domingo, 27 de outubro de 2024

Autenticidade e governança espiritual: Uma análise foucaultiana das “notae ecclesiae” em Calvino

A teoria das assinaturas proposta pelo filósofo Giorgio Agamben em Signatura Rerum articula uma abordagem teórico-arqueológica que examina como certos “marcadores” ou signaturas invisíveis estruturam o saber e o ser, orientando o que se torna visível e inteligível. Inspirado na arqueologia foucaultiana, Agamben expande o conceito de dispositivo ao integrar uma camada de intervenção que configura (e regula) os discursos e práticas em níveis epistemológicos e ontológicos. Para ele, as signaturas são mais do que marcas externas; são índices ocultos que exercem uma função estruturante, organizando o que pode ser visto e conhecido. Na esfera epistemológica, as signaturas atuam como limites que condicionam o campo de percepção e conhecimento, determinando o que é interpretável e experienciável. No nível ontológico, elas condicionam modos de vida e formas-de-ser ao inscreverem os indivíduos em uma rede de significados e práticas que escapam à visibilidade imediata, mas que regulam suas existências em níveis profundos e normativos.

Agamben aplica a teoria das assinaturas ao longo de sua obra para desconstruir dispositivos de controle e normatização contemporâneos, explorando a relação entre o visível e o invisível e revelando o potencial subversivo das signaturas. Em O Reino e a Glória, por exemplo, ele examina como o poder soberano e a economia teológica da governança são regulados por signaturas que estruturam o campo da biopolítica (e definem os limites de inclusão e exclusão na sociedade). O conceito de oikonomia, central para sua argumentação, refere-se a uma economia de governo que transcende a organização material para abranger uma regulação providencial dos visíveis e invisíveis, onde o controle é exercido de maneira indireta e, por isso, mais profunda e duradoura. Agamben argumenta que as signaturas operam dentro desse sistema econômico como dispositivos de autenticação e regulação, que, ao serem desvelados, podem ser reconfigurados, permitindo uma resistência às normas e dispositivos que controlam os corpos e subjetividades. Esse potencial subversivo das signaturas é fundamental na crítica agambeniana, pois ao expor a função reguladora das signaturas, é possível imaginar novas configurações do saber e do ser, libertas dos dispositivos normativos e de controle.

A análise das signaturas em Agamben, ao ser colocada em diálogo com a noção de “marcas” (notae) utilizada por João Calvino nas Institutas da Religião Cristã (1559), revela tanto afinidades quanto divergências fundamentais. Calvino, ao definir as marcas da igreja verdadeira, utiliza o conceito de maneira normativa e reguladora, em um esforço para assegurar a continuidade, autenticidade e unidade da fé reformada. Em um período de intensas disputas teológicas e fragmentação religiosa, as marcas servem como dispositivos estabilizadores e normativos que identificam a verdadeira igreja e diferenciam os fiéis autênticos dos desviantes. Para Calvino, as marcas não são meros sinais externos, mas garantias de autenticidade e pertencimento espiritual. Ele identifica a pregação pura da Palavra e a administração correta dos sacramentos como as principais marcas da igreja, afirmando que “onde quer que vejamos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida e os sacramentos administrados segundo a instituição de Cristo, ali, sem dúvida, está uma igreja de Deus” (Institutas, IV.1.9). Essas marcas, portanto, não são apenas critérios teológicos; elas representam dispositivos que mediam a relação entre o visível e o invisível, conferindo autenticidade à comunidade cristã ao garantir a presença e a ação de Deus dentro da comunidade dos fiéis.

Imagem: DALL-E

Além disso, Calvino aborda a ideia de marca no contexto do “selo do Espírito”, que autentica e confirma a fé dos crentes. Em Efésios 1:13, ele se refere à passagem em que Paulo afirma que “no qual também vós, tendo crido, fostes selados (ἐσφραγίσθητε) com o Espírito Santo da promessa” (Nestle-Aland 28ª edição), interpretando este selo como uma marca espiritual que transcende o entendimento racional e autentica a fé e a reconciliação dos fiéis com Deus. Para Calvino, o selo do Espírito opera como uma confirmação interior e espiritual, um testemunho que assegura a comunhão com Deus e estabelece uma identidade cristã autêntica e estável. Em suas palavras, é o “testemunho interior do Espírito, o qual sela as promessas de Deus em nossos corações” (Institutas, III.2.7), uma presença que organiza a experiência de fé e transforma o crente, indo além de uma simples declaração ou adesão intelectual.

Os sacramentos, para Calvino, funcionam como outras marcas importantes, sendo “sinais e selos” visíveis de uma realidade espiritual que distingue e autentica os fiéis como membros do corpo de Cristo. No batismo e na eucaristia, ele vê um tipo de marca que age não apenas como rito, mas como um selo de pertencimento e de identidade espiritual, onde os fiéis manifestam publicamente sua fé e recebem a confirmação da promessa divina. Em suas palavras, “os sacramentos foram instituídos por Deus como marcas de nossa comunhão em Cristo e, por assim dizer, sinais distintivos de nossa fé cristã” (Institutas, IV.14.1). Esse entendimento sacramental reforça a ideia de que as marcas calvinistas operam como dispositivos normativos que, além de autenticar, delimitam a identidade e a coesão da comunidade cristã frente ao mundo. Esses dispositivos, assim como as signaturas em Agamben, regulam a relação entre o visível e o invisível, funcionando como mediações que traduzem a realidade espiritual em práticas visíveis e concretas.

Em sua reflexão sobre a teoria das assinaturas, Agamben também examina o conceito de sacramento em Santo Agostinho, trazendo à tona o “caráter indelével” que marca o indivíduo por meio de certos rituais, como o batismo, e que transcende a prática visível. Agostinho, em sua polêmica contra os donatistas, argumenta que o sacramento opera independentemente da disposição espiritual do ministro (ou do receptor), apresentando o conceito de baptisma sine spiritu, ou batismo sem espírito, como uma marca que permanece no indivíduo ainda que a graça não seja conferida. Para Agamben, essa indelével marca sacramental é uma signatura que age como um dispositivo de autenticação espiritual, funcionando em um nível que escapa ao controle individual, mas que organiza a relação entre o visível e o invisível na vida religiosa. Tal como as signaturas, o caráter sacramental em Agostinho opera como uma camada ontológica que regula e autentica a subjetividade cristã, configurando o ser e o pertencimento sem depender de uma adesão moral consciente.

A análise de Agamben sobre o sacramento agostiniano ilumina as marcas calvinistas sob uma nova luz, ao explorar como o caráter sacramental opera simultaneamente como símbolo e como uma inscrição reguladora da identidade. Assim como Calvino delineia as marcas da igreja verdadeira para assegurar a autenticidade da comunidade de fé, Agostinho concebe o batismo como uma marca que autentica o pertencimento à fé, independentemente da experiência espiritual imediata. Para Agamben, essa marca sacramental se aproxima do funcionamento das signaturas ao condicionar a identidade cristã através de uma dimensão que ultrapassa o visível e que se inscreve no indivíduo de forma estrutural e permanente. Esse entendimento sugere que o caráter sacramental em Agostinho e as marcas em Calvino não são apenas dispositivos de autenticação, mas camadas que moldam a vida religiosa, criando um campo de regulação onde a autenticidade cristã é mediada pela conformidade a normas espirituais que, ainda que invisíveis, possuem um efeito normativo profundo.

A dialética entre a marca sacramental e as signaturas agambenianas permite, portanto, uma crítica mais robusta dos dispositivos normativos religiosos, ao propor que as marcas, ao invés de meramente estabilizarem a fé, podem também atuar como estruturas de controle. Na perspectiva de Agamben, essas marcas sacramentais operam como um sistema oikonomico de governança espiritual que legitima a subjetividade religiosa, mas que também pode aprisioná-la em normas invisíveis. Desse modo, a comparação entre Agostinho e Calvino sob a ótica das signaturas permite imaginar uma experiência cristã que transcenda o controle normativo desses dispositivos, abrindo espaço para uma vivência espiritual mais inclusiva e plural, onde a autenticidade se realiza não na conformidade, mas na liberdade de modos de ser. Assim, ao desvendar a função reguladora das signaturas e sacramentos, Agamben oferece um caminho para reimaginar a prática cristã e suas marcas, libertando-as dos limites de uma governamentalidade espiritual restritiva e permitindo a emergência de novas formas de vida religiosa.

A análise do conceito de oikonomia (οἰκονομία) em Agamben, ao ser aplicada ao contexto das marcas calvinistas, permite uma compreensão ampliada da função dos sacramentos e das marcas de autenticidade cristã. Agamben descreve a oikonomia teológica como uma “máquina providencial” que regula o visível e o invisível, estruturando o campo das subjetividades por meio de dispositivos que moldam as práticas humanas de maneira difusa e indireta. No contexto calvinista, os sacramentos operam de modo semelhante ao estabelecer uma normatividade que, ainda que discreta, autentica a vida cristã. Agamben sugere, contudo, que esses dispositivos de autenticação, ao serem revelados como signaturas reguladoras, podem inadvertidamente funcionar como estruturas de controle. Se para Calvino essas marcas são essenciais para a coesão e preservação da ortodoxia, a oikonomia de Agamben propõe uma crítica a essa estrutura, destacando como ela também pode moldar a experiência da fé em um campo normativo de controle onde a autenticidade é regulada de maneira invisível.

