâneas. A partir de uma leitura atenta das Institutas, bem como da análise de Richard A. Muller em “The Unaccommodated Calvin”, emerge uma possibilidade interpretativa singular: a de compreender a teologia calviniana à luz de uma lente pós-estrutural, em diálogo crítico com as teses de Jacques Derrida. Retomando uma hipótese já defendida alhures, esta proposta não visa uma anacrônica “fusão de horizontes”, mas a indicação de uma estrutura formal comum, na qual as categorias de fides, cognitio, intelecto e vontade, bem como a doutrina do testimonium Spiritus Sancti, adquirem ressonâncias profundas com a noção derridiana de différance.

Longe de ser um anacronismo redutor, nossa abordagem pretende evidenciar como a estrutura hermenêutica da fé em Calvino, fundada numa espécie de “descentramento do sujeito” (e no adiamento do acesso ao sentido, diga-se de passagem), revela uma abertura teológica constitutiva que antecede, em profundidade, os conceitos derridianos de différance e de desconstrução da “metafísica da presença”. Em ambos os casos, o acesso ao sentido é mediado, diferido e descentrado. Em Calvino, tal adiamento não é uma deficiência em seu sistema teológico, mas a própria condição de possibilidade do encontro com o Deus transcendente. A transcendência divina exige, para ser reconhecida como tal, a desconstrução de toda pretensão de presença imediata. A Escritura, enquanto testimonium divinitatis, é suficientemente clara, mas seu reconhecimento salvífico é suspenso até ser atualizada pela graça soberana do Espírito.

Ainda que Richard A. Muller advirta contra as projeções anacrônicas sobre Calvino, é importante reconhecer que as tensões hermenêuticas que aqui exploramos já encontraram ressonância, sob formas distintas, na teologia do século XX. A tradição dialética, inaugurada por Karl Barth, compreendeu a Palavra de Deus não como um dado natural, mas como um evento soberano e livre de revelação, cuja realidade se dá na proclamação, na fé e no testemunho, pela ação do Espírito Santo. Já em A Carta aos Romanos (1922), Barth denunciava a ilusão da presença imediata de Deus, mas é na Dogmática Eclesiástica (Kirchliche Dogmatik I/1, §§4–7) que ele formula sistematicamente a tese de que a Escritura não é em si mesma a Palavra de Deus, mas torna-se Palavra de Deus no evento de revelação. Barth, embora parta de premissas teológicas distintas do pós-estruturalismo, desestabiliza a lógica da presença plena ao insistir que o sentido da Escritura é mediado e atualizado pelo Espírito, escapando a toda pretensão de domínio conceitual. Tal concepção da Palavra como evento antecipa, no horizonte da dogmática cristã, uma crítica análoga à desconstrução da metafísica da presença tematizada por Derrida. Nossa proposta, portanto, inscreve-se num horizonte hermenêutico em que Calvino, Barth e Derrida, cada qual a partir de sua gramática própria — reformada, dialética e pós-estrutural, respectivamente —, convergem na crítica à apropriação imediata do significado e na afirmação da alteridade como condição constitutiva do sentido.


Desde seus primeiros escritos, Calvino rejeita uma compreensão meramente intelectualista da fé. Em sua principal obra, ele define a fé como um “firme e certo conhecimento da benevolência de Deus para conosco, fundado na promessa gratuita em Cristo, revelado à mente e selado no coração pelo Espírito Santo” (Institutas III.2.7). Fides não é apenas cognitio, mas também fiducia: confiança viva e afetiva na promessa divina. A articulação entre intelecto e vontade, longe de ser reduzida a um dualismo, expressa uma tensão constitutiva: cognitio precede temporalmente fiducia, pois o objeto da fé precisa ser conhecido antes de ser confiado; contudo, é a fiducia que, em última instância, sela o ato da fé como resposta integral do ser humano.

Esta estrutura teológica, ao ser lida à luz de uma perspectiva contemporânea, revela um movimento de descentramento hermenêutico. Em Institutas I.7.4, Calvino assevera que a autoridade da Escritura não é fundada em raciocínios humanos nem em decretos eclesiásticos, mas se autentica pelo testemunho interno do Espírito Santo. Assim, embora a Escritura contenha em si mesma sinais suficientes de sua divindade, sua recepção como Palavra de Deus é “diferida”, isto é, mediada por um evento de graça soberana. O acesso ao sensus Scripturae é adiado em relação à mera leitura gramatical e depende de uma iluminação interior, instaurando uma lacuna entre o signo e o significado.

Este “adiamento” do sentido, tal como formulado em Calvino, encontra um eco formal na différance derridiana. Para Derrida, o significado nunca se entrega de maneira plena e definitiva, mas é incessantemente diferido na cadeia dos signos. O texto não possui um “centro” estabilizador que interrompa o jogo dos significantes. De modo semelhante, em Calvino, o crente não possui o sentido da Escritura por direito natural nem por força de suas próprias faculdades racionais: é necessário que o Spiritus Sanctus opere uma abertura no ser humano, rompendo a expectativa de presença imediata do sentido. A implicação disso é que a leitura da Escritura é, para Calvino, um ato de hospitalidade: o crente é chamado a acolher um sentido que lhe é dado, não produzido. Este acolhimento é, ao mesmo tempo, um ato de fé e de suspensão do desejo de apropriação total do significado. Portanto, assim como Derrida pensa a leitura como um exercício de abertura infinita ao Outro, também em Calvino a fé é abertura ao Deus que fala por meio da Escritura, mas cuja voz é reconhecida apenas pelo coração regenerado.