Essa perspectiva crítica da oikonomia em Agamben aprofunda a análise das marcas calvinistas ao questionar o modo como a governamentalidade espiritual, ao autenticar a subjetividade religiosa, limita a vivência da fé em conformidade com práticas normativas. Enquanto Calvino concebe as marcas como dispositivos que asseguram autenticidade e ortodoxia dentro da comunidade cristã, Agamben sugere que essas mesmas estruturas podem aprisionar a fé em moldes de obediência ritual. Assim, o conceito de baptisma sine spiritu em Agostinho se aproxima da visão agambeniana das signaturas, ao operar como uma marca que, mesmo sem a correspondência direta de fé, condiciona o sujeito em uma rede de pertencimento inescapável, estabelecendo uma relação de autenticação independente da experiência interior da fé. A interpretação de Agamben ilumina, portanto, uma tensão dialética entre a autenticidade como conformidade ritual e uma autenticidade que se realiza na liberdade dos modos de ser.

Esses elementos tornam possível imaginar uma experiência cristã que transcenda o controle normativo, ao reinterpretar as marcas sob a ótica da teoria das assinaturas. Para Agamben, ao desvendar a função reguladora das signaturas e dos sacramentos, é possível abrir a prática cristã para uma vivência mais plural, onde a autenticidade se concretiza menos em padrões visíveis e mais em uma liberdade de formas-de-vida que não dependem exclusivamente da adesão normativa. O diálogo desenvolvido neste texto oferece, então, uma crítica que não pretende destruir a estrutura das marcas, mas libertá-las das limitações impostas pela governamentalidade. Isso permite vislumbrar novas configurações de autenticidade cristã, capazes de resistir ao fechamento doutrinário e de se abrir para a diversidade e singularidade espiritual de cada indivíduo.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum. São Paulo: Boitempo, 2019.
CAL​VINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 1: Livros I e II. São Paulo: Editora Unesp, 2008.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã – Tomo 2: Livros III e IV. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

sábado, 26 de outubro de 2024

Paradigmas, Discursos e Revoluções: A Ontologia da Ressignificação em Agamben

No primeiro capítulo de Signatura Rerum, o filósofo Giorgio Agamben introduz o conceito de paradigma, destacando-o como uma estrutura que organiza o conhecimento e ao mesmo tempo permite sua transformação. A partir das ideias de Thomas Kuhn, Michel Foucault, Martin Heidegger e Platão, Agamben estabelece as bases epistemológicas e ontológicas dessa noção. Nos capítulos seguintes, ele amplia a análise ao explorar o paradigma em contextos de poder e historicidade, incorporando pensadores como Aby Warburg, Walter Benjamin, Franz Overbeck e Georges Dumézil para aprofundar as perspectivas cultural e histórica dessa estrutura.

O paradigma, para Agamben, revela-se não apenas como uma estrutura organizativa e normatizadora, mas como um dispositivo de inteligibilidade que, em sua repetição e normatividade, carrega também o potencial de ruptura e transformação. Esse duplo caráter do paradigma – enquanto estabilizador e desestabilizador – permite a Agamben situá-lo em uma zona de tensão constante, onde a normalidade e a interrupção coexistem de forma produtiva. A inteligibilidade proporcionada pelo paradigma não se sustenta em uma norma fixa, mas em um estado de suspensão, no qual o que é estabelecido está sempre à beira de se transfigurar.

Contudo, o papel do paradigma no pensamento de Agamben vai além de uma simples função epistemológica. Em Signatura Rerum, ele surge como um dispositivo fundamental tanto metodológico quanto ontológico, central para o projeto teórico de Agamben. O paradigma, no sentido mais profundo, atua como uma ferramenta de desarticulação das estruturas normativas da modernidade ocidental, revelando as condições subjacentes que moldam e restringem a vida e o pensamento. A análise paradigmática, assim, insere-se no compromisso de Agamben com a crítica das estruturas de poder e saber que configuram o sujeito e regulam a existência. A estrutura do paradigma, em sua obra, desvela uma dialética de normatividade e suspensão que traz à tona as zonas de indeterminação que permeiam o ser e o saber, possibilitando uma compreensão radical da realidade enquanto espaço de potencialidade.

Agamben começa sua análise com a concepção de paradigma em Thomas Kuhn, que define o termo como fundamento da “ciência normal”, estruturando um conjunto de práticas, problemas e valores aceitos pela comunidade científica. Para Kuhn, o paradigma não é uma regra explícita, mas um modelo que estabiliza o campo científico, possibilitando avanços enquanto a normatividade permanece questionada apenas indiretamente. Essa estabilidade, porém, traz consigo o potencial de ruptura: quando os fenômenos não explicáveis pelo paradigma se acumulam, ocorre uma crise que impulsiona uma revolução científica, onde o paradigma é substituído por um novo conjunto de pressupostos. Agamben vê, nessa oscilação entre estabilidade e substituição, uma tensão central para entender o paradigma, que age como “exemplo paradigmático” – tal como o Principia de Newton, que orientou a física por séculos, o paradigma é um modelo de repetição. Contudo, é justamente essa repetição que expõe suas limitações e o leva a ser ultrapassado, desafiando a normalidade que ele mesmo organiza. Essa interpretação de Kuhn permite a Agamben fundamentar a ideia do paradigma como uma estrutura essencialmente dinâmica e instável, onde a capacidade de adaptação e renovação desafia qualquer concepção rígida de normatividade.

Quando Agamben volta-se a Foucault, o paradigma desvia-se do campo científico para situar-se no centro das práticas sociais e do poder. Embora Foucault evite o termo “paradigma”, preferindo “positividades” e “problematizações”, Agamben argumenta que ele usa um método paradigmático ao analisar dispositivos de poder como o panóptico, que não apenas disciplina corpos e mentes, mas se estrutura como um modelo replicável de normalização social. A vigilância no panóptico opera em uma zona de suspensão: o sujeito não sabe se está sendo observado, o que cria um estado de incerteza que o conduz à autorregulação. A prática de vigilância, então, é uma normatização que ocorre na suspensão, onde o controle é ao mesmo tempo estabelecido e questionado pela dúvida constante. O panóptico é um exemplo claro de como a normalidade pode estar fundamentada numa suspensão – o paradigma estabiliza o comportamento enquanto o mantém instável pela possibilidade de punição invisível. Para Agamben, o paradigma foucaultiano evidencia que o poder disciplinar, tal como o paradigma kuhniano, depende dessa tensão entre presença e ausência, entre a normatização e a possibilidade de ruptura.

Ao incorporar Heidegger, Agamben aprofunda a dimensão ontológica do paradigma, explorando o círculo hermenêutico como uma estrutura paradigmática de pré-compreensão que orienta a interpretação. Em Heidegger, a interpretação nunca é neutra, mas ocorre a partir de uma prática já orientada por uma compreensão anterior. Esse movimento circular contém uma suspensão interna: a interpretação, ao tornar-se consciente de sua limitação, abre-se à possibilidade de uma nova compreensão. O paradigma, então, opera como um “círculo de luz”, que revela o fenômeno sem fixá-lo. Agamben interpreta o círculo hermenêutico como uma prática que ilumina e, simultaneamente, desestabiliza o fenômeno, onde a pré-compreensão se coloca em questão ao confrontar-se com a abertura ao novo. Com Heidegger, Agamben sugere que o paradigma não é apenas uma ferramenta interpretativa, mas uma condição ontológica de possibilidade para a compreensão, que se realiza em um estado de tensão entre a normalidade da compreensão estabelecida e a suspensão que permite a emergência de novos significados.

A análise de Agamben se expande ao resgatar a perspectiva paradigmática platônica, onde o paradigma opera como uma prática suspensa entre o ideal e o real. Platão sugere que o paradigma é um “exemplo de si mesmo”, onde o artesão, ao construir uma cama, intui uma ideia sem necessidade de regras explícitas, participando de uma forma ideal. Esse exemplo é fundamental para Agamben, pois mostra que o paradigma não fixa o sentido na norma, mas o realiza num espaço de indefinição, conectando o particular e o universal. O paradigma platônico não é apenas um caso representativo; ele ilumina tanto a singularidade quanto a totalidade sem reduzi-las uma à outra, possibilitando que o conceito se realize e se transfigure. Para Agamben, o paradigma platônico estabelece-se numa zona de tensão entre prática e ideal, onde a prática normativa é, simultaneamente, uma abertura para o novo.

Quando Agamben introduz Aby Warburg e Walter Benjamin, o paradigma se expande para o campo da imagem e da história, situando-se no conceito de “imagem intensiva”, que suspende a cronologia linear e revela descontinuidades no tempo histórico. Warburg, ao construir o Atlas Mnemosyne, utiliza imagens como paradigmas culturais que conectam diferentes momentos históricos e revelam intensidades comuns em tempos e contextos distintos. Benjamin, por sua vez, traz a ideia de “imagens dialéticas” para indicar a descontinuidade da história, composta por momentos de ruptura e intensidade. Para Agamben, o paradigma imagético suspende a linearidade do tempo e cria uma conexão que estabiliza e abre à interpretação, desafiando a continuidade histórica e estabelecendo rupturas que permitem novos entendimentos. O paradigma, aqui, estabiliza o sentido histórico enquanto o mantém em suspensão, pronto para ser ressignificado.

Na obra de Overbeck e Dumézil, o paradigma adquire uma função crítica em relação à tradição e à permanência, onde a noção de Urgeschichte desestabiliza a linearidade e propõe uma arqueologia do sentido. Overbeck sugere que a história é uma camada arqueológica que expõe significados ocultos, enquanto Dumézil vê o paradigma como estrutura cultural que se estabiliza em práticas rituais e mitológicas, mas que, ao ser reinterpretada, se atualiza. Para Agamben, o paradigma opera como uma arqueologia, revelando camadas de sentido que a tradição linear obscurece. Ele estabelece-se na tradição, mas é transformado ao ser revisitado. O paradigma histórico e mitológico, portanto, estabiliza o tempo cultural enquanto abre espaço para a ressignificação e a inovação.

O desenvolvimento da noção de paradigma em Signatura Rerum insere-se no projeto teórico mais amplo de Agamben, no qual o paradigma opera como dispositivo de suspensão e revelação, indo além de um modelo ou exemplo. No cerne do pensamento agambeniano está o comprometimento com a crítica das estruturas de poder e de normatividade que configuram a vida. Em Homo Sacer, por exemplo, ele explora o homo sacer como um paradigma de exclusão, uma figura paradigmática que revela a dialética entre inclusão e exclusão que define o poder soberano. A figura do homo sacer não é meramente ilustrativa, mas um paradigma ontológico que torna visível a zona de indeterminação entre a vida que é incluída no sistema jurídico e a vida que é suspensa, revelando a fragilidade e a arbitrariedade da soberania.
Imagem: DALL-E

Em O Reino e a Glória, o paradigma da oikonomia (οἰκονομία ) exemplifica como as operações de poder e governo são estruturadas e estabilizadas. O paradigma econômico, para Agamben, revela uma dimensão do poder que não apenas governa, mas que é, simultaneamente, governado pela própria lógica de gestão e de suspensão. O paradigma não apenas esclarece a historicidade das estruturas de poder, mas permite compreender o governo como um processo contínuo que está em suspenso, pronto para ser desarticulado e transfigurado.

Assim, a análise paradigmática em Agamben revela-se não apenas como uma estrutura metodológica, mas como uma ontologia da potencialidade, onde o ser e o saber permanecem em um estado de abertura e indeterminação, estruturados e, simultaneamente, desestruturados pelas forças que os moldam. O paradigma transcende a função de estabilizar o conhecimento para tornar-se uma condição de possibilidade para a transformação e a ressignificação. Ele opera como um “organizador invisível”, revelando as zonas de potencialidade entre norma e exceção, o visível e o invisível, a estabilidade e a ruptura. Agamben, ao conceber o paradigma como uma estrutura ontológica, propõe que a realidade política, social e histórica deve ser compreendida como uma série de potencialidades em suspenso, onde a estabilidade se conecta constantemente à possibilidade de revolução e ressignificação.

No contexto do eixo paradigmático, a ressignificação dos discursos e das revoluções surge como um processo essencialmente vinculado ao potencial disruptivo que o paradigma contém em sua própria estrutura. Para Agamben, o paradigma não é apenas um modelo que organiza práticas e saberes de forma estática; ele é uma matriz de inteligibilidade que permite que cada discurso e prática sejam constantemente reinterpretados e atualizados, mantendo-se em uma zona de tensão entre normatividade e transformação. Essa característica faz com que o paradigma não seja apenas uma referência ao passado, mas uma abertura contínua para o futuro, possibilitando a ressignificação dos elementos discursivos e revolucionários que define.

Discursos, nesse sentido, não são unidades fixas, mas fenômenos paradigmáticos que, ao serem reiterados, carregam em si o germe da diferença e da inovação. A cada nova enunciação, o discurso encontra-se aberto a alterações e desvios, permitindo que o que é dito e o que é silenciado se reorganize de maneira inesperada. Analogamente, as revoluções, quando lidas sob o prisma paradigmático, não se resumem à substituição de um sistema por outro, mas revelam a possibilidade de uma reestruturação mais ampla das condições de possibilidade de sentido, em que o próprio ato revolucionário se redimensiona enquanto prática de abertura e interrupção. Assim, a revolução, como um fenômeno paradigmático, não só desloca estruturas estabelecidas, mas também ressignifica o entendimento da mudança, inscrevendo-se como um potencial sempre presente na dinâmica dos discursos. Agamben, ao conceber o paradigma como um eixo capaz de manter-se entre a normalidade e a ruptura, reconfigura o próprio sentido de revolução e discurso: ambos tornam-se processos abertos e contingentes, onde a ressignificação é não apenas uma possibilidade, mas uma condição constitutiva.

Para o discurso teológico, especialmente no contexto da tradição calvinista, a leitura paradigmática agambeniana oferece um horizonte promissor de interpretação e ressignificação. A teologia calvinista, centrada em princípios doutrinários rigorosos (e na exegese profunda das Escrituras), pode parecer, à primeira vista, estruturada de forma fixa e imutável. No entanto, ao aplicar o conceito de paradigma, é possível compreender esses princípios não apenas como normas dogmáticas, mas como matrizes de inteligibilidade que, em sua repetição, criam espaço para abertura e renovação. Nesse sentido, a doutrina da predestinação ou a visão calvinista sobre a soberania divina, por exemplo, não precisam ser entendidas exclusivamente como sistemas rígidos, mas podem ser reinterpretadas como práticas paradigmáticas que contêm o potencial de ressignificação. Cada exegese, cada interpretação dos textos fundamentais e cada liturgia são enunciações que, ao serem reiteradas, oferecem a possibilidade de novos significados e adaptações aos contextos contemporâneos. A teologia, assim, pode ser vista como um campo paradigmático que preserva a tradição enquanto mantém a potencialidade de uma renovação autêntica e significativa. Agamben, ao conceber o paradigma como um eixo que opera entre normatividade e interrupção, sugere que o próprio discurso teológico, mesmo em uma tradição de ordem e disciplina como o calvinismo, pode manter-se entre a estabilidade doutrinária e a abertura ao novo, onde a ressignificação e a continuidade caminham juntas.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Signatura Rerum: sobre el método. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera. Barcelona: Editorial Anagrama, 2008.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Paul Tillich e a Teologia da Preocupação Última: Integração, Ambiguidade e Crítica da Condição Humana

A Teologia Sistemática de Paul Tillich (1886–1965) articula um diálogo inovador entre a teologia cristã e as ciências humanas e sociais, revelando uma abordagem interdisciplinar onde a Psicologia, a Sociologia e a Filosofia tornam-se fundamentais para entender as ambiguidades e complexidades da condição humana. No volume 3 de sua obra, em especial nas seções “A Vida e o Espírito” e “A História e o Reino de Deus,” Tillich propõe uma visão onde o Espírito atua não para resolver as ambiguidades, mas para integrá-las, transformando as esferas individuais e coletivas da existência. A noção de “vida sem ambiguidade” emerge, então, não como uma categoria metafísica rígida ou escatológica final, mas como uma realização dinâmica e dialética do Espírito no ser humano, sustentada pelo conceito de “fé corajosa.” Esse conceito, central em sua obra, descreve a disposição do sujeito de se reconciliar com as tensões existenciais, sem anular as contradições intrínsecas à vida humana. As influências de Freud (1856–1939), Jung (1875–1961), Hegel (1770–1831), Kierkegaard (1813–1855) e pensadores da Escola de Frankfurt moldam essa visão de Tillich, que integra crítica e acolhimento às ciências humanas para propor uma teologia inclusiva e transformadora.

Para Tillich, as ciências humanas desempenham um papel crucial na compreensão das ambiguidades humanas e na cura espiritual. A influência de Freud e Jung, por exemplo, é evidente em sua interpretação do Espírito como uma força curativa que age sobre o inconsciente e os conflitos internos. Enquanto Freud, com sua teoria das pulsões, e Jung, com a noção de individuação, oferecem um entendimento das forças internas que moldam o ser humano, Tillich absorve essas noções, apresentando o Espírito como uma presença restauradora que atua tanto no consciente quanto no inconsciente, promovendo uma unidade que a Psicologia pode esclarecer, mas não alcançar por si só. Assim, Tillich propõe que a cura espiritual é um processo de autocompreensão contínua, onde a Psicologia facilita o reconhecimento das tensões, enquanto o Espírito propicia a possibilidade de integração.

A colaboração entre a Psicologia e o Espírito permite ampliar a compreensão espiritual e humana, estruturando uma parceria onde a “fé corajosa” se torna essencial. Em Tillich, a fé não é uma aceitação passiva, mas uma postura ativa e transformadora diante da existência, ressoando com a perspectiva pós-estruturalista de um sujeito descentralizado, continuamente transformado por suas relações com o outro e o mundo. A fé surge, então, como uma prática ética, na qual o sujeito se engaja nas ambivalências da existência, e o Espírito atua de maneira curativa e integradora. Nessa abordagem, o sujeito não é uma entidade fixa, mas um ser em constante construção, aberto às múltiplas dimensões e significações da vida.

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“A História e o Reino de Deus” assume, em Tillich, uma dimensão escatológica em que o Reino de Deus é concebido como uma realidade histórica e coletiva. Embora Tillich se baseie no idealismo dialético de Hegel para ver a história como um processo de transformação, ele vai além, propondo o Reino de Deus como uma resposta crítica e transcendente à alienação humana, que nunca se completa na história. Tillich rejeita uma leitura determinista, preferindo ver o Reino como um horizonte de esperança que transcende o tempo. Esse Reino simboliza a reconciliação das ambigüidades sociais e existenciais e representa uma utopia crítica que ilumina e questiona o estado humano e social, sem se esgotar em qualquer realização histórica.

A visão de Tillich também incorpora uma crítica profunda às ideologias e ao poder estabelecido. Alinhado aos pensadores da Escola de Frankfurt, ele identifica o Espírito como uma força redentora que desafia os domínios políticos e ideológicos. O Espírito, em Tillich, representa o “princípio protestante” que rejeita a idolatria das estruturas de poder, atuando como uma crítica imanente que transcende as limitações e opressões da realidade social. Para Tillich, a transformação escatológica do Reino de Deus é uma utopia crítica que desafia a fragmentação e alienação sociais e políticas, constituindo-se em um ideal dialético que ilumina e questiona o estado fragmentado do ser humano e da sociedade. Assim, o Espírito assume um papel crítico e transcendente, sem buscar uma concretização total e final, mas oferecendo um horizonte para práticas de justiça e inclusão.