A propósito, Richard Muller confirma que, para Calvino, não é a Escritura que é opaca, mas a mente humana que é entenebrecida (cf. Institutas II.2.18). A Escritura é perspicua em si, mas o pecado introduz uma obscuridade epistemológica que só pode ser vencida pela intervenção do Espírito. Desta forma, não há posse soberana do texto sagrado; há uma dependência radical de um evento da graça que ilumina e sela o sentido no coração do crente (cf. Institutas III.2.33). No entanto, é fundamental reconhecer que Richard Muller, em sua abordagem rigorosa do “Calvino não acomodado”, seria crítico de uma leitura como a que propomos. Muller (2001) insistentemente adverte contra a tendência de projetar sobre Calvino categorias modernas, como a desconstrução ou a pós-modernidade, que lhe são estranhas. Para Muller, a teologia calviniana deve ser interpretada a partir de seu contexto do século XVI, resistindo à tentação de harmonizá-la com projetos filosóficos contemporâneos. Nossa hipótese, portanto, não pretende apresentar uma leitura histórica “fiel” segundo os padrões de Muller, mas antes propor um exercício hermenêutico crítico, no qual reconhecemos a alteridade histórica de Calvino e, ao mesmo tempo, exploramos as potências de ressonância formal entre sua teologia e certos princípios pós-estruturais.

Entretanto, é preciso destacar a diferença essencial entre Calvino e Derrida: para o primeiro, o adiamento hermenêutico é escatológico, pois está tensionado pela promessa da redenção final da inteligibilidade; para o segundo, o diferimento é estrutural e irredutível. Em Calvino, a verdade é plenamente presente em Deus e garantida pela soberania divina, ainda que o acesso a ela seja mediado; em Derrida, não existe qualquer presença originária a ser atingida. Nossa hipótese, portanto, pode ser enunciada do seguinte modo: em João Calvino, a teologia do testemunho interno configura uma hermenêutica do descentramento e do adiamento do sentido, análoga formalmente à différance derridiana, mas ontologicamente ancorada na promessa escatológica da verdade plena em Deus. A Escritura não é um “centro” estático de presença, mas um campo de interpelação no qual o crente, através da fé (fides qua creditur), é chamado a acolher a Palavra viva, num movimento incessante de adiamento e promessa.

Assim, a fé reformada, tal como concebida por Calvino, antecipa uma ética da diferença: uma disposição de abertura ao sentido que não se possui, mas que se recebe; uma hospitalidade radical à alteridade do Verbo, que, mesmo prometido, nunca é apropriado como propriedade do sujeito. A interpretação da Escritura, nesta perspectiva, é um ato escatológico de esperança e de humildade, no qual a verdade não é capturada, mas aguardada, como dom gracioso daquele que se revela e, ao mesmo tempo, se oculta no texto sagrado.

Este horizonte hermenêutico, que reconhece o adiamento do sentido e a necessidade do testemunho interno para a verdadeira recepção da Palavra, contrasta frontalmente com certas manifestações contemporâneas do fundamentalismo religioso, particularmente no contexto brasileiro. Ao defender de maneira acrítica a inerrância das Escrituras como se fosse possível uma apreensão imediata, literal e isenta da mediação espiritual, o fundamentalismo trai tanto a natureza da Escritura como sacramentum do Verbo quanto a estrutura teológica da fé como abertura escatológica. Ao reduzir a Escritura a um objeto de posse intelectual ou a uma coleção de proposições transparentes ao intelecto natural, o fundamentalismo reinstaura precisamente a metafísica da presença que tanto Calvino quanto, em outra chave, a filosofia da diferença desconstruíram. A pretensão fundamentalista de fixar o sentido da Escritura em interpretações rígidas, invariáveis e autorreferenciais ignora que, para Calvino, a verdadeira autoridade da Palavra não é capturada pela letra nem dominada pelo entendimento humano natural. A Palavra é viva, eficaz, e sua clareza não elimina, mas intensifica, a dependência radical do Espírito. Longe de constituir um objeto fechado e autossuficiente, a Escritura, como locus da interpelação divina, exige do crente uma disposição de hospitalidade ao mistério, à alteridade e à promessa. A fé reformada, nessa perspectiva, não se confunde com a segurança dogmática da letra morta, mas floresce na tensão escatológica entre o já da revelação e o ainda não da plenitude. Contra toda tentação fundamentalista, é preciso reafirmar que, como dizia Calvino, “a Escritura não brilha a não ser para aqueles cujos olhos foram abertos pelo Espírito” (Institutas I.6.2).

Referências
BARTH, Karl. Church Dogmatics, Volume I/1: The Doctrine of the Word of God. Translated by G. W. Bromiley. Edited by G. W. Bromiley and T. F. Torrance. Edinburgh: T&T Clark, 1975.​
MULLER, Richard A. The Unaccommodated Calvin: Studies in the Foundation of a Theological Tradition. New York: Oxford University Press, 2001.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

O Trabalho como Sinal da Graça: O Espírito que não Cruzou o Atlântico

A construção de uma imagem biográfica de João Calvino (1509–1564) como um trabalhador compulsivo — ou, nos termos contemporâneos, um workaholic — encontra respaldo nas análises de Max Engammare, especialmente em seu ensaio incluído na coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009. Engammare (2011) descreve um Calvino cuja vida era marcada por uma meticulosa organização do tempo, disciplina ferrenha e uma dedicação incansável ao trabalho teológico e pastoral, mesmo diante de severos problemas de saúde. Acordando por volta das quatro da manhã, Calvino lia e escrevia ainda na cama, dedicava-se à pregação diária em semanas alternadas, ministrava duas pregações aos domingos, lecionava teologia, participava do Consistório e de reuniões do “Petit Conseil”, além de manter uma vasta correspondência e uma produção exegética constante. Mesmo em seus últimos dias, debilitado por dores físicas que incluíam febre, cálculos renais, úlcera estercoral e possíveis sintomas de tuberculose, ele insistia em manter sua rotina, sendo por vezes levado à cátedra nos braços. Essa autoimposição de uma disciplina absoluta do tempo, da produção e do corpo revela não apenas uma subjetividade religiosa austera, mas configura um “tipo ideal” que ecoa profundamente as análises de Max Weber sobre o ethos protestante.