O conceito de “preocupação última,” fundamental em Tillich, propõe uma teologia acessível a crentes e não crentes, apresentando-se como uma ciência universal da busca pelo sentido. Para Tillich, a teologia não é restrita ao círculo da fé, mas estende-se a todos que enfrentam questões sobre o sentido da existência e a finitude. Seu método correlacional, que relaciona perguntas existenciais a respostas teológicas, permite que a teologia dialogue com temas universais como ética, liberdade e alienação, tornando-se um espaço acessível a todos os interessados em compreender a condição humana. Tillich estrutura, assim, uma teologia inclusiva, onde as ciências humanas como a Psicologia e a Filosofia funcionam como mediadoras da experiência teológica, enriquecendo as perspectivas sobre o sentido último e a ação do Espírito na vida.

A força curativa do Espírito, de acordo com Tillich, abrange tanto as esferas psicológicas e sociológicas quanto as dimensões política e espiritual, propondo uma teologia que integra o potencial redentor do Espírito com as realidades históricas e sociais. Inspirado por Freud, Jung, Hegel, Kierkegaard e pela Escola de Frankfurt, Tillich desenvolve uma teologia que reconhece as ambiguidades humanas e a necessidade de cura e transformação contínuas. Com essa visão dialética, a vida sem ambiguidade torna-se uma experiência de integração onde a fé corajosa permite que o ser humano habite as ambiguidades, sem eliminá-las, mas compreendendo-as. Tillich utiliza a Psicologia como mediadora da autocompreensão e a Sociologia como facilitadora da reconciliação das realidades alienantes, expandindo a teologia para uma abordagem interdisciplinar que promove uma leitura inclusiva da espiritualidade.

Ao se aproximar de uma leitura pós-estruturalista, a teologia de Tillich não fixa sentidos absolutos, mas sugere um discurso aberto, onde o sujeito se constrói em meio a múltiplas significações e interações. Esse sujeito descentralizado assume uma postura ativa diante das ambiguidades, sendo constantemente reconstruído no processo existencial em que o Espírito age como força curativa. A guinada linguística permite ver a teologia como um jogo de linguagem, onde conceitos como o “Reino de Deus” e o “Espírito” se realizam de maneira performativa em uma rede de significados culturais e históricos, sem se limitarem a uma interpretação rígida ou estática.

Finalmente, o “Reino de Deus” pode ser interpretado, sob uma perspectiva inspirada por Deleuze (1925–1995) e Baudrillard (1929–2007), como um simulacro, uma representação que transcende as condições materiais e desafia opressões e desigualdades. Tillich concebe o Reino como uma utopia crítica, uma visão ética e transformadora que orienta a ação sem se fixar em uma definição final. Tillich confere, assim, à teologia uma função transformadora, onde o Reino de Deus ilumina e questiona práticas religiosas e sociais, promovendo uma espiritualidade crítica e transcendente. Dessa forma, ele reafirma o papel da teologia como uma ciência da “preocupação última,” que se estende à vida e à história, dialogando com outras ciências em busca de uma integração que transcenda a fragmentação e realize a plenitude do Espírito em uma vida concreta e histórica, crítica e aberta.

Referências
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

Trabalho, Alienação e Subjetividade

O debate sobre o trabalho e a produção no capitalismo contemporâneo encontra-se no cerne das discussões teóricas entre Slavoj Žižek e Moishe Postone, que se distinguem por suas abordagens críticas em relação ao papel do trabalho no processo de dominação capitalista. Postone, em sua leitura inovadora de Marx, oferece uma reformulação substancial da crítica ao trabalho, sugerindo que o cerne da crítica marxiana deve ser a própria estrutura do trabalho abstrato no capitalismo, e não apenas a exploração de classe (ou a propriedade privada dos meios de produção). Žižek, por sua vez, amplia essa crítica ao conectar o trabalho às estruturas ideológicas que sustentam o capitalismo tardio, propondo uma abordagem psicanalítica que explora as fantasias objetivas e os mecanismos simbólicos que operam no nível da subjetividade. Ao incorporar também a análise da ética protestante do trabalho, especialmente a partir das contribuições de Max Weber e André Biéler, conseguimos traçar um panorama histórico e ideológico mais robusto, que revela a maneira como o trabalho foi transformado de uma vocação teológica em uma ferramenta de dominação capitalista, articulada de maneira profunda com a subjetividade dos indivíduos. A relação entre trabalho, ideologia e subjetividade é, assim, um ponto de convergência que permite expandir a análise crítica em várias direções.

Moishe Postone, em sua obra Tempo, Trabalho e Dominação Social, critica o que chama de “marxismo tradicional”, que tende a ver o trabalho como uma atividade transhistórica que define a essência humana e como a base de qualquer possível emancipação social. Para Postone, essa leitura é inadequada para compreender a especificidade histórica do capitalismo, pois ao tratar o trabalho como ontologicamente central, o marxismo tradicional acaba reforçando as próprias categorias capitalistas que ele pretende criticar. Em vez de tratar o trabalho como a base da emancipação, Postone argumenta que o trabalho, no capitalismo, é uma forma de mediação social abstrata, que constitui a estrutura da dominação social. O trabalho abstrato, ao contrário do trabalho concreto que produz valores de uso, é a categoria que estrutura a produção de valor no capitalismo e que, portanto, gera alienação ao transformar a atividade humana em uma força impessoal que escapa ao controle dos próprios trabalhadores.

A crítica de Postone é profundamente dialética, pois, ao identificar o trabalho abstrato como a fonte da dominação social, ele sugere que a superação do capitalismo não pode ser alcançada simplesmente pela expropriação dos meios de produção ou pelo controle do Estado, mas pela abolição do próprio trabalho abstrato como forma social. Postone vê o capitalismo como um sistema em que o valor e o tempo abstrato regulam as relações sociais, impondo imperativos impessoais sobre os indivíduos. Dessa forma, o trabalho, que no marxismo tradicional é tratado como o meio para a emancipação dos trabalhadores, é reinterpretado como o próprio objeto da crítica, uma vez que é o trabalho abstrato que sustenta a reprodução do capital. O trabalho deixa de ser uma atividade emancipadora para ser uma fonte de alienação e dominação, o que demanda uma crítica mais profunda das formas sociais específicas que estruturam o capitalismo.

Slavoj Žižek, ao adotar uma perspectiva dialética e psicanalítica, concorda com Postone que o trabalho, no capitalismo, é uma forma de alienação, mas vai além ao incluir o papel das fantasias ideológicas que sustentam essa alienação. Para Žižek, o capitalismo não se sustenta apenas através da exploração econômica (ou da alienação objetiva do trabalho), mas também através de um conjunto de fantasias e estruturas simbólicas que moldam a subjetividade dos indivíduos. Ele argumenta que a dominação capitalista opera em um nível simbólico, onde o trabalho se torna uma atividade que, ao mesmo tempo, aliena os trabalhadores e os faz acreditar que estão realizando algo significativo. A ideologia capitalista transforma o trabalho em uma forma de realização subjetiva, capturando o desejo dos indivíduos e os fazendo identificar-se com as estruturas de dominação que os oprimem. Žižek chama esse mecanismo de fantasia objetiva, pois é uma ilusão que sustenta a realidade do capitalismo e que mantém os indivíduos presos em uma lógica de exploração e alienação.

Essa abordagem psicanalítica do trabalho permite a Žižek criticar não apenas as formas tradicionais de exploração capitalista, mas também as novas formas de trabalho imaterial que surgem no capitalismo contemporâneo, especialmente no que diz respeito às teorias de Antonio Negri e Michael Hardt sobre o trabalho cognitivo e a multidão. Para Negri e Hardt, o trabalho imaterial, caracterizado pela produção de conhecimento, afetos e comunicação em rede, representa uma nova forma de trabalho que ultrapassa as limitações do trabalho industrial e oferece novas possibilidades de emancipação. A multidão, para eles, seria o novo sujeito revolucionário capaz de transformar o capitalismo a partir de dentro, utilizando as novas tecnologias e formas de cooperação social para desafiar o poder do capital.

No entanto, Žižek critica essa visão otimista do trabalho imaterial e da multidão, argumentando que, longe de representar uma ruptura com as formas tradicionais de exploração, o trabalho imaterial é uma nova forma de captura capitalista, que integra o desejo e a subjetividade na lógica do valor. O trabalho cognitivo, afetivo e colaborativo, em vez de transcender o capitalismo, é simplesmente uma nova forma de subsunção do trabalho ao capital, onde a exploração e a alienação continuam presentes, mas de maneira mais sutil. Para Žižek, a ênfase de Negri e Hardt na multidão como agente revolucionário ignora a profundidade das estruturas ideológicas que sustentam o capitalismo e subestima a complexidade das formas de dominação que operam no nível da subjetividade.

Além dessa crítica ao trabalho imaterial, Žižek também se volta contra a análise de Gilles Deleuze e Félix Guattari, particularmente em O Anti-Édipo, onde o trabalho é tratado como parte de uma máquina desejante que captura e reorganiza os fluxos de desejo no capitalismo. Deleuze e Guattari propõem que o capitalismo é uma máquina social que desterritorializa os fluxos do desejo e os reterritorializa de acordo com suas necessidades de reprodução. O trabalho, nessa perspectiva, é apenas uma das formas pelas quais o capitalismo captura o desejo e o transforma em uma força produtiva. No entanto, Žižek argumenta que essa ênfase na desterritorialização do desejo pode obscurecer a estrutura de dominação que continua a operar no capitalismo, mesmo quando este parece se adaptar e transformar os fluxos desejantes em formas de produção.