Em “A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo”, Weber (2004) busca compreender o fenômeno do desenvolvimento capitalista não apenas como estrutura econômica, mas como cultura — como “espírito” (Geist), isto é, como uma conduta racional de vida enraizada em fundamentos morais e simbólicos de natureza religiosa. O que Weber identifica no calvinismo é a emergência de uma ascese racional e intramundana, na qual o mundo não é rejeitado como no ascetismo monástico medieval, mas abraçado como campo de exercício da vocação religiosa (Beruf), expressão da vontade divina. Para o indivíduo calvinista, cuja salvação está predeterminada por um decreto absoluto e inescrutável de Deus, resta apenas lançar-se ao trabalho metódico, disciplinado e contínuo como sinal indireto de pertença ao número dos eleitos. A ansiedade espiritual gerada pela doutrina da predestinação não encontra alívio na confissão ou no sacramento, mas apenas na produção de sinais exteriores de graça: uma vida ética irrepreensível, marcada pela produtividade, frugalidade e responsabilidade.

Nesse ponto, seria possível sugerir, de forma provocativa, que o calvinismo tal como descrito por Weber — enraizado em uma ascese racionalizada, em uma ética do trabalho metódico e na interiorização angustiada da eleição divina — jamais encontrou terreno fértil no Brasil. Em solo brasileiro, as manifestações históricas de tradição reformada tenderam a perder esse componente ascético rigoroso, diluindo-se em espiritualidades mais afetivas, comunitárias ou adaptativas, distantes da rigidez produtivista que caracterizou o tipo ideal analisado por Weber.

A propósito, essa forma de vida analisada por Weber (2004) difere substancialmente de outras expressões do protestantismo. O luteranismo, por exemplo, embora conserve o conceito de vocação, enfatiza a aceitação passiva da condição em que se nasce, e não uma busca ativa por comprovação da salvação através de obras. Já o metodismo valoriza experiências emocionais intensas de regeneração pessoal, produzindo um tipo de religiosidade que, embora disciplinada, está muito mais ligada à certeza afetiva do perdão do que à conduta sistemática. Os anabatistas, por sua vez, tendem à separação radical do mundo, valorizando comunidades igualitárias e puras, o que os distancia da valorização intramundana do trabalho característico do calvinismo weberiano.


O caso biográfico de Calvino, portanto, torna-se emblemático. A compulsão produtivista de seu cotidiano, seu desprezo pelo lazer e a administração meticulosa do tempo, relatadas por Engammare (2011), parecem encarnar perfeitamente a Lebensführung que Weber identificou como matriz cultural do capitalismo moderno. Contudo, há tensões e nuances importantes. Calvino não viveu em um contexto de economia capitalista madura, nem visava promover a acumulação de capital; sua ética visava a glorificação de Deus e a edificação da comunidade cristã. O desprezo ao luxo e à ostentação, bem como a valorização da austeridade, indicam uma contenção moral da lógica do consumo, algo que Weber reconhece, mas também relativiza ao observar como tais traços foram secularizados ao longo do tempo.

Na coletânea organizada por Irena Backus e Philip Benedict, esse debate é retomado com cuidado e certa desconfiança em relação às teses weberianas. Os editores afirmam que “as últimas gerações de pesquisa tornaram implausíveis as grandes teorias que atribuíam ao calvinismo um papel motor da modernidade e do capitalismo”. Tal ceticismo não nega a força do argumento de Weber, mas propõe um reposicionamento historiográfico: mais do que deduzir o capitalismo do pensamento calvinista, importa compreender a diversidade interna do calvinismo, suas formas de recepção e reelaboração ao longo dos séculos. É nesse espírito que textos como o de Richard Muller examinam os desenvolvimentos da teologia reformada pós-Calvino, mostrando como seus seguidores moldaram doutrinas como a predestinação e a ética do trabalho de maneira muitas vezes distinta do próprio reformador. Da mesma forma, John de Gruchy, em seu estudo sobre o calvinismo na África do Sul, revela como diferentes apropriações do legado calvinista puderam servir tanto à teologia da libertação quanto à legitimação do apartheid, colocando em xeque qualquer leitura unívoca do “espírito calvinista”.

Em vista disso, a aproximação entre Calvino e Weber revela-se tanto fecunda quanto problemática. Por um lado, a imagem biográfica do reformador, tal como reconstruída por Max Engammare, oferece uma figura histórica cuja conduta de vida parece exemplificar com notável precisão o ethos ascético e disciplinado descrito por Weber. Por outro, a própria complexidade dessa imagem — marcada por elementos culturais renascentistas, pelo sofrimento físico estetizado e por uma lógica do tempo que é ao mesmo tempo religiosa e performativa — impede sua redução a um tipo ideal unitário. A recepção do calvinismo nos séculos seguintes, conforme argumentam autores como Richard Muller, evidencia um processo de sistematização, endurecimento doutrinário e adaptação cultural que muitas vezes se distancia das intenções originais de Calvino, reconfigurando sua teologia a partir de contextos sociais e eclesiais diversos. Nesse sentido, a hipótese weberiana sobre a relação entre ética protestante e espírito do capitalismo permanece intelectualmente instigante, mas demanda releituras mais sensíveis à pluralidade interna do protestantismo reformado, à historicidade dos conceitos e às mediações culturais e políticas que moldaram — e continuam a moldar — os legados de João Calvino.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (Orgs.). Calvin and his influence, 1509–2009. New York: Oxford University Press, 2011.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Calvinismo como Significante: o jogo da différance

Ou ainda: A tradição teológica como jogo da différance

A leitura desconstrutiva proposta pelo filósofo J. Derrida oferece uma chave teórico-analítica poderosa para interrogar o estatuto epistemológico dos conceitos que circulam na tradição teológica ocidental. Entre esses, o termo “Calvinismo” se destaca não apenas por sua centralidade historiográfica e dogmática, mas também por sua instabilidade semântica e performativa. Longe de nomear uma essência teológica unificada, o Calvinismo é, no horizonte derridiano, um significante atravessado por différance: ele só pode ser compreendido como uma cadeia de traços, de exclusões e de adiamentos de sentido que, ao mesmo tempo que fundam sua inteligibilidade, impossibilitam sua fixação semântica.