É nesse contexto que a ética protestante do trabalho, especialmente em sua forma calvinista, torna-se relevante para a compreensão das transformações históricas e ideológicas do trabalho no capitalismo. A partir das análises de Max Weber e André Biéler, podemos ver como o protestantismo, particularmente o calvinismo, ajudou a moldar o espírito do capitalismo moderno ao conferir ao trabalho um sentido teológico de vocação. No calvinismo, o trabalho é visto como uma obrigação moral e espiritual, uma forma de responder à vocação divina, e a ociosidade é considerada um vício. Como Biéler argumenta em A Força Oculta dos Protestantes, o trabalho era originalmente concebido como uma forma de serviço a Deus e à comunidade, e o lucro derivado do trabalho deveria ser utilizado de maneira justa e solidária.

Imagem: DALL-E

No entanto, com o desenvolvimento do capitalismo moderno, essa ética protestante do trabalho foi progressivamente secularizada e transformada em um ethos que legitimou a acumulação de capital. O trabalho, que no calvinismo tinha um sentido espiritual e comunitário, foi capturado pela lógica capitalista e transformado em uma forma de exploração e alienação. A crítica de Weber, e também de Biéler, revela como o protestantismo, ao promover a ética do trabalho e da disciplina, acabou por contribuir para a formação do espírito do capitalismo, que justifica a exploração dos trabalhadores em nome de um suposto dever moral de acumulação e produtividade.

Essa captura do trabalho pela lógica capitalista ressoa diretamente com as críticas de Žižek e Postone, que veem no trabalho contemporâneo uma forma de dominação ideológica e alienação. O que Weber e Biéler identificam como a secularização da vocação protestante, Žižek interpreta como uma forma de captura ideológica, onde o trabalho, que deveria ser uma atividade de realização espiritual, torna-se uma ferramenta de exploração e controle. Postone, por sua vez, ao criticar o trabalho abstrato, identifica o momento em que o trabalho deixou de ser uma atividade socialmente significativa para se tornar uma força impessoal que sustenta a lógica do capital.

Ao incorporar essa análise protestante ao argumento, percebemos que o trabalho, longe de ser uma atividade ontologicamente redentora, é historicamente contingente e ideologicamente moldado para servir às necessidades do capital. A ética protestante, que inicialmente visava garantir a justiça e a solidariedade social, foi instrumentalizada pelo capitalismo para legitimar a exploração e a alienação dos trabalhadores. A análise de Postone e Žižek revela como o trabalho, ao longo do tempo, foi esvaziado de seu potencial emancipatório e transformado em uma forma de dominação social. No entanto, ao mesmo tempo em que o trabalho se tornou o núcleo da alienação capitalista, ele também contém as contradições internas que podem levar à sua superação.

Em última análise, o debate entre Žižek, Postone, Negri, Deleuze e a tradição protestante do trabalho revela a complexidade das funções do trabalho no capitalismo contemporâneo. A crítica ao trabalho imaterial, à ética protestante e às formas de subjetivação no capitalismo mostra que o trabalho, longe de ser uma simples atividade produtiva, é o espaço onde se articulam as tensões ideológicas, subjetivas e econômicas que sustentam o sistema. O trabalho, portanto, não é apenas uma forma de dominação, mas também o local onde as contradições internas do capitalismo se tornam visíveis, abrindo a possibilidade de uma transformação radical da sociedade.

Referências
BIELER, André. A Força Oculta dos Protestantes: Estudo sobre o Calvinismo. Tradução de José Carlos Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Pola Civelli. São Paulo: Editora 34, 2011.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Record, 2001.
POSTONE, Moishe. Tempo, Trabalho e Dominação Social: Uma Reinterpretação da Teoria Crítica de Marx. Tradução de Alfredo J. Buéres. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ŽIŽEK, Slavoj. Em Defesa das Causas Perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que Nada: Hegel e a Sombra do Materialismo Dialético. Tradução de Maurício Cardozo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Uma leitura pós-estruturalista de Lucas 18.9-14

Dois homens foram ao templo para orar. Um, cristão, foi ao templo do verdadeiro Deus, com as verdadeiras ideias sobre Deus em sua cabeça, mas orou sem a paixão da subjetividade. O outro, um pagão, foi ao templo de um ídolo e prostrou-se. Mas orou com toda a paixão do seu coração. Kierkegaard conclui: Na realidade o cristão orou a um ídolo e o pagão orou ao Deus verdadeiro. Daí a sua afirmação de que “a verdade é a subjetividade” (apud Rubem ALVES, 1984).

A cisão paraláctica (ou “paradoxo”) entre o Ético e o Religioso (kierkegaardianos) se expressa, às vezes, numa escolha do Estético! Não há garantia de que a decisão tomada seja um ato de fé, uma vez que a “'diferença mínima' que transubstancia (o que parece ser) um ato ético num ato religioso não pode ser especificada ou localizada numa propriedade determinada” - Sugerido por Slavoj Žižek

Lucas 18.9-14 está inserido em um conjunto de narrativas lucanas que provocam profundos questionamentos teológicos e hermenêuticos. Este texto evoca reflexões sobre a justiça e a humildade, articulando aspectos complexos da experiência religiosa no contexto do judaísmo do primeiro século. João Calvino, em seus comentários, faz uma análise desta parábola, destacando dois elementos principais: a autoconfiança injustificada e o desprezo pelo próximo. Segundo Calvino, o problema central do fariseu não está em sua observância da Lei, nem no reconhecimento de que suas boas obras são um dom de Deus, mas em sua confiança nas próprias ações para alcançar justificação (δικαίωσις). O fariseu acredita que suas obras são suficientes para obter a reconciliação com Deus, confiando no mérito dessas práticas. Isso, para Calvino, reflete uma postura de arrogância espiritual, que impede a verdadeira humildade necessária para a justificação.

Em contraste, o publicano, com humildade, não tenta justificar-se por meio de obras ou méritos, mas confessa sua culpa, reconhecendo exclusivamente que sua esperança está na misericórdia divina. Calvino enfatiza que a justificação ocorre aqui não por mérito adquirido pelo publicano, mas pela anulação de sua culpa e pelo perdão dos pecados. Para Calvino, a justificação (v. 14) não é uma transformação moral interna, mas um ato da graça de Deus, que perdoa e aceita aqueles que se humilham e confiam somente em sua misericórdia, sem depender de suas próprias obras. Nas palavras de um teólogo luterano, a justificação “se dá menos ainda em decorrência da expressão de desespero pela derrocada da vida, da contrição ou do arrependimento (...).” Nos termos da Reforma, a chegada da Palavra de Deus (isto é, a declaração “voltou para casa justificado”) jamais se transforma em “habitus”, mas permanece como força ativa de Deus (virtus), que opera sempre “extra nos” (fora de nós...).

Calvino também sublinha que esta parábola serve como uma advertência contra o orgulho espiritual, que leva à condenação. O fariseu, com sua observância exterior, é rejeitado, enquanto o publicano, ao confessar sua incapacidade, é justificado. Para o reformador franco-genebrino, essa dinâmica ilustra a doutrina reformada da justificação pela fé, onde o perdão e a aceitação por Deus não dependem dos méritos humanos, mas da graça soberana e do reconhecimento da própria insuficiência. O comentário de Calvino contribui para a leitura protestante de Lucas 18.14 ao reforçar a teologia da justificação pela fé e o perigo da autossuficiência espiritual, agregando uma importante reflexão teológica. Contudo, ao adotar uma leitura pós-estruturalista, além dos aspectos dogmáticos destacados, somos levados a questionar não apenas os significados normativos, mas também as dinâmicas discursivas que operam na construção das subjetividades religiosas, revelando a complexa relação entre poder, linguagem e identidade.

A Natureza da Parábola e a Dinâmica Discursiva
Ademais, a tradição exegética, como apresentada no Proclamar Libertação XXVIII, sugere que o texto deve ser interpretado à luz da segunda parte do versículo 14: “todo o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (BJ). A questão central que surge, então, é: estamos diante de uma parábola que visa apenas ensinar uma lição moral ou de uma narrativa mais complexa, que desestabiliza categorias e práticas sociais enraizadas? Assim, uma leitura pós-estruturalista nos convida a ir além dessas interpretações, desafiando a redução da parábola a uma comparação moralizadora ou mesmo a uma defesa exclusiva da doutrina da Justificação pela Fé, como sugere Calvino. Aqui, a parábola opera como uma ferramenta discursiva dentro de uma matriz de poder, isto é, um conjunto de relações que organiza e legitima a distribuição de poder e status social, constituindo subjetividades e reforçando hierarquias..

A narrativa de Lucas articula dois temas centrais: a necessidade de uma oração contínua e a humildade como virtude fundamental. Contudo, ao fazê-lo, a narrativa não se limita a uma injunção ética. A oração, descrita como prática essencial (“Dois homens subiram ao templo para orar”, BJ), também deve ser lida como uma forma de constituição subjetiva que se inscreve nas relações discursivas de poder. Em termos foucaultianos, a oração aqui não é apenas um exercício de devoção, mas um processo discursivo que molda o sujeito religioso, posicionando-o dentro de um regime de verdade, onde seu valor é medido não apenas por suas ações, mas pela conformidade a normas religiosas. Assim, a oração adquire uma dimensão política, sendo uma prática discursiva que legitima (e reitera uma certa ordem simbólica). Como argumenta Michel Foucault, o discurso não é apenas um reflexo da realidade, mas uma prática que constitui realidades e fabrica sujeitos. A oração, nesse caso, constitui o sujeito orante como alguém que, através da linguagem, ocupa uma posição de poder no campo religioso.

A Relação entre Fariseus e Publicanos: Discurso e Poder
A crítica à arrogância religiosa no versículo 9 – “alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os outros” – direciona nossa atenção para a relação entre fariseus e publicanos. Essa relação pode ser lida como uma forma de distinção discursiva que legitima hierarquias religiosas. O fariseu, orgulhoso de sua pureza religiosa, não apenas evita o pecado, mas constrói uma identidade positiva fundamentada em sua observância estrita da Lei: jejua duas vezes por semana e paga o dízimo de todos os rendimentos (18.12). Esse comportamento excede os requisitos da Lei e funciona como um mecanismo de distinção, demarcando sua posição superior, especialmente em relação ao publicano.