Antes de adentrarmos a desconstrução do termo “Calvinismo”, é preciso retornar ao nome que lhe serve de origem: João Calvino. Nascido em 1509, Calvino publicou antes dos trinta anos a primeira edição de Institutio Christianae Religionis (“As Institutas da Religião Cristã”), obra que se tornaria a espinha dorsal do sistema teológico reformado (e o documento fundacional de sua influência duradoura, diga-se de passagem). A partir de sua liderança em Genebra, Calvino não apenas consolidou uma visão sistemática da fé reformada, como também arquitetou uma visão de comunidade eclesial disciplinada, que rapidamente se tornou modelo para outros centros reformados na França, Escócia, Países Baixos, Inglaterra e além.

A propósito, Calvino combinava formação jurídica com erudição teológica autodidata. Sua prática pastoral foi marcada por uma disciplinarização rigorosa da vida eclesial, pelo engajamento nas estruturas civis da cidade de Genebra e por uma percepção profética de sua própria missão: reformar a cristandade. Contudo, sua influência jamais foi homogênea. Desde os primórdios, Calvino foi simultaneamente reverenciado e combatido, e as leituras de suas obras produziram tradições diversas que rapidamente escaparam ao seu controle direto. Como bem registra a introdução da coletânea Calvin and His Influence, 1509–2009, os próprios termos “Calvinismo” e “Calvinista” emergiram como designações polêmicas, muitas vezes atribuídas por opositores, e passaram a circular com sentidos variáveis conforme as disputas doutrinárias, institucionais e geográficas.


Importa, desde já, distinguir cuidadosamente entre Calvino enquanto sujeito histórico — autor, pastor, teólogo e cidadão de Genebra — e o termo “Calvinismo”, que não designa diretamente o conjunto de suas ideias, mas um efeito discursivo posterior. Calvino produziu textos, pregou sermões, interveio em disputas eclesiásticas, mas o “Calvinismo” é uma construção que emerge da recepção e reelaboração de sua figura e de sua obra ao longo de diferentes momentos históricos. O nome de Calvino passa a operar, assim, como um ponto de condensação simbólica em debates que ele próprio não anteviu, e sua imagem se torna ela mesma um traço — uma inscrição estratégica num campo de disputas sempre em transformação.

Essa distinção é central para uma leitura desconstrutiva: o “Calvino histórico” não pode ser plenamente recuperado, pois tudo o que dele nos resta são registros textualizados, mediados, interpretados etc. O “Calvinismo”, por sua vez, é o nome de um significante que se constitui por deslocamento — ele remete a Calvino ao mesmo tempo que o distancia, reinscrevendo-o em novos jogos de sentido. Assim, não se trata de perguntar se determinado conteúdo é “fiel a Calvino”, mas de analisar como o nome Calvino é mobilizado para organizar posições teológicas, identidades confessionais ou fronteiras doutrinárias. O Calvinismo, nesse sentido, não é extensão linear de uma origem, mas efeito de um jogo — e esse jogo é o próprio campo da tradição.

O gesto desconstrutivo exige, portanto, que se abandone a busca por um centro originário e se escute o jogo de diferenças que possibilita a circulação do sentido. “Calvinismo”, nesse registro, não é o nome de uma doutrina, mas o ponto de inflexão de uma série de disputas, negociações, reiterações e recusas. A análise de Richard A. Muller em Calvin and the Reformed Tradition é exemplar nesse sentido: ao recusar tanto a identificação direta entre Calvino e os desenvolvimentos ortodoxos quanto a narrativa simplificadora de uma oposição entre Calvino e os calvinistas, Muller propõe compreender o Calvinismo como uma tradição polifônica, em que diferentes vozes dialogam, disputam e se desdobram em direções muitas vezes incongruentes. O Calvinismo não é um bloco; é um arquivo.

Essa mesma instabilidade é registrada pela introdução do volume Calvin and His Influence, 1509–2009, de Irena Backus e Philip Benedict. Os autores mostram que o termo “Calvinismo” foi, desde suas primeiras ocorrências na década de 1540, utilizado em sentidos diversos e frequentemente polêmicos. Inicialmente empregado por opositores, como no caso dos berneses que criticavam a teologia eucarística de Lausanne, o termo designava mais uma posição controversa do que uma identidade positiva. Em contextos posteriores, “Calvinismo” é associado à predestinação, à perseguição dos hereges, à disciplina eclesiástica genevense, à ortodoxia doutrinária do século XVII, ou ainda à cultura moral do puritanismo. Cada um desses usos reinscreve o termo numa nova cadeia de traços, e, com isso, produz um deslocamento do centro de sentido.

A desconstrução derridiana opera, então, não como anulação do conceito, mas como exposição de seu funcionamento diferido. O Calvinismo é uma cadeia de significantes cuja inteligibilidade depende de oposições contingentes: Calvinismo/Luteranismo, Calvinismo/Catolicismo, Calvinismo/Arminianismo, Calvinismo/Zwinglianismo. Nenhum desses pares é estável: em cada contexto histórico, as fronteiras se deslocam, os antagonismos se reformulam, os significados se contaminam. A tradição reformada não é um sistema fechado de proposições, mas um campo discursivo em constante rearticulação.


O estudo de Muller reforça esse ponto ao demonstrar que conceitos centrais do sistema reformado, como expiação limitada, predestinação, união com Cristo e ordem da salvação (ordo salutis), foram tratados de forma diversa por teólogos como Beza, Amyraut, Du Moulin, Ursinus, Perkins e Olevianus. Mesmo dentro da ortodoxia reformada, não há unidade doutrinária absoluta: há tensões, deslocamentos, disputas hermenêuticas etc. Isso é evidência da operação do traço: cada afirmação dogmática é também a exclusão de uma possibilidade que foi deixada de lado, mas que continua a assombrar a estrutura.

A edição de Backus e Benedict reforça esse gesto ao mostrar como o Calvinismo foi apropriado e reconfigurado nos Países Baixos, na França, na Escócia, na Inglaterra, na Polônia e na África do Sul. Cada contexto nacional reconstruiu o Calvinismo segundo suas próprias lógicas institucionais e teológicas. A figura de Calvino, inclusive, foi deslocada, ampliada, condensada, fragmentada. Em muitos casos, como mostra a recepção genevense, Calvino não é o centro, mas um dos polos numa constelação de autores, como Farel, Beza, Bullinger e Vermigli. E mesmo quando Calvino é celebrado, como no Monumento da Reforma de 1909, ele é rodeado por outros nomes, em um gesto que tanto o consagra quanto o descentraliza.

Derrida insistiria: o desejo de centro não desaparece, mas é constantemente frustrado pela diferença que o constitui. O Calvinismo se constitui pela ausência de um fundamento pleno. Ele é sempre já outro: não o pensamento de Calvino, mas sua releitura; não uma doutrina fixa, mas um conjunto de diferenciações. O uso do termo é sempre político: serve para afirmar identidades, excluir heresias, disciplinar práticas, organizar poder. Mas esse uso não escapa à contaminação. Toda identidade calvinista é instável, toda ortodoxia é marcada pela ausência de origem.

Desconstruir o Calvinismo é, pois, desestabilizar seu uso como essência e reinscrevê-lo como estratégia discursiva. Não se trata de negar a tradição reformada, mas de ler seus textos com escuta atenta ao que excluem, ao que diferem, ao que apenas insinuam. O gesto é teológico e político. O Calvinismo, como qualquer significante teológico, é um nome em jogo. E nesse jogo, não há vitória final, mas apenas a exigência de responsabilidade pela maneira como nomeamos o que cremos.

A presença do Calvinismo no centro da cadeia de significantes proposta em nossa ilustração não deve ser compreendida como um reconhecimento de sua primazia ontológica ou teológica, mas sim como um recurso analítico crítico. Derrida nos lembra que o centro, em qualquer estrutura, é uma função e não uma substância: ele organiza o jogo das diferenças sem se confundir com um ponto fixo de origem. O Calvinismo, nesse sentido, ocupa o centro apenas porque sua inteligibilidade é constantemente mobilizada em oposição a outros discursos — é no contraste com o Catolicismo, o Luteranismo, o Arminianismo e o Zwinglianismo que ele adquire contornos momentaneamente estáveis. O centro do diagrama não expressa fundação, mas o campo em que os deslocamentos semânticos são mais visíveis.

Esse arranjo visual revela, portanto, o modo como o Calvinismo funciona como um significante saturado: ele condensa uma multiplicidade de traços, posições e disputas que se atualizam na medida em que ele é reinscrito em diferentes contextos históricos. O centro é, nesse caso, o lugar onde o jogo se mostra com maior intensidade — e não onde ele se interrompe. O centro gráfico do Calvinismo é o lugar do conflito semântico, da tensão histórica e da produção incessante de sentido. Sua centralidade é estratégica e irônica: ao mesmo tempo que parece estruturar, ele se desfaz em différance.

Referências
DERRIDA, Jacques. A escrita e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (orgs.). Calvin and His Influence, 1509–2009. Oxford: Oxford University Press, 2011.​
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.​

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A União com Cristo e a Crise da Teologia Sistemática

A doutrina da união com Cristo (unio cum Christo) constitui o fulcro da soteriologia reformada e, ao mesmo tempo, o ponto de tensão mais agudo entre a teologia de João Calvino (1509–1564) e seus desdobramentos na ortodoxia reformada subsequente. Longe de ser apenas um conceito devocional ou metafórico, trata-se, para Calvino, de uma realidade ontológica e espiritual que estrutura toda a experiência da salvação. Tal abordagem, no entanto, não se preserva inalterada nos séculos seguintes, especialmente com o desenvolvimento da ordo salutis na escolástica protestante, culminando em debates teológicos e filosóficos que atravessam a modernidade e desembocam nas atuais reconfigurações da teologia sistemática.

Desde o início do Livro III das Institutas da Religião Cristã (1559), Calvino insiste que todo o valor redentor da obra de Cristo permanece inócuo enquanto ele estiver fora de nós (extra nos, Institutas, III.1.1). A mediação do Espírito Santo realiza, assim, uma verdadeira incorporação espiritual: a fé não é apenas um assentimento, mas uma participação vivificante. Calvino fala de Cristo como o receptáculo do Espírito, de quem recebemos toda a plenitude dos dons (Institutas, III.1.2). Em sua teologia, justificação, adoção, santificação e glorificação são aspectos derivados dessa união fundamental. Mais ainda: essa união é a forma concreta pela qual o crente participa de Cristo, num modelo fortemente trinitário, no qual o Pai concede o Filho, o Filho se entrega a nós, e o Espírito nos une a ele. Não se trata, portanto, de mera sequência espiritual, mas de uma teologia da habitação, do envolvimento pessoal e do engajamento sacramental, em que o batismo e a ceia têm valor porque ratificam e alimentam a realidade dessa união.