Aqui, o conceito de habitus, de P. Bourdieu, é relevante para entender como essas práticas religiosas não são meramente comportamentos individuais, mas estão enraizadas em estruturas sociais que organizam a percepção e a ação dos sujeitos. O habitus (farisaico) é uma estrutura incorporada que regula a ação e a percepção, reforçando a distinção entre aqueles que cumprem e aqueles que falham em seguir as normas religiosas. O fariseu é constituído como sujeito religioso em oposição ao publicano, cuja identidade, por sua vez, é construída como inferior nessa lógica discursiva. Por outro lado, o publicano, ao reconhecer sua condição de pecador e clamar por misericórdia, ocupa uma posição de subalternidade dentro desse campo de poder (“Ὁ Θεός, ἱλάσθητί μοι τῷ ἁμαρτωλῷ”):

“Ὁ Θεός” (Ho Theos) significa “Ó Deus”.
“ἱλάσθητί” (hilastheti) é uma forma de verbo que significa “tem piedade” ou “seja propício”.
“μοι” (moi) significa “a mim”.
“τῷ ἁμαρτωλῷ” (to hamartolo) significa “pecador”.

Tomado como colaborador do império romano e, portanto, traidor de seu povo, o publicano é uma figura de desprezo social e religioso. Essa marginalização pode ser lida em termos foucaultianos como uma exclusão discursiva, onde certos sujeitos são posicionados fora da normatividade religiosa e, consequentemente, fora da esfera de prestígio. No entanto, essa relação entre fariseu e publicano é dialética. Em uma leitura pós-estruturalista, o fariseu não existe sem o publicano e vice-versa. Ambos se constituem reciprocamente em uma relação discursiva na qual o poder se articula por meio da distinção e da exclusão. O fariseu, ao se exaltar, só pode fazê-lo em relação ao publicano, cuja humilhação reafirma sua superioridade. Da mesma forma, a humilhação do publicano só ganha significado em relação à exaltação do fariseu, mantendo a ordem social e religiosa.

Justificação, Humildade e a Subversão das Hierarquias
A narrativa, no entanto, não permanece no nível da mera reprodução dessa distinção. A exaltação do publicano e a humilhação do fariseu, expressa pelos pares antitéticos Ταπεινωθήσεται (tapeinōthēsetai) e ὑψωθήσεται (hypsōthēsetai), conforme descrito no versículo 14, subvertem as expectativas normativas. Essa inversão, no entanto, não deve ser vista apenas como uma troca de lugares, mas, em termos hegelianos, como uma “negação da negação, onde a superação da distinção original não leva à afirmação de um ou outro, mas à criação de uma nova realidade que transcende as polaridades. A humildade do publicano, ao ser exaltada, questiona a lógica pela qual o fariseu constrói sua identidade.

Neste ponto, a leitura kierkegaardiana entra em cena, oferecendo uma análise existencial da subjetividade religiosa. O publicano, ao reconhecer sua condição de pecador, pode ser visto como um “cavaleiro da resignação, que abdica da tentativa de controlar sua salvação por obras. No entanto, para Kierkegaard, essa resignação ainda não o torna um “cavaleiro da fé, pois a verdadeira fé envolve o credo quia absurdum  – a crença em algo que transcende a razão e a moralidade convencionais.

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O Paradoxo da Fé: R. Alves, S. Žižek e G. Agamben
O contraste estabelecido por Rubem Alves entre um cristão e um pagão em oração encontra suas raízes na leitura kierkegaardiana sobre a subjetividade da fé. Esse conceito é amplamente discutido em textos que abordam o pensamento existencialista cristão. A base dessa comparação reside na máxima kierkegaardiana de que “a verdade é subjetividade”. Para Kierkegaard, a verdadeira fé não é definida apenas pela aderência a doutrinas corretas ou a ideias teologicamente precisas, mas pela intensidade da paixão e pela entrega existencial do indivíduo. Nesse sentido, a autenticidade da fé está mais ligada à experiência subjetiva do crente do que ao objeto exato de sua crença.

Rubem Alves, em sua obra, apropria-se dessa concepção ao destacar que um cristão, embora possua uma compreensão teologicamente “correta” de Deus, mas sem a paixão necessária, pode, na verdade, estar adorando um ídolo. Em contrapartida, um pagão, apesar de adorar algo incorreto do ponto de vista teológico, pode estar mais próximo de Deus pela sinceridade e intensidade de sua devoção. Essa crítica ao formalismo religioso sublinha a importância da experiência subjetiva e da autenticidade interior em detrimento da mera conformidade a ritos e doutrinas estabelecidas.

Ainda que a expressão exata “creio porque é absurdo” não apareça literalmente na citação de nossa epígrafe, ela reflete a centralidade da fé apaixonada e autêntica que, para Kierkegaard, transcende as exigências da racionalidade objetiva. Esse conceito se conecta profundamente com o “salto de fé”, essencial na teologia existencialista kierkegaardiana, em que a fé se torna um ato de entrega que ultrapassa as barreiras da lógica e da segurança intelectual.

S. Žižek, em diálogo com Kierkegaard e Hegel, oferece uma chave para compreender a tensão entre resignação e fé. Para Žižek, há uma “cisão paraláctica” entre o ético e o religioso, uma diferença mínima que nunca pode ser totalmente resolvida. O publicano, ao se humilhar, mantém essa brecha aberta, pois a justificação não pode ser garantida por ações ou méritos, transcendendo a lógica da moralidade convencional. A fé, assim, se manifesta justamente nessa abertura, onde a experiência religiosa não se enquadra nas categorias éticas tradicionais, mas emerge em um espaço paradoxal de entrega total.

Essa ideia encontra eco na obra de G. Agamben, especialmente em sua leitura do messianismo paulino, onde todas as distinções sociais e religiosas são suspensas, criando um espaço de “como não”, onde o fariseu é como se não fosse fariseu e o publicano é como se não fosse publicano. Nesse sentido, a justificação do publicano rompe com as categorias fixas de identidade, subvertendo as estruturas de poder e distinção que definem o mundo social e religioso. Ao transcender essas categorias, o messianismo agambeniano revela um modo de existência que não mais opera sob as lógicas de exclusão e hierarquização, mas em um espaço de contínua suspensão e reconfiguração das identidades sociais.

Considerações Finais
Ao adotar uma leitura pós-estruturalista de Lucas 18.9-14, somos levados a questionar as dinâmicas de poder e subjetivação que operam na narrativa. A relação entre fariseus e publicanos, mais do que uma simples metáfora moral, revela-se como um campo discursivo onde identidades e hierarquias são constituídas e legitimadas. A exaltação do publicano e a humilhação do fariseu subvertem essa lógica, mas não a resolvem completamente, mantendo a tensão entre ética e fé como um paradoxo que desafia nossa compreensão das relações entre poder, justiça e subjetividade. Podemos nos perguntar: em cada fariseu exaltado, não haveria também um publicano em potencial, pronto a se humilhar? E, em cada publicano humilhado, não reside o potencial de um fariseu que, ao ser justificado, pode cair na arrogância? A narrativa lucana, portanto, nos convida a refletir sobre a complexidade dessas interações e a reconhecer que, assim como as práticas discursivas que nos constituem, as posições de poder e subordinação estão sempre em fluxo.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
ALVES, Rubem. O Enigma da Religião. Campinas, SP: Papirus, 1984.
 _____________. Protestantismo e repressão. São Paulo: Editora Ática, 1979.
AESKE, Albérico. Dia da Reforma. In: MÜLLER, João Artur; HOEFELMANN, Verner. Proclamar Libertação: Auxílios para o anúncio do Evangelho. v. 28. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2002, p. 333-345.
BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Temor e Tremor. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Cristianismo da Libertação: Um Fenômeno Político e Teológico na América Latina

Na dialética da liberdade, “a esperança não toma as coisas como se fossem inertes, mas sim como progredindo, movendo-se com possibilidades de mudanças... (...) A esperança, consequentemente, expressa aquilo que é possível para a história e, assim, o que pode ser tornado histórico através da atividade da liberdade, somente na medida em que esta se derive e seja uma extrapolação do movimento objetivo da política de libertação humana, tal como experimentada na história (...). Nesse sentido, a linguagem da libertação humana tem suas raízes no presente. Ela fala a partir das dores de um presente que quer se tornar liberto, mas ao qual não é permitida a transformação de seu projeto em história; a história, assim, move-se em direção ao futuro através do sofrimento do oprimido. (...) Mas a realidade tem de ser negada e resistida. (...) É preciso ser-se livre da história para se ser livre para ela. Por outro lado esta liberdade face à história só pode produzir libertação se for liberdade para a história”.  (...) Portanto, o desejo de libertação se expressa como “poder contra aqueles que tornam a libertação impossível”. Rubem Alves 

Na obra Cristianismo da Libertação: Religião e Política na América Latina, Michael Löwy oferece uma análise crítica sobre as interseções entre religião e política no contexto latino-americano, com ênfase particular no impacto da Teologia da Libertação. Como um destacado intelectual marxista, Löwy examina a religião não apenas como uma força que legitima as estruturas de poder, mas também como um fenômeno contraditório, capaz de questionar e subverter essas mesmas estruturas. A Teologia da Libertação, movimento teológico que emergiu nos anos 1960 e ganhou forma com a obra de Gustavo Gutiérrez, figura central para Löwy, é apresentada como uma articulação entre fé cristã e transformação política, resultando em uma práxis que visa à emancipação dos pobres e marginalizados.