Ao contrário do que é frequente nos sistemas teológicos posteriores, Calvino não organiza os benefícios da salvação como uma cadeia causal rigidamente ordenada, mas como frutos simultâneos de um mesmo evento relacional. Não há, portanto, ordo salutis no sentido estrito: há um Christus totus, cujos benefícios são comunicados pela fé mediante o Espírito. O elo ético entre a justificação e a santificação, tantas vezes dissecado pela ortodoxia posterior, não se expressa em termos de precedência lógica ou ontológica, mas de simultaneidade espiritual. O mesmo Cristo que nos justifica nos santifica e nos glorifica, não por etapas estanques, mas por uma operação viva do seu Espírito em nós.

Com a consolidação da ortodoxia reformada nos séculos XVII e XVIII, especialmente com teólogos como Johannes Wollebius (1586–1625), Francis Turretin (1623–1687) e Petrus van Mastricht (1630–1701), ocorre uma sistematização da doutrina da salvação em termos lógico-causais. A influência das categorias aristotélicas – causa eficiente, formal, final e material – é notável. A ordo salutis emerge, nesse contexto, como tentativa de clarificar a aplicação temporal dos decretos eternos. Mesmo autores como William Perkins (1558–1602) ou William Ames (1576–1633), ainda próximos de Calvino, já esboçam uma catena aurea que, embora baseada na Escritura, se aproxima de uma teleologia hierárquica e causal.

Richard A. Muller, em sua reinterpretação historiográfica da ortodoxia reformada, argumenta com pertinência que a escolástica não representa uma corrupção da teologia reformada, mas um refinamento metodológico. Muller demonstra que o termo ordo salutis só surge tecnicamente no século XVIII, mas a estrutura causal já estava presente em exegeses como a de Romanos 8:29–30. Sua contribuição é decisiva para desmontar o clichê da ruptura entre Calvino e os calvinistas. Todavia, seus limites também são evidentes: ao enfatizar a continuidade institucional e metodológica, Muller por vezes negligencia as inflexões espirituais e existenciais que a teologia da união com Cristo comporta. O risco é que, ao salvar a reputação intelectual da ortodoxia protestante, se perca de vista o dinamismo relacional que estruturava a espiritualidade de Calvino.

Nesse ponto, é importante considerar o contraste metodológico entre a abordagem de Muller (2012) e a perspectiva proposta por Calvin and His Influence, 1509–2009. Enquanto Richard A. Muller se ancora em uma história das doutrinas com forte atenção ao desenvolvimento sistemático (e à precisão conceitual, diga-se de passagem), a coletânea organizada por Irena Backus e Philip Benedict adota um enfoque mais amplo, cultural e hermenêutico, voltado para a história da recepção e das transformações do calvinismo como conceito e fenômeno social. A obra insiste na importância da Begriffsgeschichte (história dos conceitos) e desconfia das tendências a essencializar ou identificar linearmente Calvino e calvinismo. Tal diferença metodológica permite que o volume explore a pluralidade dos legados calvinistas, inclusive seus usos políticos e ideológicos em contextos como o apartheid sul-africano, indo além do escopo estritamente dogmático. Enquanto Muller reconstrói os nexos internos da tradição reformada em termos teológicos, Calvin and His Influence desloca a questão para o campo das disputas sobre interpretação, memória e identidade confessional.

Com a modernidade, a estrutura que sustentava a ordo salutis – baseada em uma metafísica da essência, da causalidade e da teleologia – é profundamente abalada. Desde Immanuel Kant (1724–1804) e sua crítica à razão pura, passando por Friedrich Nietzsche (1844–1900) e Martin Heidegger (1889–1976), até os desdobramentos da hermenêutica filosófica (Hans-Georg Gadamer [1900–2002], Paul Ricoeur [1913–2005]) e da filosofia da linguagem (Ludwig Wittgenstein [1889–1951]), ocorre uma erosão da ideia de fundamento estável. O colapso da metafísica é, portanto, também o colapso de uma ontologia teológica que presumia uma ordem fixa e inteligível na relação entre Deus e o ser humano. A ordo salutis, enquanto estrutura causal dedutiva, torna-se cada vez mais estranha à sensibilidade contemporânea, não apenas em função de mudanças filosóficas, mas também pela desconfiança ética diante de sistemas que pretendem encerrar o mistério do agir divino em esquemas fechados.


Neste contexto, os conceitos clássicos da teologia sistemática reformada sofrem com a perda de sua inteligibilidade cultural. A ordo salutis perde seu vigor explicativo, pois não há mais base ontológica comum para sustentar uma cadeia causal da redenção. A tentativa de preservar o esquema mediante categorias dogmáticas torna-se insustentável sem revisão epistemológica. A própria linguagem de benefícios ou aplicação da redenção torna-se passível de crítica, ao pressupor uma estrutura do sujeito e do objeto que os pensadores contemporâneos colocam sob suspeita. Não se trata apenas de uma mudança de linguagem, mas de uma desconstrução da gramática teológica que sustentava toda uma cosmologia redentora. A crítica pós-estruturalista torna esse ponto ainda mais agudo: teólogos como Jean-Luc Marion (Dieu sans l'être), Gianni Vattimo (Credere di credere) e John Caputo (The Weakness of God) desestabilizam as categorias clássicas da presença, da soberania e da essência, propondo uma teologia do dom (donum), da fraqueza (kenōsis) e da desconstrução como paradigmas alternativos à teologia da glória. A ordo salutis, nesse horizonte, não é apenas um modelo arcaico: é um índice de um regime teológico de controle, que submete a liberdade do dom à lógica da previsibilidade e da estruturação metafísica.

Diante desse impasse, surgem alternativas que buscam recuperar a densidade da doutrina da salvação sem recorrer a sistemas causais. Muitas dessas propostas têm em comum a revalorização da unio cum Christo como categoria estruturante. Autores como Thomas F. Torrance, James K. A. Smith, John Zizioulas e Miroslav Volf propõem modelos de participação ontológica, narrativa ou eclesial da salvação. Em vez de uma sequência ordenada de atos, a salvação é compreendida como evento relacional, escatológico e comunitário. A encarnação, morte e ressurreição de Cristo são lidas não como marcos de um itinerário moral, mas como a irrupção de uma nova ontologia do ser, fundando não apenas uma nova economia da graça, mas também uma nova hermenêutica da esperança e da participação.

Tal deslocamento permite recuperar aspectos esquecidos da tradição reformada, como a centralidade do culto, da ceia, da vida comunitária e da tensão entre justificação e santificação não como fases, mas como dimensões coexistentes da vida em Cristo. Aqui, a tradição reformada reencontra, no coração da sua espiritualidade, os traços de uma teologia do dom e da presença, cuja inteligibilidade teológica só se sustenta a partir de uma ontologia participativa, relacional e escatológica.

Essas críticas não devem ser ignoradas por quem deseja repensar a teologia reformada em chave contemporânea. Ao invés de apego defensivo à forma escolástica, é preciso retornar ao nervo vivo da tradição: a união com Cristo como forma plena da salvação. Tal retorno não é regressivo, mas antecipatório, porque reencontra, no coração da tradição, os recursos para atravessar a crise da modernidade. A precisão histórica nos impede de romantizar Calvino ou demonizar os escolásticos reformados. Ambos são filhos de seu tempo, respondendo a desafios distintos. No entanto, é possível afirmar que a tensão entre uma teologia da relação e uma teologia do sistema permanece vigente. Reconhecer os limites do modelo causal não é abandonar a ortodoxia, mas retornar à sua fonte vital: o Cristo vivo, unido ao seu povo por graça, no Espírito, na história e na esperança.

Referências
BACKUS, Irena; BENEDICT, Philip (org.). Calvin and His Influence, 1509–2009. New York: Oxford University Press, 2011.
MULLER, Richard A. Calvin and the Reformed Tradition: On the Work of Christ and the Order of Salvation. Grand Rapids: Baker Academic, 2012.

domingo, 20 de abril de 2025

A Ressurreição como Acontecimento Político-Teológico

Entre o Kairós e a Crise

A ressurreição de Jesus constitui, na tradição cristã, o evento por excelência — acontecimento a desestabilizar as categorias da história e da linguagem, da política e da teodiceia, da experiência e da promessa. Ela não se apresenta como um fato bruto a ser objetivamente verificado (cf. Mc 16,6), nem tampouco como uma metáfora inofensiva a ser dissolvida em subjetivismo. Trata-se, antes, de um acontecimento escatológico que irrompe da margem da história (e a reconfigura a partir de sua fratura interna), instaurando uma nova ontologia do tempo e da existência. A distinção entre o modo e o significado da ressurreição, tal como desenvolvida por John Dominic Crossan, revela-se aqui um instrumento hermenêutico de grande potência. Ao invés de restringir a ressurreição a um debate sobre sua literalidade (ou factualidade empírica), o que está em jogo é a capacidade dessa afirmação pascal de instaurar um mundo outro, uma ontologia alternativa, uma nova economia do desejo e da linguagem, enraizada em uma promessa escatológica que suspende e desafia a ordem do presente.

Nessa perspectiva, a afirmação “Cristo ressuscitou” não aponta para uma reanimação biológica (ou para um retorno espetacular à cena da história), mas para um acontecimento teológico de descontinuidade radical (cf. 1Cor 15,12-28). Ao dizer que o crucificado ressuscitou, afirma-se que o mundo está, desde então, sob o juízo e a promessa de um Outro que não se submete às lógicas do poder, da violência nem às narrativas da morte. A Páscoa não confirma o sentido linear da história; ela o desmente. Onde a ordem estabelecida via fracasso, Deus instaurou o começo. Essa inversão opera não apenas no plano espiritual, mas atinge em cheio o núcleo das estruturas sociopolíticas e simbólicas. A ressurreição, nesse sentido, não pode ser reduzida a uma experiência interior ou a uma projeção subjetiva do desejo humano por transcendência. Se há transcendência aqui, ela é a da justiça — uma justiça escatológica que exige corporeidade (cf. Rm 6,5), que restitui os humilhados e que confronta os dispositivos de morte em suas múltiplas expressões políticas, econômicas e teológicas.

Nesse horizonte, a ressurreição não pode ser instrumentalizada por agendas religiosas que desejam legitimar o poder soberano. A tentação constante da publicização da fé pascal em contextos seculares, sobretudo quando mediada por discursos teocráticos e sacralizantes do Estado, desfigura sua radicalidade escatológica e messiânica. A autoridade conferida ao Ressuscitado — e, por extensão, à sua eclésia —, segundo o testemunho sinótico, não é constituída pelas mediações institucionais (ou pela soberania jurídico-política), mas é compreensível somente sob o brilho da cruz. O Ressuscitado inaugura uma ἐξουσία (exousía) que é κενωτική (kenōtikḗ), oblativa, diaconal — uma autoridade que se realiza na vulnerabilidade, no discipulado, na renúncia e na proclamação escandalosa de um Reino cuja natureza é irreconciliável com as formas profanas de soberania. A fé pascal resiste, portanto, tanto à laicidade liberal que relega a religião ao âmbito do privado, quanto ao fundamentalismo religioso que instrumentaliza a cruz para fins de hegemonia cultural.