Religião e Política: A Dialética da Subversão e Legitimação
O ponto de partida da análise de Löwy é a compreensão dialética da religião. Para ele, seguindo a tradição marxista, a religião não pode ser vista exclusivamente como uma ferramenta de dominação, como sugerido na famosa máxima de Marx sobre a religião ser o ópio do povo. Löwy, ao revisitar essa crítica, sugere que a religião é um fenômeno social e histórico dotado de ambiguidades, funcionando tanto como uma força de legitimação das condições de opressão quanto como um espaço de resistência e subversão. A Teologia da Libertação, segundo Löwy, representa a expressão mais radical desse potencial subversivo, ao articular a fé cristã com a luta contra as estruturas de opressão capitalista. Neste sentido, a religião não é apenas um reflexo das condições materiais, mas também um lugar de produção ideológica e de resistência política.

Essa compreensão dialética da religião é exemplificada na análise de Löwy acerca do conceito de guerra dos deuses, retirado de Max Weber. Para Weber, essa expressão designa os conflitos entre diferentes sistemas de valores que colidem na modernidade, e Löwy adapta essa noção para descrever o embate entre os cristãos progressistas e conservadores, bem como entre o cristianismo de libertação e os ídolos do capitalismo. O cristianismo, na forma apresentada pela Teologia da Libertação, oferece uma alternativa radical aos valores do mercado e da mercadoria, concebendo Deus não como um sustentador da ordem estabelecida, mas como um libertador dos oprimidos. Esse conflito assume, na América Latina, uma dimensão particular, uma vez que, para Löwy, o cristianismo de libertação representa uma resposta à crise do capitalismo periférico, que intensificou as desigualdades sociais na região.

A Opção Preferencial pelos Pobres e a Superação da Pobreza
Um dos conceitos centrais da Teologia da Libertação, conforme analisado por Löwy, é a opção preferencial pelos pobres. Esse princípio, formulado por Gustavo Gutiérrez, desafia a concepção tradicional da caridade cristã ao afirmar que os pobres não são meros receptores passivos de auxílio, mas sujeitos ativos em sua própria libertação. Löwy considera essa reformulação teológica fundamental para entender a transformação do papel da Igreja na América Latina, que, sob a influência da Teologia da Libertação, deixou de ser uma instituição conservadora e passou a ser um ator político ativo na luta por justiça social.

Segundo a Teologia da Libertação, a pobreza é um fenômeno histórico e político, não uma condição imutável ou uma prova divina. A TdL propõe uma visão integradora, em que a salvação não se limita ao plano espiritual, mas se manifesta na transformação das condições materiais de opressão. Assim, a fé cristã se torna inseparável da práxis política, e a luta contra a pobreza é entendida como uma luta contra o sistema capitalista que perpetua essa condição. Para Löwy, essa dimensão política da Teologia da Libertação é o que a torna uma teologia revolucionária, profundamente antagônica ao capitalismo.

A opção preferencial pelos pobres também se desdobra em um questionamento das estruturas de poder que mantêm as desigualdades sociais. Para Gutiérrez, a pobreza não é apenas uma condição econômica, mas um produto de relações sociais e políticas que podem ser transformadas pela ação coletiva. Löwy observa que essa abordagem transforma a própria teologia em uma ferramenta de resistência, ao propor que a libertação cristã só pode ser concretizada na luta contra o imperialismo e o capitalismo. Nesse sentido, a Teologia da Libertação vai além de uma simples crítica moral do capitalismo; ela propõe uma transformação estrutural das condições que o sustentam.

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A Aliança entre Cristianismo e Marxismo
Um dos aspectos mais inovadores da Teologia da Libertação, conforme Löwy, é sua capacidade de integrar o marxismo como uma ferramenta crítica na análise das dinâmicas de opressão e exploração na América Latina. Gutiérrez não adota o marxismo de forma dogmática, mas o utiliza como um aparato analítico para compreender as estruturas sociais que perpetuam a miséria e a exploração. Löwy argumenta que essa aliança entre cristianismo e marxismo é uma das características mais marcantes da Teologia da Libertação, uma vez que oferece uma nova leitura da libertação cristã, que se concretiza nas lutas políticas e sociais contra o imperialismo e o capitalismo.

Essa articulação entre marxismo e cristianismo não é vista por Löwy como uma simples justaposição de ideias, mas como uma afinidade eletiva, um termo que ele herda de Weber para descrever a compatibilidade entre o cristianismo libertador e a ética marxista. O marxismo, para Gutiérrez, não é apenas um método de análise econômica, mas uma fonte de valores éticos e utópicos que ressoam com a mensagem cristã de justiça e libertação. Löwy, ao analisar essa convergência, sugere que o cristianismo de libertação e o marxismo compartilham um horizonte comum: ambos buscam a emancipação dos oprimidos e uma sociedade livre das amarras da exploração capitalista.

A Crítica ao Capitalismo e ao Fetichismo da Mercadoria
A crítica ao capitalismo é um dos pilares centrais da Teologia da Libertação, e Löwy dedica uma parte significativa de sua obra à análise dessa crítica. Para Gutiérrez, a mercadoria no sistema capitalista assume um caráter quase divino, desumanizando e alienando os indivíduos. Löwy, em diálogo com teólogos como Hugo Assmann e Franz Hinkelammert, destaca que o capitalismo não apenas oprime materialmente, mas também impõe uma forma de idolatria, onde o mercado e o capital são elevados a posições de poder quase religioso. A Teologia da Libertação, ao criticar essa idolatria do mercado, propõe uma teologia de intervenção política, que visa não apenas a salvação espiritual, mas também a emancipação social.

Löwy sugere que a Teologia da Libertação, ao combater o fetichismo da mercadoria, desenvolve uma crítica radical ao capitalismo que vai além da economia. Para Gutiérrez e seus contemporâneos, a luta contra a idolatria da mercadoria é uma luta pela restauração da humanidade alienada pelo sistema capitalista. Essa crítica se baseia na análise marxista do fetichismo, mas também é enriquecida pela dimensão teológica, que vê no capitalismo uma forma de idolatria que desvia os seres humanos de seu verdadeiro propósito de vida comunitária e solidariedade.

A idolatria do mercado, conforme Löwy, não é apenas uma questão econômica, mas também espiritual. Ao propor uma crítica teológica ao capitalismo, a Teologia da Libertação oferece uma visão holística da libertação, onde a fé e a política estão intrinsecamente conectadas. Essa crítica é central para a proposta de Gutiérrez, que vê na libertação uma tarefa tanto espiritual quanto material, que só pode ser alcançada por meio da transformação das estruturas sociais e econômicas.

O Protestantismo e Suas Relações com a Teologia da Libertação
Outro aspecto importante da análise de Löwy é a relação entre o protestantismo e a Teologia da Libertação. Embora o movimento tenha emergido principalmente no seio da Igreja Católica, Löwy destaca que o protestantismo latino-americano também foi influenciado por ideias libertadoras. Ele aponta para a existência de um “protestantismo de libertação”, que se desenvolveu em diálogo com as mesmas correntes teológicas e sociais que moldaram o cristianismo católico de libertação.

Löwy observa que, especialmente a partir da década de 1950, o protestantismo na América Latina começou a questionar seu papel tradicional como aliado do status quo político e econômico. Um exemplo significativo é o movimento ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), que, inspirado por princípios semelhantes aos da Teologia da Libertação, passou a se engajar ativamente nas lutas sociais. Para Löwy, essa convergência entre o catolicismo e o protestantismo de libertação representa uma ruptura com o conservadorismo religioso e a emergência de um novo tipo de engajamento político e teológico, em que a fé é colocada a serviço da justiça social.

O Papel de Rubem Alves na Teologia da Libertação
Dentro do contexto do protestantismo de libertação, destaca-se o papel de Rubem Alves (1933-2014), teólogo brasileiro que desempenhou um papel pioneiro na formulação das bases teológicas que influenciaram o movimento. Rubem Alves é frequentemente lembrado como um dos precursores da Teologia da Libertação dentro do protestantismo. Sua obra, Teologia da Esperança Humana (1969), é considerada uma das primeiras tentativas de articular uma crítica social e política a partir de uma perspectiva teológica no Brasil. Diferentemente de outros teólogos da libertação que se concentraram nas questões materiais da pobreza, Alves destacou a importância da imaginação, da utopia e da esperança como ferramentas de resistência e transformação.

Rubem Alves criticava as formas tradicionais de teologia que, para ele, alienavam as pessoas ao centralizarem-se exclusivamente no transcendental e no futuro, sem uma preocupação real com as condições presentes de vida. Assim, sua teologia se concentra na humanização das práticas religiosas, colocando o ser humano como sujeito de sua própria história. A influência de Alves na Teologia da Libertação foi fundamental, pois ajudou a consolidar uma visão mais ampla e plural da relação entre religião e política, abrindo espaço para a diversidade de experiências religiosas na América Latina, incluindo o protestantismo. Sua crítica à idolatria da razão instrumental e à teologia alienante reforça o espírito libertador presente nas obras de teólogos como Gutiérrez, Assmann e Hinkelammert.

Desafios Contemporâneos e Resistências à Teologia da Libertação
Apesar de suas inovações teológicas e políticas, a Teologia da Libertação enfrentou e ainda enfrenta grandes resistências. Löwy discute a contraofensiva conservadora dentro da Igreja Católica e em setores do protestantismo, que veem o cristianismo de libertação como uma ameaça à ordem estabelecida. A aliança entre setores religiosos conservadores e elites econômicas, especialmente na América Latina, dificultou a propagação da Teologia da Libertação em várias regiões. No entanto, como Löwy argumenta, o movimento demonstrou uma resiliência notável, sustentado por sua profunda conexão com as lutas populares e seu compromisso com a transformação social.