A fé da Igreja primitiva nasce da proclamação querigmática de que Jesus de Nazaré foi ressuscitado por Deus (cf. At 2,24), e que esse evento é a verificação escatológica da fidelidade divina à promessa. Essa proclamação não tem como referente apenas um dado biográfico, mas configura uma nova gramática teológica, a partir da qual a história é lida de forma escatológica. A ressurreição inaugura uma nova temporalidade, aquilo que Louis Martyn designa como invasão do tempo pelo evangelho, e que Giorgio Agamben interpreta como o tempo messiânico, o καιρός (kairós) que interrompe o χρόνος (chrónos). Nessa nova estrutura temporal, a comunidade dos crentes se constitui como espaço provisório de antecipação escatológica: corpo político da nova criação, mas ainda inserido no velho mundo. Por isso, sua vocação é também resistência. Ela não legitima o presente; ela o confronta, como presença de uma alteridade que o mundo não pode suportar.

Essa dimensão confrontadora da fé pascal encontra ressonância em Paulo de Tarso, cuja teologia apocalíptica, segundo Martyn, não pode ser reduzida a um espiritualismo ético ou a um projeto moral. O Cristo ressuscitado que Paulo anuncia não é o mesmo que viveu “segundo a carne” (cf. 2Cor 5,16); trata-se de uma nova realidade ontológica, inseparável da reconfiguração subjetiva de Paulo como testemunha de uma nova criação. Ao afirmar que a “aparência deste mundo passa” (1Cor 7,31), Paulo está anunciando o colapso da ontologia imperial, a desconstrução do cosmos antigo e o surgimento de uma nova economia existencial fundada na justificação pela graça. Aqui, a fé pascal opera como uma gramática disruptiva, que desmonta os pares morais binários e propõe uma nova forma de subjetividade — marcada por despossessão, hospitalidade, gratuidade e resistência.

Nesse sentido, a ressurreição de Jesus não é um evento privado, mas o início de uma transformação coletiva e cósmica. Tal como sugerem os ícones orientais que retratam o Ressuscitado rompendo as portas do Hades e libertando os justos do passado, trata-se de um acontecimento corporativo, não individualista. A ressurreição inaugura o tempo da comunidade messiânica, que se constitui como corpo social alternativo — não no sentido de separação sectária do mundo, mas como espaço de antecipação escatológica do Reino. Essa comunidade se realiza na prática da partilha, no gesto de partir o pão, na solidariedade com os pobres, na recusa da violência, na hospitalidade aos estrangeiros e na resistência aos dispositivos biopolíticos que governam a vida nua. Ela é o espaço do já-e-ainda-não: já redimida pelo Cristo, ainda ferida pelo mundo.



A teologia contemporânea, especialmente aquela que dialoga com a filosofia política continental, tem interpretado essa dimensão como um gesto subversivo que põe em xeque os fundamentos ontoteológicos da soberania moderna. A ressurreição de Cristo — compreendida como evento que desarticula o poder da morte e da exclusão — subtrai-se às categorias da representação e da legalidade. A tradição messiânica de Paulo, resgatada por autores como Badiou, Agamben e Žižek, revela que o evento pascal inaugura uma universalidade singular, irreconciliável com o universalismo formal do direito moderno. A fidelidade ao acontecimento da ressurreição implica um engajamento existencial que subverte os mecanismos de inclusão e exclusão, introduzindo uma nova economia do ser: aquela da graça, da reconciliação e da justiça.

Essa universalidade não se realiza por meio da normatividade de um sistema moral ou jurídico, mas por meio da convocação a uma subjetividade messiânica — aquela que, vivendo “como se não” ( ὡς μὴ [hōs mē]), encarna uma existência provisória, peregrina e apocalíptica. Essa subjetividade não se identifica com nenhuma forma de poder constituído, mas permanece como figura messiânica no seio de um mundo em colapso. A ressurreição, nesse horizonte, é evento de crise: crise para a história, crise para a linguagem, crise para a teologia. Ela exige um novo léxico, uma nova imaginação, uma nova ontologia. Como observou Dietrich Bonhoeffer, a Igreja não existe para si mesma, mas para o mundo: sua vocação é desaparecer como forma de poder, para que o Reino de Deus se manifeste em toda a sua plenitude.

Dizer que Cristo ressuscitou é proclamar que o mundo não está condenado à repetição da injustiça. É afirmar que a cruz não foi a última palavra. É convocar a comunidade dos discípulos à insurreição da ternura, à práxis do Reino, à resistência contra a naturalização da morte. Aqui ecoa o grito de Rubem Alves: “O corpo de Cristo continua crucificado. A criação é um gemido. E nós gememos [de dor] também...”. A ressurreição, nesse sentido, é também solidariedade histórica com os crucificados do presente. Como lembra Jon Sobrino, a ressurreição de Jesus é a confirmação definitiva de que Deus está com os pobres e crucificados da história — e que neles a esperança não será envergonhada. Nesse sentido, a fé pascal não pode ser capturada por nenhum projeto ideológico, pois ela excede todas as formas de instrumentalização. Sua verdade só se manifesta na carne concreta dos corpos restaurados, das relações reconciliadas, da terra regenerada. A ressurreição é o começo de uma nova criação, cuja manifestação plena ainda está por vir, mas cujos sinais já irrompem nas brechas do presente. A Igreja, como corpo do Ressuscitado, é chamada a viver sob esse signo: entre o já e o ainda não, entre a cruz e a glória, entre a memória do sofrimento e a esperança da plenitude. Essa é sua vocação pascal. Essa é sua responsabilidade escatológica. Feliz Páscoa!

Entre a Palavra e o Rito:

 A beleza da forma no pensamento de Calvino O protestantismo evangélico brasileiro desenvolveu, ao longo de sua trajetória, uma espiritualid...