Löwy conclui que o legado de Gustavo Gutiérrez e da Teologia da Libertação vai além da teologia; ele também propôs uma nova forma de ação política, orientada pela fé, que continua a ser relevante no contexto das lutas sociais contemporâneas. O desafio que permanece é como adaptar essa tradição teológica e política aos novos contextos de opressão e resistência, em um cenário global marcado por crises econômicas, políticas e ambientais.

Considerações Finais
A análise de Michael Löwy sobre a Teologia da Libertação oferece uma compreensão profunda e dialética da relação entre religião e política na América Latina. Através de seu diálogo com o marxismo e sua crítica ao capitalismo, a Teologia da Libertação, conforme interpretada por Löwy, continua a ser uma ferramenta poderosa para aqueles que buscam unir a fé cristã com a luta pela emancipação dos oprimidos. A contribuição de teólogos como Rubem Alves amplia ainda mais essa perspectiva, destacando a importância de utopias e da imaginação na construção de uma teologia de resistência e transformação.

Referências
LÖWY, Michael. Cristianismo da Libertação: Religião e Política na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; Expressão Popular, 2016.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

As linhas de fuga do discurso teológico

O projeto Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, insere-se em uma tradição filosófica que busca romper com os modelos arborescentes e hierárquicos da epistemologia ocidental. Esta obra, ao lado de O Anti-Édipo, compõe a monumental crítica ao capitalismo, explorando como as formas de controle social contemporâneo, particularmente em relação ao desejo e à subjetividade, se estabelecem através de redes de poder e agenciamentos coletivos. Em Mil Platôs, a metáfora rizomática substitui a lógica linear da árvore do conhecimento, propondo uma forma plural e descentralizada de pensar, onde a multiplicidade é o princípio organizador, em oposição às hierarquias estruturais. O rizoma se apresenta como um conceito que oferece uma alternativa ao pensamento tradicional, capaz de abrigar e incorporar fluxos de poder, desejo e conhecimento em constante movimento, sem um ponto fixo de origem ou um destino predeterminado.

A ideia de rizoma, ao desconstruir os modelos de pensamento fixos, também nos apresenta uma nova concepção de linguagem, a qual Deleuze e Guattari interpretam não como um sistema de signos destinados à comunicação ou à representação da realidade, mas como um dispositivo normativo que organiza as relações sociais e molda as subjetividades. A linguagem, no pensamento deleuziano, se configura como uma força performativa que atua diretamente sobre o real, produzindo efeitos materiais. Esse aspecto é particularmente evidente no conceito de “palavra de ordem”, um dos elementos centrais de sua análise. Diferentemente da visão estruturalista da linguagem como um conjunto de regras estáveis para a produção de significados, Deleuze e Guattari sustentam que a linguagem é um agente normativo, cuja principal função é regular os comportamentos, organizando as práticas discursivas e os agenciamentos de poder. A palavra de ordem representa, assim, um comando social que não apenas descreve, mas que produz subjetividades, ao mesmo tempo em que se torna um mecanismo de captura do desejo e de imposição de normas.

Entretanto, ao mesmo tempo em que a linguagem se apresenta como dispositivo de controle, ela também contém uma potencialidade criativa que abre caminho para novas subjetividades. Essa ambiguidade da linguagem, enquanto força de normatização e criação, está no cerne do projeto rizomático de Deleuze e Guattari. As linhas de fuga, conceito-chave que atravessa Mil Platôs, remetem à possibilidade de subversão e de reinvenção dentro dos próprios agenciamentos de poder. As linhas de fuga são as forças que rompem com a estrutura estabelecida, criando novos espaços para a emergência de subjetividades alternativas. No entanto, a relação entre captura e emancipação é sempre provisória, pois as mesmas linhas de fuga que rompem com os sistemas de controle podem ser reterritorializadas, sendo novamente incorporadas às estruturas de poder que tentavam subverter.

Aqui se encontra um dos pontos críticos que Slavoj Žižek levanta em sua leitura do projeto deleuzo-guattariano. Na obra “Em Defesa das Causas Perdidas”, Žižek questiona se as linhas de fuga e a fluidez desejante celebradas por Deleuze e Guattari podem realmente escapar das garras do capitalismo, um sistema que já opera, segundo Žižek, com a lógica da desterritorialização. O capitalismo contemporâneo, longe de ser uma máquina rígida e fixa, é capaz de absorver e mercantilizar as diferenças, integrando as tentativas de fuga e subversão em sua própria dinâmica. Žižek observa que a capacidade do capitalismo de se apropriar da fluidez rizomática revela a ambivalência do projeto de Deleuze e Guattari. Enquanto os autores veem nas linhas de fuga uma promessa de emancipação, Žižek sugere que essas mesmas forças podem ser cooptadas pelo próprio sistema que pretendem criticar, uma vez que o capitalismo já incorporou a desterritorialização como parte de sua lógica operacional.

A crítica de Žižek toca em um ponto crucial ao destacar a ausência, na filosofia de Deleuze e Guattari, de uma confrontação direta com o antagonismo central do capitalismo: a luta de classes. Ao priorizarem a multiplicidade e a fluidez, Deleuze e Guattari diluem o foco na contradição material entre capital e trabalho, que é, para Žižek, o núcleo fundamental do sistema capitalista. Dessa forma, a crítica deles, ao enfatizar a desterritorialização e os fluxos de desejo, perde de vista a necessidade de uma abordagem mais dialética e materialista. Para Žižek, a emancipação exige não apenas a fuga ou a subversão das estruturas normativas, mas um enfrentamento direto com as contradições internas do sistema, particularmente a exploração de classe que o sustenta.

Essa tensão entre a multiplicidade rizomática e a contradição material é um dos pontos mais frutíferos para testar a robustez do projeto deleuzo-guattariano. Se o capitalismo já opera com a lógica da fluidez, será que a teoria do rizoma pode fornecer uma crítica efetiva ao sistema? Žižek argumenta que não, pois o próprio sistema capitalista, ao ser capaz de integrar e mercantilizar as diferenças, se mostra mais adaptável do que a teoria rizomática admite. Ao tratar a luta de classes como apenas mais uma entre muitas contradições, Deleuze e Guattari enfraquecem o potencial político de sua crítica, desarmando a possibilidade de uma confrontação real com as dinâmicas de exploração que caracterizam o capitalismo.

Além disso, Žižek observa que as ideias rizomáticas foram instrumentalizadas por estruturas de poder, como o próprio complexo militar, que incorporou a noção de “espaço liso” em suas táticas de guerra. Esse uso militar da filosofia de Deleuze e Guattari ilustra como as linhas de fuga podem ser facilmente reterritorializadas, mesmo por aquelas instituições que, em princípio, deveriam ser alvo de crítica. A filosofia rizomática, ao valorizar a multiplicidade e a fluidez, corre o risco de ser apropriada por sistemas de controle que a utilizam para reforçar seu próprio poder.

Imagem: DALL-E

No entanto, a relação entre controle e criação em Mil Platôs também oferece um espaço para reconsiderarmos o papel da linguagem e do discurso, especialmente no que se refere ao campo teológico. Deleuze e Guattari veem o discurso teológico como um exemplo claro de como a linguagem pode ser utilizada para capturar e organizar subjetividades de maneira normativa. No regime teológico, o livro sagrado não é apenas um texto interpretado, mas um instrumento de controle social que regula o comportamento dos indivíduos e estabelece territórios de subjetivação. O discurso religioso, particularmente nas religiões monoteístas, internaliza todas as possíveis interpretações, fixando as normas e limites da subjetividade dentro de uma genealogia autorreferencial. A relação entre o sujeito e o texto sagrado é de subordinação, onde o sujeito é chamado a recitar e obedecer ao comando divino, enquanto o livro sagrado exerce um papel disciplinar que organiza o campo social e espiritual.

No entanto, mesmo dentro deste regime teológico de captura, há espaço para linhas de fuga. As experiências místicas e as práticas reformistas dentro das tradições religiosas frequentemente rompem com a normatividade dogmática, abrindo novas possibilidades de interpretação e subjetivação. A Reforma Protestante e a Teologia da Libertação, por exemplo, podem ser vistas como movimentos que, ao reapropriarem o discurso teológico, introduzem novas linhas de fuga que desafiam as estruturas de poder dentro das instituições religiosas. No entanto, como Deleuze e Guattari apontam, essas linhas de fuga também correm o risco de reterritorialização, sendo eventualmente absorvidas pelas mesmas instituições que inicialmente tentavam subverter.

Essa dialética entre fuga e captura, criação e controle, revela a complexidade do projeto de Mil Platôs. Embora Deleuze e Guattari ofereçam uma crítica radical às estruturas de poder e ao capitalismo, a crítica de Žižek levanta questões importantes sobre os limites dessa abordagem. O capitalismo, com sua capacidade de absorver a diferença e mercantilizar a multiplicidade, representa um desafio fundamental para qualquer projeto que busque a emancipação através da fluidez e da desterritorialização. Žižek insiste que, para que haja uma verdadeira emancipação, é necessário confrontar diretamente as contradições centrais do sistema, especialmente a luta de classes, que permanece como o antagonismo fundamental do capitalismo.

Através dessa crítica, torna-se evidente que a robustez do projeto deleuzo-guattariano depende de sua capacidade de lidar com a reterritorialização e a captura das linhas de fuga, bem como da forma como articula sua crítica ao capitalismo em termos de antagonismos materiais. Embora a filosofia rizomática ofereça uma visão inovadora sobre a multiplicidade e a criação de subjetividades, a crítica de Žižek desafia essa visão a partir de uma perspectiva materialista mais dialética, questionando se a fluidez desejante pode realmente escapar das dinâmicas de controle do capitalismo contemporâneo.


Referências
Deleuze, G.; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
Žižek, S. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.

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